A Constituição Federal de 1988[1] consagra a Soberania como um fundamento da República.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;
A soberania política é a capacidade de autodeterminação e de atuação com poder. Os entes federativos brasileiros, por exemplo, não possuem soberania, mas apenas autonomia, devendo sempre submeter-se ao pacto federativo. Já a República, através dos seus representantes, pode agir de forma incondicionada. (BRASIL, 1988)
A noção contemporânea de poder soberano estatal, apesar de considerada imanente ao Estado, foi resultado de um longo e heterogêneo processo histórico. Não foi sempre que a sociedade se organizou em torno de um ente organizador do poder.
O período medieval, por exemplo, foi marcado pelo pluralismo jurídico e diversidade de sociedades e de culturas. Apesar da igreja ter sido a instituição que mais se aproximou, não houve um poder soberano que determinasse a compreensão do todo social, antes a própria sociedade, a partir de longos anos de desenvolvimento foi moldando sua própria filosofia, influenciada por diversos fatores. [2]
A filosofia da sociedade era a de um organismo, no qual cada casta desempenhava uma função. Não havia noção de indivíduo com vontade autônoma, por isso não houve mobilidade social e individualismo consolidados neste período. Todos os membros deveriam cooperar para o bem comum, sendo que nenhuma parte seria mais importante do que o próprio corpo.
Isso implica em dizer que, apesar do rei ser o coração e a peça fundamental da sociedade, ele deveria viver em função dela e não o contrário. A legitimidade da monarquia só fazia sentido se compreendida como manutenção do bem comum e preservação do corpo social. Logo, se o rei se tornasse tirano e desrespeitasse a equidade, a população tinha o direito de lhe resistir visando a proteção de um bem maior (FIORAVANTI, 2001)
Percebe-se que nesse período, devido à heterogeneidade jurídica e à estratificação social, ainda não havia noção de poder soberano consolidado.
Contudo, passados muitos séculos, as forças produtivas entraram em choque com o pluralismo político e econômico e houve a necessidade de mudança de paradigma.
Intensificaram-se a formação dos Estados Nacionais e a ascensão da burguesia, levando a idade média ao fim no século XV D.C e com ela a filosofia (ou as filosofias) da época.
Nesse cenário surgiu a teoria política de Maquiavel [3] , extremamente estratégica e instrumental, a qual iniciou a delimitação da noção contemporânea da Soberania.
A ideia do filósofo é que a manutenção do poder é o fim último do monarca e, para garantir essa finalidade, qualquer instrumento poderia ser usado, inclusive a força.
Maquiavel colocou em cheque a harmonia social medieval ao mostrar que o monarca não vive em função do bem comum, mas em função do poder. Dessa forma, o Príncipe deveria ser soberano e pode fazer de tudo para manter seu posto, inclusive afrontar a moral, religião e a ética.(MAQUIAVEL, 2010, p. 50-55).
A partir de Maquiavel, a necessidade da soberania para manutenção do Estado pareceu inquestionável. Não havia como pensar em Estado sem pensar em poder.
Os movimentos filosóficos que se seguiram procuraram delimitar quem possuía a titularidade deste poder: Para alguns autores era o monarca, para outros, a sociedade.
Hobbes [4] e Jean Bodin [5] , por exemplo, defenderam que a titularidade da soberania era do monarca, mas a vincularam a objetivos diferentes. Para Hobbes o fim da soberania era a preservação do pacto social e para Jean Bodin o cumprimento da vontade de Deus. (BODIN, 2011, pp. 195-200)
Já a soberania para Locke [6] e Rousseau [7] não era de titularidade de uma pessoa, mas da sociedade.
Eles defenderam haver direitos inquestionáveis e intransponíveis: o direito de propriedade e a vontade popular, respectivamente. Tais direitos advinham da natureza humana e se tornavam necessários para a manutenção do pacto social, se violados, podiam levar à resistência.
Nesse sentido, Rousseau afirmou que o eixo norteador da sociedade deve ser sempre a vontade geral do povo, que significa o bem comum expressado pelas decisões do corpo político. A soberania é intrínseca à população:
A primeira e mais importante consequência dos princípios acima estabelecidos está em que somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum. (ROUSSEAU ,2011, p.36)
A diferença de pensamentos entre esses dois grupos (defensores da soberania do monarca e defensores da soberania do povo) corresponde também à diferença entre períodos históricos: o Estado Nacional e o Estado liberal.
Entre os séculos XV e XVIII, o Estado absolutista baseou-se na concepção de Monarca Soberano, mas nos séculos que se seguiram, a soberania ligada ao povo pareceu alcançar êxito a partir das revoluções liberais.
Criaram-se documentos escritos supremos das sociedades: as Constituições modernas que, apesar de estabelecerem regras limitantes do poder do povo, visavam garantir a Soberania Popular em face do poder do monarca.
Como exemplos emblemáticos, há a Declaração de direitos da Virgínia 1776 (Virginia bill of rights) e a Declaração Francesa de 1789. Estes documentos expressaram valores que, apesar de não serem novos, impulsionaram panoramas políticos inovadores e tornaram-se vinculantes às constituições seguintes. [8]
O surgimento dessas declarações estava ligado à consolidação da soberania popular: quem peticiona é submisso, mas quem declara é soberano. Logo, o ato de declarar direitos significava a tomada do poder pelo povo.(HUNT,2009, 113-114) [9]
Para efetivação da soberania popular, desenvolveu-se a forma representativa de Estado, na qual os cidadãos, teoricamente com o mesmo peso de validade entre si, votariam em representantes que funcionariam como procuradores do povo.
