A realidade pandêmica em que vivemos pode facilmente ser considerada uma catástrofe mundial para as diversas áreas do conhecimento humano. Todos sentem diariamente os efeitos negativos, sejam com parentes que se acometem com a doença ou com prejuízos conexos como a solidão gerada pelo isolamento ou a restrição da liberdade de ir e vir, que são absolutamente necessários para controlar a dispersão do vírus da covid. Nesse contexto, a humanidade passa por um momento de simbólico sofrimento, e tendo de se adaptar a uma realidade em que se torna essencialmente dependente da tecnologia para conseguir manter o desenvolvimento humano científico, econômico, social e até político.

Em meio às dificuldades, que de pouco em pouco são superadas com a ajuda dos ambientes digitais e virtuais e da ciência da saúde como um todo, os conceitos clássicos passam a apresentar novas perspectivas e pontos de vista, de forma que tudo se torna um pouco diferente dentro da realidade que vivemos. Tendo como pano de fundo essa perspectiva, discutiremos brevemente, neste post, sobre o conceito da soberania envolvido no atual cenário, priorizando, sobretudo, seu caráter político.

A soberania é uma concepção fundamentalmente moderna, desenvolvida na realidade de decadência do feudalismo e Idade Média e da instituição de Estados Modernos Absolutos, em que a centralização do poder passa a ser mais estruturada, com chefes políticos atuando sobre territórios mais amplos e mais bem divididos, e se efervescem as identidades de nações.

Em que pese a citada concepção moderna, não se pode olvidar que espécies de soberania sempre existiram na história humana, especialmente no que tange à característica de autoridade do conceito.

É praxe do desenvolvimento e organização humanos que se sobrevenham líderes que guiem as sociedades e pactuem com a responsabilidade sobre os povos. Podemos notar a tendência de povos organizados sob chefes que detém a última palavra ou ordem prosperarem sobre povos que não apresentem tal organização, principalmente ao analisarmos o plano bélico das sociedades, sempre muito relevante nas situações de domínio. A união e efetividade das ações de um povo comandado normalmente supera a de um povo que não possui uma hierarquia de comando. Na história antiga e média em geral vemos como os maiores impérios sempre se desenvolveram a partir de grandes figuras de autoridade com características que lembram o conceito de soberania moderno: Alexandre o Grande da Macedônia, Júlio César e Augusto do Império Romano, o rei David do povo Judaico, o faraó Ramsés II do Egito, Gengis Khan da Mongólia, Nabucodonosor da Babilônia, Carlos Magno dos Francos, Tupac Amaru dos Incas, entre muitos outros.

Talvez a grande separação entre a soberania moderna e a dos povos mais antigos seja a diferença no raciocínio de legitimação e de aplicação da soberania em um sistema, isto é, o entendimento mais institucionalizado do conceito, no sentido de Estado soberano, em que o soberano é autoridade de um território e de uma nação. Muito disso também está ligado à evolução do ordenamento jurídico que acompanhou as transformações políticas. É no Estado Moderno que começam a se desenhar mais claramente as ideias de normatização estatal e de constitucionalismo. Um grande marco dessa diferença no desenvolvimento da soberania é a Paz de Vestfália, que findou a guerra dos trinta anos na região germânica e reconheceu a possibilidade de convívio entre povos católicos e protestantes por meio de uma série de tratados entre as “autoridades” que representavam as diversas nações envolvidas.

Outro ponto interessante é a chamada soberania popular, que notoriamente ganha muita força em um momento posterior, com a consolidação da democracia. Nesse sistema, o poder é dado ao povo para exercer a soberania de decidir sobre o seu próprio destino, situação em que a inclusão e a igualdade são priorizadas por meio do voto e dos movimentos populares, assim como da representação política. Interessante destacar que na antiguidade uma espécie de soberania democrática já existira na famosa Ágora Grega de Atenas, embora fosse uma organização completamente diferente da democracia contemporânea, uma vez que na antiga Grécia a cidadania era somente concedida à uma elite específica.

Mas afinal, o que seria a soberania que tanto permeia a organização humana e os desígnios do poder?

