Após diversos posts, discussões em aula síncronas e leituras, observamos enormes lacunas no nosso conhecimento jurídico em virtude da prevalência de concepções formalistas e dogmáticas no curso de Direito. A disciplina de Filosofia do Direito foi uma agradável e grata surpresa em pleno final de curso (estamos entre o 8º e 9º semestre). Aprendemos que o Direito não pode ser estudado de modo restrito, como um conjunto de normas jurídicas. Existem novas formas de aprendizado como a poesia e a literatura, ainda que haja juristas que achem o direito uma ciência que não comporta o surrealismo da poesia.

Já dizia o mestre Warat que o sonho e a poesia são a contrafigura da imaginação formal. O formalismo, tão presente no ensino jurídico, está fundamentado numa visão imobilista e imobilizada que “escamoteia a materialidade das coisas e das próprias imagens para pensar o mundo a partir de exemplos tácitos e imagens mascaradas”1. Estas máscaras formais podem esconder o que realmente está por trás da norma jurídica. A palavra instituto jurídico, reinante no direito civil, é um exemplo dessa imagem mascarada. No século passado, o instituto do casamento não podia ser questionado por ser, simplesmente, um instituto em si. No fundo, as máscaras jurídicas servem para camuflar (ou escamotear, nas palavras de Warat) um naturalismo ou uma ideologia, seja ela conservadora ou progressista.

Nesse sentido, durante o curso de Filosofia do Direito, vimos a crise da modernidade ao encarar as diversas verdades e não a verdade absoluta, além da constatação de que os vários discursos jurídicos como, por exemplo, a soberania popular, o poder constituinte e a norma fundamental, não são devidamente desnudados pelo senso comum dos juristas. Por último, chegamos aqui neste post, que irá analisar o sonho ou poema “O Grande Inquisidor” de Fiodor Dostoiévski. O objetivo deste post será extrair um desvelamento de alguns conceitos jurídicos modernos a partir de um enfoque extrajurídico e, assim, transpor as barreiras (máscaras) simbólicas do formalismo jurídico.

O texto “O Grande Inquisidor” nos apresenta uma confrontação entre duas ideologias, a de Cristo e a do Inquisidor. Apesar de se passar num contexto religioso, esta obra não é uma paródia religiosa. Entretanto, antes de analisar este texto, precisamos entender o contexto histórico-social desta história. A narrativa se passa na Sevilha do século XVI, durante a Inquisição Espanhola e, neste período, é fundamental compreender que as heresias (ações contrárias ao que foi definido pela Igreja Católica em matéria de fé através de suas doutrinas) eram combatidas por representarem uma ruptura dos valores e das ordens estabelecidas. O herege era perseguido por ser uma ameaça e um perigo à doutrina oficial, sendo punido com a excomunhão ou com a morte na fogueira.

Foi neste momento histórico mais terrível da Inquisição, quando as fogueiras ardiam constantemente para queimar hereges, que Cristo apareceu na terra.

quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional...2

E não somente apareceu, mas realizou milagres em plena praça pública, o que chamou a atenção do Inquisidor da cidade que prendera imediatamente Jesus. Na prisão, o Inquisidor faz um monólogo, acusando Jesus de heresias e anuncia que no outro dia iria queima-lo na fogueira santa. Pois bem, deste longo monólogo acusatório, podemos extrair alguns paralelos a partir da noção de governo, de constituição, de poder constituinte e de povo.

Em primeiro lugar, Jesus seria o poder constituinte da Igreja. Ele inaugurou a Igreja e delegou este poder ao seu primeiro discípulo Pedro. Após sua partida da terra, diversos “Pedros” (Papas) se sucederam no poder da Instituição Igreja Católica. A volta repentina de Jesus, depois de 1500 anos de poder constituído e sob o governo humano, não foi bem aceita pelo Inquisidor, que já o questiona: “Por que viestes nos incomodar?”3.

O Inquisidor representa, neste caso, o poder constituído, que foi posto por um poder soberano e constituinte num momento histórico passado. A Igreja Católica Romana herdou a mensagem de Jesus, foi ela quem recebeu a tarefa de transmiti-la e de organizar a religião. A partir daí, Cristo não teria mais o direito de intervir diretamente no governo posto, de trazer novas revelações, visto que designou representantes de sua mensagem. O Inquisidor é o representante oficial da fé.

