Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro declarou que “nossa soberania é inegociável”1 ao ser questionado acerca das declarações do candidato democrata norte-americano Joe Biden que, em debate eleitoral televisivo, alegou que o Brasil sofreria consequências econômicas significativas caso não implementasse medidas para impedir o desflorestamento da Amazônia. A afirmação de Bolsonaro ocorre em momento que o Brasil é alvo de inúmeras críticas internacionais em matéria ambiental, além de sofrer com uma recomendação no âmbito da ONU para que o governo seja objeto de uma investigação internacional acerca das políticas ambientais adotadas2. Uma melhor compreensão dos argumentos evocados passa pelo debate sobre soberania.

Conforme nos informa J. J. Gomes Canotilho e colaboradores3, a soberania, sob a ótica do Estado de Direito, no século XX, consolida-se como expressão da vontade popular, superando a visão da época das monarquias constitucionais, quando seu fundamento de validade emanava tanto do monarca quanto do povo. Nesse novo paradigma, o povo é tido como soberano, passando a exercer seu poder por meio de representantes ou diretamente.

O Supremo Tribunal Federal4, ao tratar do tema, já expressou que a soberania pode ser verificada sob dois planos distintos: interno e externo. No primeiro, tem-se a exteriorização da vontade popular, nos moldes do art. 14 da CRFB/1988, enquanto o segundo trata da esfera internacional, efetivada pelo presidente da República, nos termos do art. 84, VII e VIII, da Lei Maior. No mesmo sentido, Carlos Roberto Husek5 explica que “duas ideias caracterizam a soberania: a supremacia interna e a independência da origem externa”, sendo a primeira uma qualidade vinda do povo, tal como as constituições de inúmeros países consignam: Alemanha, Argentina, Brasil, Cuba, EUA, México, entre outros.

Ao criticar as concepções clássicas de soberania, as quais se encontram intimamente ligadas ao Estado, à plenitude do Poder Público e ao exercício de mando, Carlos Roberto Husek6 ensina que o estado que se nota como soberano absoluto frente aos demais tende a ditar normas para o resto do mundo, situação que parece incompatível com a vida internacional de cooperação e paz. Todavia, no plano interno debate-se o caráter absoluto da soberania. Aliás, como bem leciona Alexandre Araújo Costa7, o constitucionalismo, em verdade, nos conduz à paradoxal admissão de existência de uma soberania popular que carece ser, ao mesmo tempo, absoluta e limitada. Necessita ser absoluta para ser amparo de validade da constituição e limitada para respeitar sua própria validade.

Exemplo recente sobre o paradoxo da soberania no Brasil contemporâneo diz respeito à decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, ao suspender liminar dada pelo também Ministro Marco Aurélio, que havia concedido um Habeas Corpus a André Oliveira Macedo, o "André do Rap", acusado de tráfico internacional de drogas8.

A decisão do Ministro Marco Aurélio contrariou a opinião pública e foi duramente criticada por diversos juristas do país. O Ministro Marco Aurélio julgou o pedido da defesa e aplicou o que determina o artigo 316 do Código de Processo Penal: entendeu que André estava preso por tempo maior do que o legalmente permitido.

Diante da decisão de seu par, o Presidente da Suprema Corte atendeu ao pedido de Suspensão de Liminar para que o acusado fosse preso novamente. Segundo o ministro, havia risco à ordem pública caso André fosse libertado. Luiz Fux alegou que Marco Aurélio não poderia ter dado o Habeas Corpus porque a decisão questionada era uma liminar monocrática de ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Ao levar o assunto para discussão no Plenário do Supremo Tribunal Federal, o Presidente Luiz Fux sofreu duras críticas de seus pares. Para o Ministro Marco Aurélio, o presidente não podia ter feito o que fez. Segundo ele, "é a prática da autofagia, que só desacredita o Supremo." "Evidentemente, ele não tem esse poder, mas, como os tempos são estranhos, tudo é possível", acrescentou o ministro9.

Já o Ministro Gilmar Mendes, repetindo a sua fala na posse: “ele é coordenador de iguais e não superior hierárquico"10.