Jean Bodin é reconhecido como o primeiro grande autor que discute sobre o conceito e institui academicamente seu estudo. O jurista francês e ávido defensor do absolutismo moderno classifica a soberania como “o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação, que não reconhece superior externamente e nem igual internamente”. Seu pensamento aproxima a soberania com a necessária centralização do poder nas mãos da monarquia hereditária francesa, que não estaria sujeita a condições impostas pela população e não poderia partilhar seu poder estatal com mais ninguém, fosse clero, nobreza ou povo. Situação exemplificada no reinado de Luís XIV, que se autointitulava “Rei-Sol” e possuía completa autonomia e poder sobre a França, era a autoridade suprema.

Jean-Jacques Rousseau foi outro autor que também tratou sobre o tema, agora dentro da perspectiva das teorias contratualistas. Assim como o raciocínio do contrato social, que parte de um acordo entre governantes e governados para tentar alcançar uma maior segurança social e bem-estar, dificultando a corrupção do homem pela sociedade, a soberania também partiria de todos, acordando assim, como e por quem se daria a autoridade que teria como função final proteger a nação e o bem-comum. Em sua visão utópica, o governado estaria sendo beneficiado pela soberania e à priori a acordando. Tal forma de pensamento se aproxima com as noções de soberania popular, uma vez que a forma como se dará e por quem se dará o poder advêm prioritariamente do povo. Um momento de aplicação da soberania popular, mas de forma contraditória, foi o tempo de controle Jacobino do Poder na Revolução Francesa, em que a vontade popular justificava até a decapitação pela guilhotina. Robespierre foi um dos líderes que mais condenou opositores à morte pelo instrumento assustador que soltava uma grande lâmina em queda.

Por último, agora já em um outro momento histórico, com as lições da sangrenta revolução francesa sob o braço, Benjamin Constant desenvolve academicamente ainda mais a soberania. Em linhas gerais concordando com ideias de Rousseau de legitimação do interesse do povo, ele explica que para o cumprimento deste próprio interesse, há de haver limitações à soberania. Constant prioriza a separação dos poderes e mecanismos de representação política que enfatizem os diversos interesses envolvidos no Estado, de forma que os interesses individuais são ponderados tal como os coletivos nas decisões políticas. O interesse público não seria tão somente a vontade coletiva, mas o equilíbrio entre os diversos interesses de todos. O autor imagina um sistema de monarquia constitucional com cinco poderes para se concretizar a soberania. Além do poder Moderador de um Monarca, que poderia equilibrar eventuais extremos, ele idealiza a existência do poder executivo, do poder representativo da continuidade, do poder representativo da opinião e do poder judiciário. A soberania estaria muito ligada também à preservação do Estado sem o uso da violência. Essa ideia se liga bastante às interpretações de soberania democráticas contemporâneas, nas quais a soberania popular é fundamental e ponderada ou exercida por um governo representativo que detém o uso da força tão somente em situações expressas em lei.

A partir disso tudo, podemos compreender a soberania, de forma sucinta, internamente, como a qualidade da autoridade estatal de poder social máximo para ordenar e prevalecer sobre as forças de organização social privadas, e externamente, como a condição de igualdade na relação com outros poderes soberanos ou Estados-Nação. Sendo importantíssimo a visão do interesse público da nação e a vontade e expressão popular no exercício da soberania, assim como mecanismos institucionais que a limitem e organizem, ponderando os diversos interesses, de forma a não ser contrária ao próprio sentido de sua existência, coordenar e representar uma nação.

Após termos discutido conceitualmente e contextualmente a soberania como termo político no tempo e à luz dos pensamentos dos autores supracitados, parecemos mais aptos a tentar entendê-la no cenário atual, o que, ainda assim, não se apresenta tarefa de fácil execução, ainda mais por estarmos no desenrolar da vivência de momento histórico ímpar. Todavia, é perceptível o aparecimento de situações em meio à pandemia que se comunicam com a soberania e cobram posicionamentos dos chefes políticos sobre as formas de exercício da autoridade. Podemos dividir essas situações em questões de soberania interna ou nacional e questões de soberania externa ou internacional, lembrando que a presente análise parte fundamentalmente do contexto brasileiro em relação ao problema de saúde pública mundial.