Nem mesmo Jesus Cristo, que constituiu a Igreja por meio de sua soberania, poderia intervir no governo futuro. A chegada de Jesus após anos de poder constituído é uma heresia para o Inquisidor. Da mesma forma, isto ocorre na formação dos governos constitucionais modernos. O poder soberano do povo (em paralelo com o poder soberano de Jesus) só é absoluto no momento da conformação da Constituição (ou da Igreja). A soberania popular só vale para fundamentar a validade da Constituição. Após a promulgação constitucional, esta soberania do povo é limitada para que não ocorra modificações na ordem constituída. Um paradoxo:

No constitucionalismo liberal, a soberania do povo não é entendida como o poder de se autogovernar (pois todo governo deve ser limitado), mas simplesmente como o poder de dar a si próprio as normas fundamentais, ou seja, a constituição. Essa redução liberal da soberania popular ao poder constituinte é um dos elementos fundamentais do constitucionalismo, que com essa operação consegue afastar a validade de qualquer invocação da soberania popular como justificação legítima para a alteração da ordem constitucional. O poder constituinte, assim, fica represado no passado, no momento em que a constituição foi feita. No presente, a sua invocação é sempre considerada como inconstitucional e, portanto, inválida.4

Observa-se, logo, que o povo (ou Jesus) é colocado como um mito fundador do poder constituinte num momento passado, quando houve uma ruptura revolucionária. Após a cristalização da Constituição, o constitucionalismo não se utiliza mais do povo, conservando o texto constitucional com mecanismos que limitam a soberania popular. Os representantes populares modernos ou os representantes oficiais da Igreja, no nosso paralelo, falam em nome do povo ou de Jesus, respectivamente. Se utilizam do mito fundante apenas para legitimarem seu poder e sua autoridade. Isto é o que Jacques Derrida chama de fundamento místico da autoridade5.

O Inquisidor representa o constitucionalismo que surgiu na modernidade que, através de um fundamento místico, busca legitimar a ordem liberal vigente. Um aparente bom pastor, mas na realidade opressor, que invoca o mistério para impor um “cale-se!”. Diz o Inquisidor à Jesus:

Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade!

Nas modernas democracias liberais, o poder soberano do povo somente pode ser utilizado para nomear representantes que governem em seu nome e, nessa medida, serve como mecanismo para legitimar os atos das instituições políticas. Não cabe ao povo alterar o texto sagrado da Constituição. Da mesma forma, não cabe a Jesus alterar o texto sagrado da Bíblia. Tal como o Inquisidor viu em Cristo uma turbação da ordem, qualquer tentativa de alteração da Constituição fora dos procedimentos de emenda constitucional é considerada herética ou ilícita e “o resultado é que não se reconhece aos cidadãos o direito de modificar a constituição, que é compreendida como um exercício de autolimitação da soberania do povo.”6

O segundo paralelo que podemos observar no “O Grande Inquisidor” é a entrega da liberdade pelo povo ao seu governante. O inquisidor diz a Jesus que a humanidade não almeja a liberdade, mas sim pão e segurança. Para ele, o ser humano está disposto a trocar sua liberdade por qualquer coisa que lhe dê subsistência. Neste outro paralelo, o Inquisidor representa o governo Leviatã hobbesiano e o povo unido por um contrato social entrega sua liberdade ao governante.

Do mesmo modo que Hobbes, o Inquisidor acredita que o ser humano é egoísta por natureza. Diz o Inquisidor à Cristo: “Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal?". Muito parecido com o estado de natureza que Hobbes idealizou em que os homens buscam garantir a sua segurança em primeiro lugar e, para tal, firmam um contrato social para atribuir o poder a um terceiro, garantindo, assim, condições mínimas de segurança7.

Neste contexto, vivemos em um momento político em que a fala do grande Inquisidor sobre a entrega da liberdade parece encontrar ressonância. Como explicar que a Alemanha aceitou um governante brutal, Hitler, e seu governo ditatorial? Talvez, a crise econômica vivida pelos alemães nas décadas de 20 e de 30 levou o povo a aceitar a segurança de um governo nazista. Até no Brasil, existem grupos que clamam pela volta da ditadura militar de 1964, dispostos a abrir mão de sua liberdade por uma suposta segurança econômica, na esperança de ter mais empregos e estabilidade.

Enfim, “O Grande Inquisidor” pode nos ajudar a enxergar o discurso ideológico existente por trás das máscaras formais e míticas de Constituição, do povo, do poder constituinte e do governo. A partir desta obra literária, vemos que o povo e sua soberania é como Jesus Cristo, relegado ao passado, excluído das mudanças social-políticas atuais. E o Inquisidor, alegoria do poder constituído, se utiliza de Jesus, alegoria da soberania do povo, como um fundamento místico para conservar seu poder. E mais. Vemos a aceitação passiva do povo em entregar a sua liberdade ao governante, submetendo-se em silêncio e, tremendo, ao poder inquisitorial.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] WARAT, Luis Alberto. Manifesto para uma ecologia do desejo (segunda versão do Manifesto do Surrealismo Jurídico). Parte I. pg. 195.

[2] DOSTOIVSKI, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. Pg. 5

[3] DOSTOIVSKI, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. Pg. 7

[4] COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

[5] DERRIDA, Jacques. 2007. Força de Lei: O “Fundamento Místico da Autoridade”. São Paulo: WMF Martins Fontes.

[6] COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

[7] HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. Cap. XVIII.