... que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Essas são as simbólicas palavras dispostas no 1º artigo da Constituição Federal de 1988, as quais evocam um dos principais termos do debate de justificação do poder: a soberania popular. No Brasil, aliás, a questão já era analisada desde a lei fundamental do Império. Em 1857, o Marquês de São Vicente definia a soberania como "o poder e a independência de um povo que pertence a si mesmo, o poder em sua origem, em seu ser primitivo, a força inteligente e suprema da sociedade, ainda não delegada" (PIMENTA BUENO, p. 84, 2002). Para o jurista, ainda que esse poder fosse delegado a uma dinastia hereditária, a lei fundamental teria acertado ao prescrever "o dogma irracional dos Estados ou povos patrimoniais, do intitulado Direito Divino".

De fato, como veremos a seguir, o conceito de soberania foi inicialmente atrelado à autoridade celestial. O surgimento do enfoque teórico da soberania popular, e posteriormente da visão de sua inalienabilidade, entretanto, transformariam radicalmente essa ideia. A ascensão do constitucionalismo viria a consolidar tal convicção, ao mesmo tempo que a substituiria por outro dogma, a da autoridade da lei. Resta saber como se deu esse desenvolvimento na história da filosofia política, sem nunca se propor a seguinte questão: Quando dissemos que o povo é soberano, quem é verdadeiramente esse povo ao atribuímos soberania?

I - Os "antecedentes" da soberania

Com o início do processo de declínio das sociedades clânicas e início da criação dos Estados, que para Carneiro se deu num contexto de “condições culturais, demográficas e ecológicas” relacionados a uma “atividade bélica intensa em espaços agricultáveis circunscritos”, em que várias populações foram conquistando umas as outras e aumentando o tamanho dos reinos e níveis de organização (Flannery e Marcus também concordam que “somente a dominação explicaria esse trânsito para unidades tão complexas como os reinos”), foram sendo criadas novas formas de organização capazes de se opor aos reinos criados, sendo necessário “deslocar cada vez mais poder da tradição para os governantes, capazes de otimizar o uso dos recursos naturais e dos recursos humanos, viabilizando que uma unidade política pudesse ser vencedora na corrida expansionista que caracterizou esse ambiente inicial de múltiplos reinos” (Costa, 2020).

Por sua vez, na ordem medieval “uma multiplicidade de unidades políticas se organizou de forma politicamente descentralizada, mas com uma unidade cultural relativamente alta”. Não havia Estados unitários, um governo central, mas uma rede de nobres leais a um rei, por meio da qual “era possível consolidar as forças dos nobres em um exército com força suficiente para proteger os reinos de ameaças externas e internas”. Esse rei tinha prestígio, mas não tinha poder legislativo e nem autoridade para revogar as tradições (Costa, 2020).

O período medieval foi um “momento de adaptação social à fragmentação do Império Romano em uma série de pequenos reinos”, por isso a sua filosofia favorecia “o conservadorismo moral como fonte de estabilidade social”. Agostinho, nesse contexto, pregava que deveríamos aceitar os papéis sociais que a tradição cristã nos impunha, seguindo as orientações de Deus, que se deixava conhecer não pela razão, mas pela revelação dos textos bíblicos. “As autoridades religiosas deveriam dedicar-se à salvação das almas e não ao governo terreno.  Quem define os governantes é a providência divina e, por isso, não se deve questionar as autoridades instituídas" (Costa, 2020).

Com a reforma gregoriana, a igreja católica passou a ser autônoma, governada por um poder centralizado, e essa forma de organização foi a precursora dos Estados nacionais, que reproduziram o mesmo padrão de centralização (Berman 2001).  A escolástica, filosofia das universidades, surgiu nessa época, tendo seu principal representante São Tomás de Aquino, para quem seria possível “harmonizar o cristianismo com a filosofia aristotélica”, sendo que a razão poderia nos permitir conhecer uma parte da ordem natural pelo exercício do logos. Para ele, havia certos direitos naturais, independentemente de sua aceitação pelo Estado, e “a monarquia era a melhor forma de organização política quando o governante é justo”, sendo que outras formas seriam preferíveis somente quando o rei fosse um tirano em “grau máximo” (Costa, 2020)

Na Europa renascentista foi-se desfazendo a unidade cultural que reinava até então no período medieval. Daí surgiu a reforma protestante, que segmentou a unidade medieval e criou núcleos de tensões entre católicos e protestantes, conduzindo a guerras civis. Se de um lado “os sistemas conceituais e as ordens simbólicas do período medieval conseguiam foi promover uma integração das populações contra inimigos externos, por meio da formação de alianças de nobres, constituídas pela lealdade comum a um rei”, de outro era ineficaz para apaziguar as tensões internas, pois “sua organização era baseada em uma unidade religiosa e cultural que havia sido dissolvida pela reforma” (Costa, 2020).

