O que nos vem à cabeça quando pensamos em povo? A ideia de povo abriga uma ideia de homogeneidade e autenticidade. Povo brasileiro, povo nordestino, povo chinês, povo basco. Um grupo de pessoas que compartilham certas características de ordem étnica, geográfica e/ou histórica que levam à classificação. Essa identidade, seja ela assumida espontaneamente ou artificialmente criada, geram repercussões, muitas delas políticas. Para movimentos separatistas, para eleições e reivindicações de direitos.

O ideário Iluminista, apesar da elevação do indivíduo, da razão, e do que pregavam as célebres obras dos contratualistas e outros modernos, a liberdade, a igualdade e os direitos políticos em especial não eram para todos, sendo a soberania do povo portanto, limitada àqueles constituintes do seleto grupo chamado de “povo”, e não para todos os que formavam sociedade.

A composição desse “povo” muda, por muito foi-se considerada a plebe, os pobres, os súditos em geral, e nada tinha a ver com a nobreza e outros de alta classe. Modelli[1] nos lembra que essa utilização da palavra foi mudando na medida que o entendimento de soberania popular e de povo mudou, “passou a não apontar mais para a população concreta (objeto do governo), e sim para certa entidade abstrata, para uma pessoa ideal (sujeito do governo)”.

No Brasil, após a proclamação da independência o legislativo adota parcialmente essa ideia, mas através de concepções distintas de “povo” (plebs e populus) acerca de parcelas diferentes da população. O autor faz uma breve descrição do período demonstrando que a restrição do verdadeiro povo “soberano” era mais restrito do que se fazia parecer, deixando de ser o pobre súdito, mas aqueles com poder de decisão e influência :

“A presença da multidão, ao carregar os deputados, ultrapassou o limite linguístico que eles próprios defendiam – o conceito de povo diferenciado entre plebs e populus. Essa postura deixa evidente que a noção de povo não excluía apenas escravos e indígenas bravos, mas que também, a depender do momento, a população livre pobre poderia ser entendida como não cidadãos, principalmente, em situações em que exigissem ativamente a participação política. A galeria poderia assistir e ser usada como argumento de legitimidade, mas não poderia se movimentar de forma a interferir no debate legislativo.”(MODELLI, 2018)

Muito se passou desde 1823 no Brasil, hoje a participação tem caráter “universal” na vida pública, dentro de uma democracia representativa, em um “governo do povo”. Essa nova conjuntura nos leva a pensar que soberania popular está para todos que da população fazem parte, resta saber até que grau trata-se de um conceito abstrato e/ou surge de forma mais concreta na vida daquele que faz parte do “povo”.

Preceituam, respectivamente, os arts. 1º, I e parágrafo único, da Constituição Federal, que: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania" e "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" (BRASIL, 1988). Há, pois, manifesta relação de complementaridade e reciprocidade entre os conceitos de povo, democracia e soberania.

A conceituação da terminologia "povo" contém, em si, a contraposição entre os aspectos material e abstrato [2]. Haja vista a generalidade da expressão, inviável é a fixação de uma definição específica, pois há um espectro de ideais passíveis de serem abrangidos pelo vocábulo "povo". Objetivando associá-lo com a concepção de legitimação [3], Friedrich Müller, em sua obra "Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia", alude a quatro acepções: povo ativo, povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo como ícone e povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado.

De acordo com Müller, a definição de "povo ativo" compreende o povo sob o prisma dos direitos políticos [4], previstos, no ordenamento jurídico pátrio, no Capítulo IV, da Constituição Federal. Prescreve o art. 14, caput, do diploma constitucional: "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (...)" (BRASIL, 1988). O termo, nessa perspectiva, compreende os sujeitos que, na titularidade de seus direitos políticos, exercem o direito ao voto [5]. Converge, especificamente, ao período eleitoral, porquanto, posteriormente, impera a concepção de povo como instância global de atribuição de legitimidade [6].

Esta última se refere ao vínculo entre governante e governados e, por isso, atrela-se ao ideal de legitimação, a qual é jurídica, não política [7]. Matheus Passos ressalta que a máxima constitucional prevista no art. 1º, parágrafo único, em conformidade com a qual "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" relaciona-se à concepção de povo como instância global de atribuição de legitimidade [8]. De acordo com Amanda Albano, "Müller destaca a peculiaridade deste uso que, além de atuar ativamente, também legitima o ordenamento jurídico" [9].

A terceira concepção apresentada por Müller é o povo como ícone. Conforme expõe Matheus Passos, ante a inexistência de legitimidade jurídica entre governante e governados, aquele se vale do ideal de povo como argumento genérico em uma tentativa de validação do respectivo cargo [10]. Amanda Albano enfatiza que "Esse sentido mítico implica na criação de um povo - tal qual nos moldes necessários a garantir a intangibilidade de críticas ou questionamentos ao sistema vigente" [11]. Há, portanto, referência ao povo com o propósito de mascarar a ausência de legitimidade.