Tratando primeiramente das questões de natureza externa, um intrigante pensamento é de que as mais fortes barreiras políticas humanas e divisões territoriais não conseguiram impedir que o vírus se disseminasse pelo mundo inteiro. Até países tipicamente fechados como a Coreia do Norte sofreram e sofrem no enfrentamento da doença em seus sistemas de saúde (No fim de junho deste ano, o ditador Kim Jong-un atestou calamidade decorrente da pandemia no país). Independentemente da soberania de cada Estado e sua independência política, o covid-19 se tornou problemática de todos e se espalhou por todo o mundo. Nesses termos, a política de divisão territorial dos povos se comprovou realmente como algo humano, a natureza não visualiza diferentes soberanias, e um vírus não se questiona sobre qual orientação de comando está sujeito. Um dia surgindo na cidade de Wuhan na China e debaixo de uma soberania que alguns afirmam ter optado por esconder casos, como revela o Diretor Executivo da ONG HRW (Human Rights Watch), no outro tomando conta do mundo inteiro e se tornando causa inúmeras fatalidades, independentemente das diferentes e soberanas políticas de enfrentamento.

Nota-se factualmente, a partir dos conhecimentos científicos sobre a propagação de doenças patológicas aéreas, que a conduta de uma pessoa em usar máscaras ou respeitar o isolamento social afeta diretamente na probabilidade de outra se contaminar, e isso vale também para a analogia internacional. Um país soberano que opta por uma política de enfrentamento contra a ciência da saúde, automaticamente está aumentando a probabilidade de contaminação em outro Estado independente dele. Dentro deste aspecto, nos parece que os diferentes Estados ganham certa legitimidade em questionar os limites das soberanias uns dos outros, mesmo considerando a saúde pública de cada país como sendo, em regra, questão de soberania interna.

Isso pôde ser notado no trabalho incessante da organização mundial da saúde (OMS) em cobrar de todos os países a observância das recomendações e ordenar as medidas preventivas cientificamente comprovadas. O problema foi tão além de divisões estatais, que a OMS chegou a publicamente criticar e de certa forma fiscalizar o enfrentamento da doença nos diversos países, ação que poderia ser entendida como nítida invasão de soberania em contextos diferentes.

No entanto, como esperado, a atuação da organização não foi absoluta, e encontrou limites mais rígidos nas soberanias de cada país para concretamente tomar políticas de enfrentamento. No fim, cada Estado teve a liberdade soberana de decidir sobre as políticas em seu território e para sua nação, mesmo correndo o risco de ser internacionalmente criticado e até as vezes ridicularizado.

A política das vacinas foi e está sendo um grande exemplo do exercício da soberania de cada país, cada um dentro de suas possibilidades e de acordo com seu entendimento, ingressou diferentemente no investimento para o desenvolvimento da medida preventiva e na compra das vacinas, inclusive sobre quais comprar ou investir, o que impactou diretamente na imunização de cada população.

Alguns optaram fortemente pela cessão de recursos de todas as espécies para as pesquisas, que majoritariamente foram realizadas por empresas farmacêuticas privadas. Tais países receberam os frutos disso com prioridades no recebimento das vacinas, outros, que não conseguiram economicamente investir na mesma proporção, ainda sofrem na espera de sua oportunidade ou de ajuda internacional. Também houve casos de Estados que demoraram a confiar na medida preventiva da imunização vacinal, a despeito da ciência, e preferiram investir os recursos em pseudociências não comprovadas, que poderiam trazer resultados ou não, e arcaram com as consequências de suas decisões, sobretudo no que diz respeito às mortes que poderiam ser evitadas, caso fosse tomado um direcionamento diferente de controle da crise. Em todas estas ocasiões, é possível identificar a autonomia e soberania de cada país em como enfrentar a pandemia no que diz respeito à vacinação, todos possuindo igualdade jurídica internacional para definir os caminhos que iriam seguir.