Nesse contexto, surgiram diversas guerras civis com a “participação intensa de potências estrangeiras, que se enfrentavam como defensoras ou opositoras da autoridade papal”.  Com isso, surgiu um tipo de conflito incomum naquela conformação social, súditos insurgentes contra reis que teriam perdido a legitimidade por violar as tradições que lhes conferiam autoridade. Basta que se relembre aqui o discurso apologético de La Boétie pela desobediência civil em nome da liberdade ("não existe nada mais caro para o homem do que readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de animal voltar a ser homem" [LA BOÉTIE, p.36, 2009]). Essa situação gerou de ambos os lados uma contestação não da monarquia em si, mas da legitimidade de vários dos reis da época, retornando-se, inclusive, com a ideia de que havia um direito ao tiranicídio: depor ou matar reis que se tornavam déspotas por não respeitarem os direitos naturais (Costa, 2020).

II - A "invenção" da soberania

A questão da soberania veio à tona nessa época, principalmente. Na França, os protestantes defendiam a supremacia do povo em relação ao rei. Bodin defendia que a soberania do monarca, um poder absoluto e perpétuo, não vinha de uma autoridade dada pelo povo, pois isso faria com que o monarca fosse um “mero oficial de um governo popular”. “Somente pode ser considerado soberana a autoridade que exerce poder em nome próprio e em toda República só é possível haver uma autoridade desse tipo”, sendo que nas outras formas de governo diferentes de uma monarquia, haveria “uma disputa incessante para o exercício do poder”. Os soberanos podem impor leis aos súditos, independentemente do consentimento destes, e não estão sujeitos a nenhuma lei ou autoridade, não podendo, assim, serem destituídos de forma legítima por ninguém. Porém eles devem seguir as leis da natureza e de Deus, além de respeitar a liberdade das pessoas e a fruição de suas propriedades (Costa, 2020).

Hobbes, por outro lado, afirmava que o poder soberano poderia ser adquiro pela força ("como quando um homem obriga seus filhos a se submeterem" [HOBBES, p. 140, 2012]) e pelo contrato, oferecendo “uma das primeiras tentativas de fundar o poder político na autoridade dos indivíduos, e não na autoridade do povo ou no papel natural dos governantes”. Segundo o pensador inglês, concordariam entre si e se submeteriam "voluntariamente a um homem, ou uma assembleia de homens, esperando serem protegidos contra todos os outros" (HOBBES, p.141, 2012). Justificando o poder real não na tradição, mas sim nas “características naturais de cada indivíduo, entendido como racional e autônomo”, Hobbes instituiu à filosofia política moderna a autonomia individual, sendo essa a origem do poder legítimo (Costa, 2020).

Cria-se, assim, o soberano ao mesmo tempo em que se cria a sociedade “e, portanto, a população não teria direito de destituir o rei”. Para reconstruir a sociedade depois de tantas guerras religiosas, necessário seria um poder soberano concedido pela autonomia individual (contratualismo moderno), que estaria acima das tradições, e “que reduzia o direito natural a certos princípios que não eram cogentes e que advogava o primado da política sobre a religião e da legislação sobre os costumes”. Apesar da rejeição, modernamente o discurso de Hobbes se encontra presente: “a sociedade deveria ser pensada como uma agregação artificial de indivíduos autônomos e livres”, que delegam poderes a ela. Natural não é mais a sociedade, a organização política, mas os direitos do indivíduo livre e racional, que não aceita verdades que não sejam comprovadas objetivamente, e que só poderá ter sua liberdade limitada pela sua vontade ou pela razão. Porém, fica a questão de saber como a vontade política poderia limitar essa liberdade, apesar de que ele indica que ao exercer racionalmente a nossa autonomia, certamente criaríamos um governo soberano (Costa, 2020).

Para Locke, o legislativo era o poder supremo ao qual todos os outros deveriam estar subordinados, mas que deveria respeitar o direito natural que, além do respeito à vida e a propriedade, determinava que “o governo deveria ser exercido por meio de leis permanentes, conhecidas do povo e aplicadas por juízes imparciais”. Com inspiração em Montesquieu, o constitucionalismo do século XVIII apresentou pela primeira vez uma “possibilidade de um direito positivo supraestatal limitar o poder legislativo”. Porém, uma soberania limitada seria uma contradição, uma deflação do termo que vinha sendo entendido ao longo da modernidade. Montesquieu usava soberania como sinônimo de poder de governar, podendo caber a qualquer um que governasse (povo, parte do povo ou monarca) (Costa, 2011).

Nas teorias da soberania das perspectivas contratualistas, o poder soberano era sempre absoluto, ainda que sua titularidade pudesse ser atribuída ao Estado, povo ou nação. Na visão liberal, havia um poder legislativo de caráter supremo que poderia ser destituído quando ele violasse os direitos naturais, mas ainda assim, não havia a possibilidade de o povo exercer a atividade legislativa direta. A partir de Rousseau, há um deslocamento da soberania estatal para a popular, por meio da vontade geral, cuja principal característica seria a indivisibilidade ("Pela mesma razão que a soberania é inalienável, é indivisível, porque a vontade é ou não é geral" [ROUSSEAU, p.42, 2011]). Segundo o filósofo suíço, era o povo quem delegava poder aos magistrados escolhidos por eles, e nunca estes. No entanto, já apontava Rousseau no Contrato Social a necessidade de limitar o poder do soberano "que não transpassanem pode transgredir os limites das convenções gerais" (ROUSSEAU, 2011).