Por sua vez, a concepção de povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado, consoante Matheus Passos, atrela-se à garantia, pelo Estado, dos direitos fundamentais [12]. Compreende a relação de recíproca dependência entre a atribuição de deveres e obrigações e o resguardo de direitos [13]. Tal ideal remete à circunscrição territorial, de forma que "(...) todo homem, não importando se nacional ou não, desde que em território de Estado democrático será destinatário de benefícios e proteção" [14].

As conceituações de Friedrich Müller amoldam-se a diferentes circunstâncias, sendo certo que não há como precisar, de forma imutável, a acepção de povo dissociada da conjuntura histórico-social. Tal como ocorre no Direito e na política, há dinamicidade. Ademais, existe a possibilidade de que os diversos conceitos confluam e, por conseguinte, em um mesmo cenário, sejam aplicadas diferentes definições.

Talvez, a conceituação mais utilizada na política seja a de povo como ícone. Infelizmente, não raras são as situações em que a referência ao povo é utilizada ao avesso do que se espera do ideal democrático. Isto, pois o propósito dessa alusão é encobrir o vácuo de legitimidade. Cria-se uma simbologia que, teoricamente, seria capaz de supri-lo. Há a falsa sensação de que a mera menção ao povo, abstratamente, materializa a legitimidade, quando, na verdade, esta inexiste.

A estrutura terminológica de "democracia" já demonstra a intrínseca e evidente relação desta com o povo. Etimologicamente, democracia é o "governo do povo". Todavia, será que há concretização de tal preceito? O povo, de fato, governa? De acordo com Matheus Passos, em referência a Friedrich Müller, para a materialização da democracia, o ideal é que se oportunize a governança do povo, por intermédio dos recursos adequados e, por conseguinte, ter-se-á a atuação efetiva do cidadão [15]. Deve-se analisar o conceito democrático em sua mais profunda essência, conferindo-lhe solidez, de modo que a democracia, nas palavras de Friedrich Müller, é "nível de exigências" e envolve, portanto, o perfazimento do interesse popular [16].

Devido à amplitude terminológica, historicamente, o vocábulo soberania comportou diversas facetas, dentre elas a dualidade político-jurídica. Vincula-se, de fato, à titularidade do poder constituinte [17], mas o cerne da discussão volta-se à extensão dos efeitos advindos dessa titularidade, isto é, se a soberania seria absoluta ou limitada. Em conformidade com o professor Alexandre Costa, "enquanto a soberania continuou a ser compreendida como um poder absoluto, ela não conduziu a paradoxos" [18]. Portanto, o autor evidencia que a mudança da perspectiva conceitual trazida por Rousseau, o qual, em contraposição a Hobbes, passa a encarar a soberania como poder do povo e não do Estado, não é mudança que incide diretamente sobre a essência da conceituação do termo [19]. Há transformação apenas sob o viés de detenção do poder, que se transporta do Estado para o povo, de modo que não se destitui o caráter ilimitado [20]. De acordo com Alexandre Costa, é o constitucionalismo do século XVIII a causa geradora da transformação do entendimento de soberania, a qual "deixa de ser um poder de autogoverno para tornar-se um fundamento do poder de governo" [21]. O autor pontua que, ao congregar o governo limitado com a soberania ilimitada fundada em uma norma suprema, os constitucionalistas acabam por gerar um ideal paradoxal, que, simultaneamente, vincula o governo "a duas supremacias distintas: a do povo e a da lei" [22].

Nos atuais moldes da sociedade, a maneira mais direta de se fazer valer parcialmente a soberania popular é pelo voto. Sendo ele delimitado por certas exigências redigidas na Constituição Federal. Pessoas detentoras de um rol de características, tais como a idade, que vão às urnas em períodos definidos de tempo para eleger pessoas pré-determinadas, levando-nos a questionar se de fato a mínima participação nesse processo de decisão é de fato, ser soberano enquanto povo, visto que no sistema atual há uma passagem de poder soberano entre governados e governantes. Numericamente falando, milhões são representados por poucas centenas.

O voto é o ponto de ligação nessa passagem que nos leva ao debate de representação política. O cientista político, Luís Felipe Miguel [23], desenvolveu em seu artigo “Representação Política em 3-D - Elementos para uma teoria ampliada da representação política” uma análise crítica acerca do tema dizendo que a forma como a essa representatividade é vista sob a égide do “senso comum”, do “ordenamento jurídico” e da “ciência política”, “estão centradas no voto e na primeira dimensão, positiva, do exercício do poder: trata-se do processo de escolha de delegados para que tomem as decisões em nosso nome.”