Como vimos antes, a soberania foi se lapidando e se adequando aos novos modelos políticos, prevalecendo suas formas que melhor comportavam os interesses das sociedades. Ao analisarmos por outra perspectiva, poderíamos inferir que os momentos em que a soberania não mais satisfazia os interesses políticos, coletivos ou individuais, eram os marcos para seu desenvolvimento e evolução?

A história nos argumenta que sim.

Vejamos, a espécie de soberania na Idade Antiga e Média funcionava de uma maneira que satisfazia os interesses daqueles povos, até que com o desenvolvimento de Estados absolutos os interesses mudaram, o contexto passou a requerer poderes mais centralizados e divisões territoriais mais bem demarcadas, como explica Jean Bodin. Em outro momento isso não mais era suficiente, a vontade popular tinha anseio de ser ouvida, e a partir daí a soberania novamente se lapidou para reconhecer a soberania popular, como enuncia Rousseau. Com as tensões da Revolução Francesa e o medo da desorganização do poder soberano, os interesses começaram a procurar soluções que institucionalizassem e equilibrassem melhor o exercício da soberania, como nos indica Constant.

Será que o atual momento de crise em que estamos vivendo pode representar uma mudança de interesses semelhante às discutidas aqui? Será que o interesse mundial seria por uma forma de soberania que globalmente fosse mais unida e respondesse dentro de uma mesma lógica de ação unificada? Será que o próximo passo da soberania seria uma pequena abdicação da autonomia de cada Estado para se sujeitarem a um ordenamento jurídico maior que versasse sobre princípios maiores da humanidade, uma norma fundamental acima da constituição de cada país? E seria tal ordenamento capaz de em situações de crise como a pandemia organizar os Estados como um todo para um enfrentamento global?

Dado isso, se põe em questionamento a eficácia da forma de soberania internacional apresentada no momento quando visualizamos a humanidade como um todo. Será que se os Estados soberanos estivessem mais fortemente submetidos a acordos internacionais ou decisões supraestatais, a presente crise pandêmica poderia ter tido um resultado menos destruidor, de forma a diminuir as fatalidades e prejuízos?

Tais questionamentos, ainda distantes da nossa realidade, aparecem em voga na situação conturbada que passamos, e mesmo que pareçam apenas previsões conspiratórias sobre o futuro, só o fato de racionalmente surgirem pode significar que o conceito de soberania pode vir a novamente se lapidar em breve.

Agora, e como último ponto a tratar, nos resta a apresentação da soberania interna e como ela se deu e se dá com a proliferação do vírus. No referente a este tópico, cabe visualizar estritamente a situação brasileira, de forma a verificar o que tem ocorrido no nosso país.

A principal percepção que podemos ter em relação à soberania interna neste momento está ligada ao protagonismo exercido pelos governadores dos estados da federação no efetivo enfrentamento da pandemia, o que gera um questionamento maior, se esta constatação reforça a divisão de competências constitucionais ou enfraquece a liderança soberana do país.

Sem adentrar especificamente na legalidade da divisão das competências, para não fugir do tema objeto deste post, podemos interpretar a situação ora vivenciada a partir do estudo que realizamos aqui.

Nesses termos, cabe sustentar que o poder soberano, em todas as suas concepções, liga uma autoridade para comandar um povo, o que pressupõe um governante e um governado, e este governante ou soberano, sem dúvidas adquire a responsabilidade pelas decisões e pelos fins que almeja, assim como pelo que ocorre com o seu povo. Na nossa situação, dados os percalços enfrentados nas tentativas de centralização e uniformização de ações para o enfrentamento da pandemia no âmbito do poder soberano central, o desenrolar dos fatos culminou na afirmação da independência federativa para lidar com um problema de âmbito nacional, optando-se por uma clara divisão de soberania. A grande questão que emergiu nessa divisão de soberania foi a insegurança jurídica, pois em um só país cada lugar passou a adotar medidas de enfrentamento diferentes, inclusive no que diz respeito ao arcabouço normativo. Nesses termos, pode-se dizer que a soberania do poder central se enfraqueceu, talvez pela falta de um soberano que indicasse o caminho e unificasse o seu povo.

Referências Bibliográficas

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