Essa questão gerou um imbróglio entre os pares do Supremo Tribunal Federal e colocou em xeque a soberania dentro da própria Corte. Além disso, esse precedente gerou uma crise de identidade no STF, que mantinha uma cultura de seus ministros, incluindo o presidente da Corte, não interferirem nas decisões de seus pares.

Nesse contexto, é certo que a sociedade tem passado por sensíveis mudanças, as quais refletem, por diversas vezes, que o Estado não tem sido reflexo da vontade soberana do povo - tão apregoada na Constituição Federal. Um Estado que é outra coisa senão a expressão da vontade de seu povo não há razão de permanecer.

É a democracia quem possibilita que a soberania do povo seja uma realidade. É ela quem proporciona maior valor à vontade privada de cada um dos indivíduos que compõem a sociedade e é justamente a representação dessas vontades que confere legitimidade ao Estado que tem por fim representar esse povo.

A implicação necessária desse cenário é que a própria sociedade é quem legitima - ou, pelo menos, deveria legitimar - a ordem política e social, em um contexto em que o Estado não é outra coisa senão o espelho dos direitos e dos deveres que os próprios cidadãos atribuíram uns aos outros a fim de regular, por meio do direito positivo, a sua convivência11.

A soberania não é algo dado nem tomado, é um processo resultante de diversos fatores que se desenrolam e formam um todo. A soberania aqui descrita não se resume à vontade de um único indivíduo encarnado na figura de um soberano, o qual representaria a incorporação do monopólio do poder, mas um processo por meio do qual a vontade política do povo mantém e suporta a legitimidade do Estado. É, pois, uma construção simbólica do "Estado moderno" - ou ao menos dos Estados que possuem um governo centralizado.

Diferentemente do que se apresenta nas teorias contratualistas, as correntes constitucionalistas, de acordo com o Alexandre Araújo Costa12, tentaram estabelecer um governo limitado fundado em uma soberania ilimitada e estruturado por uma lei suprema". Essa seria, justamente, a "fonte do paradoxo" que consiste em submeter o governo a duas supremacias distintas: a do povo e a da lei.

A supremacia da Lei advém do movimento constitucionalista, o qual utiliza de um texto legal para impor limitações e legitimar ações. É um instrumento formidável a Lei e, em última ratio, a Constituição. A possibilidade de se retirar do campo da subjetividade, da religião e da moral, de forma a dar uma suposta objetividade e imparcialidade ao ordenamento que rege toda uma sociedade, possibilita o agrupamento de diversas tribos que, antes, jamais conseguiriam se agrupar, formando uma verdadeira sociedade unida por uma solidariedade não mais mecânica, mas sim orgânica13.

Há, outrossim, linhas de estudo inteiramente dedicadas às possibilidades de criação e ordenação abertas pela constituição e pelo império da Lei14.

Apesar de todas essas maravilhas, não é suficiente o império da Lei: faz-se necessário algo para legitimar tal império. Para Hans Kelsen15, em sua Teoria Pura do Direito, era a norma fundamental uma condição de validade lógica do ordenamento que o transcende. Essa condição é pressuposta, ou seja, é um valor abstrato, uma crença. Sendo uma crença, é necessário que a população que irá seguir tais regras impostas por aquela acredite nesta.

Assim o sendo, justifica-se a supremacia popular: se não acreditarem no pressuposto, não há base para a supremacia da Lei. É a vontade do povo em acreditar na crença que faz com que ela exista - o que nos leva à supremacia do Povo. Similar aos primeiros teólogos ao justificar que as coisas somente existem pois Deus está constantemente pensando nelas. Se não pensasse, não existiria.

Ainda, segundo Alexandre Costa16, não é plausível supor que a soberania popular possa ser delegada a uma assembleia - no contexto de um poder constituinte - e, tampouco, que "se encerrasse no estabelecimento das regras constitucionais", ou seja, a noção de poder constituinte não passa de "uma apropriação jurídica da ideia de soberania", implicando o deslocamento da soberania do povo para a lei.

