Em janeiro de 2006, o magistrado Palma Bisson ganhou a menção honrosa da mídia pela sua decisão em favor da concessão de justiça gratuita, negada anteriormente em primeira instância, a Isaías Gilberto Rodrigues Garcia. O agravante, representado por sua mãe, solicitava ao juízo a pensão de um salário mínimo mais indenização moral ao agravado, que havia causado a morte do progenitor daquele por atropelamento.

Ao negar anteriormente a gratuidade, o juiz de primeiro grau asseverou que não seria compatível que o apelante pedisse o instituto considerando que constituíra defensor particular. Uma vez agravada a decisão, Bisson, além de conceder a justiça gratuita ao autor do Agravo de Instrumento nº 1.001.412-0/0, redigiu um voto – acatado unanimemente pela seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – sobretudo interessante. Informou que se enxergava no autor devido à coincidência do ofício de seu progenitor com o de Isaías (marceneiro), e asseverou que o fato de o litigante ter contratado advogado não comprovava pobreza, pois na época em que advogara “tantas (...) foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada”[1].

O voto do pretor foi longamente aclamado em relação à sua posição humanística e às palavras poéticas empregadas em sua sentença. De fato, é indiscutível que o magistrado adotara uma posição correta e com o mais perfeito atilamento. Entretanto, ao lermos o voto, deparamo-nos com surpresa para a ausência de justificativas legais ou jurídicas nas folhas do documento. Não há menção a artigos ou tampouco a citação de qualquer jurisprudência consolidada do tribunal. O juiz havia decidido julgar exclusivamente por meio de suas experiências pessoais.

Essa conclusão lógica levaria o litigante médio a se assustar. Estaria ele enfrentando, após acionar o judiciário, fatores além da sua compreensão e da perspicácia de seu advogado? Indicaria que as decisões judiciárias estariam limitadas aos palpites e preconceitos de um magistrado, vivências e convivências, principalmente em casos mais complexos, que não apresentariam uma solução pronta? Tais indagações parecem apontar para um mesmo questionamento, um tanto intrigante para o sistema da Civil Law: afinal, seria o direito um conjunto de normas?

Para a vertente do normativismo, sim. Os estudiosos positivistas acreditam que o direito constituiu-se como ciência alheia à moral e à política. Sua contenção estaria limitada a um sistema de normas válidas e aplicáveis por meio de critérios objetivos. Basta dizer que seu maior pensador, Hans Kelsen, observava que a “ciência jurídica positiva” não poderia se ater ao critério de justiça, devido à pluralidade conceitual desse termo (KELSEN, 1998). Nessa concepção, o próprio Estado se origina e se legitima a partir da compreensão da racionalidade normativa.

O realismo jurídico, no entanto, enxerga o questionamento por outro prisma. Segundo a escola, os juízes já teriam uma inclinação para decidir determinado caso antes mesmo de analisarem as provas (STRUCHINER; BRANDO, 2014). Tal orientação pragmática tem sua razão de ser em um país cujo sistema jurídico seja dominado pela Common Law: isso porque nesses Estados os precedentes e a jurisprudência tem papel fundamental. Nesse entendimento, o direito não é exato nem esperado, mas sim dinâmico, por depender da decisão casuística do juiz. Precursor de tal análise, o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes Jr. já observava, em icônica sentença que:

“A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas que prevalecem, as intuições das políticas públicas, claras ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os juízes julgam, têm importância muito maior do que silogismos na determinação das regras pelas quais os homens devem ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através dos séculos e não pode ser tratado como se compreendesse tão-somente axiomas e corolários de livros de matemática. De modo a se saber o que é o direito, deve se saber o que ele tem sido e qual a tendência que há de se transformar. Deve se consultar alternativamente a história e as teorias jurídicas existentes” (apud GODOY, 2006).