Todavia, apesar de o constitucionalismo se expandir e virar paradigmático no ocidente, as incongruências do poder popular voltaram a ser notadas e questionadas no século XX através do retorno de teorias que vinculam o poder soberano a um líder.
Carl Schmitt [10] esteve no contexto em que, apesar de a soberania popular ter se estabelecido, a crise da democracia representativa era evidente.
O autor apontou o quão paradoxal era a existência de pluralismo político em um sistema que precisava de decisões uníssonas. A população não poderia ser verdadeiramente representada em um sistema de massas em que centenas (ou milhares) de discursos políticos possuem o mesmo peso de validade. (MOUFFE, 1992, p. 92)
A soberania popular, para ele, era unicamente alcançável pela identidade entre governantes e governados. Dessa forma, a democracia representativa, ao comportar disputa de opiniões diversas que nunca chegariam ao consenso, seria uma contradição cerne da ordem liberal. "o liberalismo nega a democracia e a democracia nega o liberalismo". (MOUFFE, 1992, pp. 91-92).
Schmitt aponta que a igualdade de prioridade entre diversas opiniões coloca a legitimidade Estatal em choque constante com os outros princípios por forçá-los a coexistir no meio político. A saída para essa controvérsia seria a confiança em um líder soberano, único capaz de garantir a identidade do governo com os governados e, portanto, a verdadeira democracia. (MOUFFE, 1992, pp. 93-94)
Essa controvérsia, bem como muitas outras, ainda não foram totalmente superadas pelos teóricos da democracia.
Uma Soberania limitada e multifacetada como no liberalismo é verdadeiramente paradoxal.
Há milhares de atores sociais contraditórios reclamando o uso da soberania, cada qual com o mesmo peso de validade, sem nunca haver sobreposição de um ao outro. Apesar de se dizer que todo poder emana do povo, nunca há a real efetivação da soberania por nenhum dos atores populares, porque estão condicionados a coexistir com ideais divergentes.
Uma das soluções apontadas pelo Estado Democrático de Direito é a reformulação do conceito de soberania, que foi desvinculado da particularidade do indivíduo e atrelado à deliberação racional dos cidadãos, segundo a tradição Habermasiana. Dessa forma, não há um soberano, mas uma soberania “difusa” presente na comunicação social. (MOUFFE, 1992, pp.89-90)
Isso se torna possível a partir do pressuposto de que não existe uma verdade ideal para a sociedade, como defendia Schmitt, mas pontos de vista multifacetados, que juntos podem levar, senão ao desenvolvimento, pelo menos à sobrevivência do estado.
Chantal Mouffe aponta que as contradições do liberalismo não levam ao fim da democracia, mas à sua manutenção, já que ela existe não para um objetivo último, mas como um fim em si mesmo.
A incompatibilidade entre discursos não gera fracasso, mas sim capacidade da democracia liberal se adaptar adequadamente ao clima político incerto da modernidade.
A própria dualidade desse regime é um fator de manutenção, pois é necessária uma eterna articulação, constantemente negociada pela população. A democracia moderna reside, portanto, nesse ponto intermediário, sem nunca haver um ponto de chegada a ser alcançado.
A impossibilidade de alcançar uma plena democracia deve-se ao fato de que no momento que houver uma identificação plena haveria o fim completo dos conflitos, os quais são inerentes à interação humana, desse modo, colocando o regime democrático em risco: “a realização plena da democracia seria precisamente o momento de sua própria destruição” (MOUFFE, 1992, p. 107).
A democracia deve ser sempre um bem visado, mas nunca alcançado, sendo necessário, portanto, o caráter contínuo do movimento democrático em conjunto com o pluralismo.
Dessa forma, há uma reformulação no conceito de soberania popular, que não é mais ilimitada e super poderosa como pensado pelos teóricos modernos, mas sim difusa e eternamente dependente do diálogo.
No estado brasileiro contemporâneo, prevaleceu a soberania ligada à população, mas os limites democráticos sempre são tensionados com o autoritarismo.
Além do autoritarismo ligado a um líder, aparece como desafio lidar com o autoritarismo das massas, que reclamam para si um poder sem limites.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 5 de outubro de 1988
- FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira. Madrid: Trotta, 2001- cap. Constituição medieval
- MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: WFM Martins Fontes, 201
- HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2003.
- BODIN, Jean. Os seis livros da República. Livro Primeiro. Ícone Editora Ltda, 2011.
- LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Rio de Janeiro: Vozes, “Clássicos do Pensamento Político”, 1994.
- ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social - princípios de Direito Político. São Paulo: Penguin Companhia, 2011. Cap I-XII
- DIPPEL, Horst. O constitucionalismo moderno. Introdução a uma história que está por escrever
- HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos – Uma história. “Eles deram um grande exemplo”: declarando os direitos.. Trad. R. Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. (285 p.)MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt. Tradução para uso acadêmico. Em “Revue Française de Science Politique, vol.42, no 1, fevereiro- 1992.