Temos que a soberania não é exercida isoladamente por algum poder ou assembleia. São diversos os seus modos de manifestação e amplamente discutidos os fundamentos de legitimidade.

Uma relevante faceta dessa contraposição da soberania popular ante a soberania constitucional reside justamente na legitimidade. O discurso liberal, conforme explica Alexandre, entende que a soberania do povo não pode ser utilizada como critério válido para se contrapor à soberania da constituição.

Não obstante, são inúmeros os doutrinadores que se dedicam à criação e análise de teorias que justifiquem a intervenção do poder judiciário quanto à validade das leis promulgadas pelo legislativo, democraticamente eleito. A legitimidade do controle de constitucionalidade é um tema extremamente controverso que reflete a ausência de consenso sobre qual a maneira mais correta e democrática do exercício da soberania.

John Hart Ely17, por exemplo, entende que o sistema de democracia representativa não é criado a partir de uma ótica protetora de minorias porque o raciocínio feito à época fora construído em cima do conceito de povo como grupo homogêneo cujos interesses não variam de modo significativo. Dessa forma, a constituição, por si só, não seria capaz de proteger os interesses das minorias.

Robert Alexy18, por sua vez, aduz que "o exercício de poder estatal pelo parlamento é legítimo porque o parlamento representa o povo. Essa representação é democrática porque os membros do parlamento são eleitos por eleição livre e igual e — por meio da sanção da não reeleição — controlados" e que o mesmo não ocorre na jurisdição constitucional, visto que "os juízes do tribunal constitucional não têm regularmente uma legitimação democrática direta e o povo não têm, em regra, possibilidade de controle por denegação da reeleição" . Dessa forma, cria a tese de que a legitimidade para o exercício de controle judicial de constitucionalidade reside na representação argumentativa.

Ante o exposto, percebe-se que não é simples afirmar, categoricamente, quem é o soberano no Brasil de hoje. Contudo, retrocedendo ao início deste escrito, percebe-se que o debate acerca da soberania não pode se prestar de véu para encobrir uma Amazônia cada vez mais devastada, vítima de políticas negacionistas.  


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    Gazeta do Povo. “Nossa soberania é inegociável”, diz Bolsonaro a Biden sobre a Amazônia. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/nossa-soberania-e-inegociavel-diz-bolsonaro-a-biden-sobre-a-amazonia/. Acesso em: out. 2020.

[2]    UOL Notícias. Relatoria da ONU propõe inquérito internacional contra o Brasil. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/09/16/relatoria-da-onu-propoe-inquerito-internacional-contra-brasil.htm. Acesso: out. 2020.

[3]    CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 279.

[4]    Rcl. 11.243, Min. Rel. p. o Ac. Luiz Fux, J. 8.6.2011, Plenário, DJe 5.10.2011.

[5]    HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público. 14. ed. São Paulo: LTr, 2017, pp. 206-207.

[6]    Idem.

[7]    Costa, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

[8]    Revista Consultor Jurídico. "Tempos estranhos" - Decisão de Fux é "autofagia" que "descredita o Supremo", diz Marco Aurélio. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-11/decisao-fux-desacredita-supremo-marco-aurelio. Acesso em: out. 2020.

[9]    Idem.

[10]    Idem.

[11]    TORRES, Tiago Caruso. O atual problema da legitimidade do Estado: entraves contemporâneos à soberania do povo. In: Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o-atual-problema-da-legitimidade-do-estado-entraves-contemporaneos-a-soberania-do-povo/. Acesso em: out. 2020.

[12]    Costa, Alexandre. Op. cit.

[13]    DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduardo Brandão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[14]    MENDONCA, Daniel. Analisis constitucional: una introducción - como hace cosas con la Constitucion. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009.

[15]    KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

[16]    Costa, Alexandre. Op. cit.

[17]    Ely, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press. Londres, 2002.

[18]    Alexy, Robert. Constitucionalismo discursivo / Robert Alexy; org./trad. Luis Afonso Heck. — 3. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 163.