O direito deixa de ser uma ciência para se tornar um fato social, numericamente imprevisível. Outro jurista do período, Roscoe Pound, afirmava que o direito, embora reconhecido como um conjunto de regras fixas, deve ser interpretado conforme suas consequências sociais e econômicas (PERUCHI, 2020). Para isso, seria essencial a criação de princípios, que seriam justamente premissas gerais do raciocínio jurídico capazes de reconciliar as normas quando estas entram em conflito (PERUCHI, 2020). Alf Ross, pensador advindo da prática nórdica, também salientava a natureza de fato social do direito. Não obstante, distanciava-se dos norte-americanos ao definir que nenhuma teoria poderia afastar o direito de sua dimensão ideal (RODRIGUES, 2016).

O realismo jurídico tenha sido rechaçado por Herbert L. A. Hart, que estabelece uma interação entre a filosofia analítica da linguagem e o direito, inspirando-se na noção de noção de textura aberta (STRUCHINER; BRANDO, 2014). Para o filósofo, a linguagem legal permite que seus intérpretes possam aplicá-la de forma automática e sem muitas controvérsias. No entanto, a linguagem é limitada, sendo propícia a uma zona cinzenta em que não seria possível a subsunção mecânica (STRUCHINER; BRANDO, 2014). É nesse momento que surge a discricionariedade do magistrado.

Ainda que o pensamento hartiano tenha arrefecido as críticas realistas, ainda é comum haverem tentativas de correlação da vivência do magistrado com suas sentenças. Em 2006, o chief justice William H. Rehnquist, juiz indicado na administração republicana à corte americana e ávido defensor das leis estaduais, surpreendeu seus pares ao decidir em favor da legislação federal no caso Nevada Department of Human Resources v. Hibbs. No mesmo voto, o pretor denunciava os “estereótipos do trabalho doméstico feminino”. Anos mais tarde, a juíza Ruth Bader Ginsburg relacionaria a aparentemente mudança de visão de seu colega ao fato de sua filha ter se divorciado meses antes[2].

Direito também pode ser interpretado como um conjunto de normas. Porém, o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas.

O direito pode visto pela atitude, não pelo mero formalismo, o poder ou o processo. E essa atitude deve ser onipresente em nossas vidas comuns para fazer o bem, principalmente nos tribunais. É uma atitude interpretativa e auto reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, valores e ponderações que exigem em cada nova circunstância. O caráter do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões, pela natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador das descrições em que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor sempre.

O direito também é construtivo em sua vontade interpretativa, é colocar os Princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. Por fim, uma atitude fraterna, demonstrar civilidade pela comunidade em constante transformação e apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Ou seja, de qualquer forma, o que o direito representa para nós é o que queremos ser, que pessoas podemos ser e para a sociedade que pretendemos ter.

Referências

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O realismo jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr. Brasília a. 43 n. 171 jul./set. 2006.

KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PERUCHI, Rowena. O realismo jurídico nos conteúdos decisórios judiciais – Aplicabilidade do termo "room for play between the joints". Jusbrasil, 2020. Disponível em: https://rowenaperuchi.jusbrasil.com.br/artigos/875191363/o-realismo-juridico-nos-conteudos-decisorios-judiciais-aplicabilidade-do-termo-room-for-play-between-the-joints

RODRIGUES, Diogo Luiz Cordeiro. Alf Ross e seu Realismo Jurídico: uma resenha crítica. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). 2016. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/viewFile/rechtd.2016.81.12/5324

STRUCHINER, Noel; BRANDO, Marcelo. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?. Em: Struchiner, Noel; Tavares, Rodrigo (org.). Novas fronteiras da teoria do direito. Rio de Janeiro: PoD; PUC-Rio, 2014.



[1]A íntegra do voto encontra-se disponível em: https://www.conjur.com.br/2011-jun-24/desembargador-deixa-formalidade-lado-vota-marceneiro

[2]A íntegra da reportagem de Ruth Bader Ginsburg encontra-se disponível em: https://www.nytimes.com/2014/06/17/us/judges-with-daughters-more-often-rule-in-favor-of-womens-rights.html?src=twrhp&_r=1