Trabalhando em cima da teoria das três dimensões do poder baseando-se principalmente nos trabalhos de Robert Dahl, Bachrach, Baratz e Steven Lukes,  Miguel sintetiza a teoria sob a perspectiva de Lukes:

“(...) a compreensão do poder deve levar em conta três dimensões: 1) a capacidade de tomar decisões ou de vetá-las; 2) o controle sobre a agenda, isto é, a determinação das questões que serão alvo de decisão; e 3) a capacidade de anular o conflito social, impedindo que indivíduos e grupos sociais tomem consciência de seus verdadeiros interesses.”

O que se pensa é a representatividade política em cima dessas facetas do poder, onde a figura de povo tem sua influência por demais reduzida. Como o autor coloca que no momento de voto tem um caráter de “efetivação de accountability” sendo as pessoas capazes de analisar e rechaçar determinada proposta que foi oferecida e aceita no período eleitoral passado, por exemplo. Ele cita com veemência o papel da mídia na proposta de agenda, acreditando que ela também entra nessa equação de poder por ser um espaço de representação política, uma ferramenta capaz de influenciar pautas e é plataforma para pessoas e grupos.

Essa segunda dimensão desenvolvida por Bachrach e Baratz trata do lado oculto do poder político, não tratando-se somente de tomar decisões, mas também ter controle da agenda pública (MIGUEL, 2003). Miguel acredita que para uma “democracia representativa mais próxima do ideal da soberania popular” deve abraçar essa dimensão, não basta um povo votante, é necessário que ele seja capaz de não só estar presente na formação de agenda,  mas assim como pluralidade que compõe o “povo”, e se faça ver nas tomadas de decisão e debate, para que haja conflito construtivo através da apresentação de interesses variados, ou seja, que haja representatividade da diversidade dentro da entidade que se chama “povo”.

As 3 dimensões de poder não são estruturalmente os únicos impeditivos de soberania popular mais plena, a complexidade presente na concepção povo soberano homogêneo e uno por si só inviabiliza essa noção.

Vistos os conceitos de povo, democracia e soberania, traz-se a indagação do professor Matheus Passos: afinal, o povo é "mero" titular do poder ou, de fato, exerce-o? [24]. E, ainda, em referência ao professor Alexandre Costa, se, de fato, exerce-o, como se congrega com  a simultânea soberania legislativa? [25].

REFERÊNCIAS

[1] MODELLI, Fernando dos Santos. O conceito de povo no Brasil: populus e plebs na Constituinte de 1823. 2018. Tese (Doutorado) - Curso de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

[2] PASSOS, Matheus. "Quem é o povo?" - 2ª parte. Youtube, 26 de abr. de 2016. Disponível em: “Quem é o povo?” — 2ª parte.

[3] PASSOS, 2016.

[4] PASSOS, 2016.

[5] PASSOS, 2016.

[6] PASSOS, 2016.

[7] PASSOS, 2016.

[8] PASSOS, 2016.

[9] SILVA, Amanda Albano Souza da. "Fundamentos do pós-positivismo: "quem é o povo?" de Friedrich Müller". PUC Rio, 2015. Departamento de Direito. Relatório-Resumo Projeto de Iniciação Científica. P. 4. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/dir/dir-amanda_albano.pdf.

[10] PASSOS, 2016. Disponível em: “Quem é o povo?” — 3ª parte.

[11] SILVA, 2015. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/dir/dir-amanda_albano.pdf.

[12] PASSOS, 2016. Disponível em: “Quem é o povo?” — 4ª parte.

[13] KILIAN, Kathleen Nicola. Considerações sobre o conceito de "povo" e poder comunicativo no Poder Judiciário. Conteúdo Jurídico, 2015. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43299/consideracoes-sobre-o-conceito-de-quot-povo-quot-e-poder-comunicativo-no-poder-judiciario. Acesso em: 09 de set. de 2021.

[14] KILIAN, 2015.

[15] PASSOS, 2016. Disponível em: “Quem é o povo?” — 5ª parte.

[16] KILIAN, 2015.

[17] MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 9. ed. Rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2021.

[18] COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/o-poder-constituinte-e-o-paradoxo-da-soberania-limitada/. Acesso em: 09 de set. de 2021.

[19] COSTA, 2011.

[20] COSTA, 2011.

[21] COSTA, 2011.

[22] COSTA, 2011.

[23] MIGUEL, Luis Felipe. Representação Política em 3-D - Elementos para uma teoria ampliada da representação política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, n. 51, p. 123-140, fev. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/KsmNcpQnt7TTB5TxGkjQBQx/abstract/?lang=pt#

[24] PASSOS, 2016. Disponível em: “Quem é o povo?” — 5ª parte.

[25] COSTA, 2011.