III - Os "limites" da soberania

A partir do constitucionalismo, houve uma mescla entre liberalismo e democracia, em que se tentou "estabelecer um governo limitado fundado em uma soberania ilimitada e estruturado por uma lei suprema”, e assim submeteram o governo a “duas supremacias distintas: a do povo e a da lei” (Costa, 2011).

O abade Sieyès criou a categoria do poder constituinte, para “justificar a possibilidade de o terceiro estado realizar a convocação de uma Assembleia Nacional para redefinir a constituição francesa”, que não poderia ser alterada. Como não havia mecanismos para que pudesse haver uma mutação constitucional, era preciso que ela fosse justificada diretamente na soberania, “como um poder constituinte de titularidade da nação”. Uma maioria poderia convocar uma Assembleia Nacional para estabelecer uma nova constituição e teria um poder ilimitado na “divisão dos poderes e na estruturação do Estado” (possibilidade de se delegar a soberania popular), mas “cujo poder se esgotaria no momento do seu exercício” (Costa, 2011).

O poder absoluto da soberania só encontra limite no direito natural, e por isso é um conceito mais político do que jurídico, pois este pressupõe poderes limitados. Kelsen vai afirmar que “o discurso jurídico só faz sentido quando se parte da ficção de que existe uma norma fundamental, cuja existência é paradoxal justamente por romper a noção de que a validade de uma norma exige sempre um fundamento externo a ela”. Na política, o poder soberano é a expressão de um poder ilimitado. Para Schmitt, a soberania é absoluta e o poder constituinte é uma dimensão dela. “Politicamente, não faz sentido em falar em uma validade absoluta de qualquer norma, inclusive das próprias constituições, visto que elas somente valem em decorrência de uma decisão”, ou seja, se para Kelsen há uma norma que fundamenta uma ordem, para Schmitt “acima de toda norma existe uma decisão política” (Costa, 2011).

A noção de soberania da lei, e não de um conjunto de homens veio com a “inovação dos EUA em posicionar uma constituição jurídica escrita acima de todos os poderes políticos”. Essa inflexão surge como tentativa de reduzir o ímpeto revolucionário da época (James Madison escreveria que os Federalist Papers buscavam assegurar o bem público e os direitos individuais do faccionismo), reduzindo a soberania popular ao poder constituinte, um poder episódico. Uma soberania deslocada para lei, que admite somente um direito natural acima dela, mas que precisa de uma autoridade para elaborá-la. “Como pode esse poder soberano se anular no momento em que a constituição é elaborada?” (Costa, 2011).

Se a teoria liberal somente reconheceu ao povo o poder de estabelecer o poder legislativo, para Sieyès a soberania popular não poderia se esgotar num momento passado, para justificar uma revolução e dar a maioria a possibilidade de alterar a constituição. Na tentativa de reduzir esse ímpeto revolucionário, o constitucionalismo reduziu a soberania popular ao poder constituinte, um poder episódico. Um elemento que está sempre no passado, “estacionado no tempo, que aprisiona o momento legitimador de uma ordem jurídica em um início mitológico” (Costa, 2011), um poder fictício que apela à crença e que somente será legitimado retroativamente por um direito futuro (Derrida, 2018).

Caso a soberania fosse, de fato atrelada ao poder constituinte, então soberano somente foi o povo que delegou poder às assembleias constituintes, como no caso brasileiro, em 1987 e nas outras ocasiões em que foram escritas constituições. Não faz sentido falar que hoje o povo é soberano, se ele não pode tomar nenhuma decisão, ainda que seja unânime, ficando restrito somente ao controle judicial ou às emendas parlamentares a serem promovidas. E mesmo no controle judicial, há ainda posicionamentos de que a soberania dos que fizeram a constituição como ela fora pensada à época deve ser mantida, como no caso dos originalistas, por exemplo. No caso americano, numa constituição de mais de 200 anos, deveríamos então considerar a vontade de um povo de outro século, desconsiderando a vontade do povo atual e as mudanças sociais por que passam uma sociedade. Dessa forma, a soberania [vinculada ao poder constituinte] permanece no discurso jurídico e político apenas como fundamento místico da autoridade dos representantes que falam em nome do povo, mas não lhe é reconhecido qualquer papel (cri)ativo no exercício da política”, não passando de um discurso de matriz liberal para manter conversada as estruturas de poder e impedir que se altere as estruturas desde a fundação daquela ordem (Costa, 2011).

Bibliografia

COSTA, A. A. (2011). O PODER CONSTITUINTE E O PARADOXO DA SOBERANIA LIMITADA. Teoria e Sociedade.

COSTA, A. A. A invenção da soberania. Fonte: Filosofia do Direito: https://filosofia.arcos.org.br/modulo07-2/, 2020.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2012.

DERRIDA, J. Força de Lei. São Paulo: WMF - Martins Fontes, 2018.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2009.

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito Público Brasileiro. São Paulo: Ed. 34, 2002.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.