GRUPO 8

O texto do Professor Alexandre Costa debate o conceito de constitucionalismo e soberania.  Citou alguns teóricos que discorrem sobre a possibilidade de limitação da soberania. Comentando o caso brasileiro (todo poder emana do povo) e o caso norte-americano (we the people), questiona se essa soberania poderia ser exercida pelo povo e, ao mesmo tempo, ser limitada. Pode um soberano ser limitado? Quem é o povo?

Aprendemos que o Poder Constituinte Originário desafia todas as forças e altera todo um sistema. Esse poder não se localiza necessariamente nas mãos do “povo”, comumente entendido como a parte da população de maior número e com as pessoas mais pobre.

Atualmente, o “povão” (palavra colocada propositalmente para lembramos a forma preconceituosa com que ela é usada) teria a possibilidade de ser soberano? Não. Nosso texto constitucional e o nosso contexto constitucional não permitem interferência da população na Constituição. A constituição não possui mecanismo que autoriza o povo a alterá-la diretamente. Logo, o povo não permanece soberano na vigência de uma constituição.

Essa suposta soberania é sempre exercida de forma indireta, por um sistema eleitoral proporcional e não majoritário. As mudanças constitucionais são protagonizadas por deputados que não representam a maioria da população (eleitos “na calda”/”na rabeira” de outros deputados) e diversos suplentes que compram a vaga do titular, tanto na Câmara como no Senado. Se existe alguma soberania popular, ela não é capaz de modificar a nossa constituição e, por isso, não pode ser chamada de soberania.

No texto, o debate do constitucionalismo passa pelo debate sobre o contrato social. O Contrato Social que originou o Estado objetivava impor limites à vida em sociedade, impedindo a selvageria e permitindo o desenvolvendo de estruturas coletivas, iguais e solidárias. Não há como exercer a cidadania se o indivíduo não receber aquilo que é a razão de existir do Estado, muito menos exercer a soberania.

Desde o fim da era religiosa, em que o sagrado se confundia com o governo instituído, há uma busca para recriar o Estado em função das pessoas. O cidadão é a razão de existir o Estado, e os crontatualistas deixaram isso evidente, mesmo que foco fosse a propriedade privada. Não diferente, os constitucionalistas modernos reforçam a ideia de que o cidadão não é cliente do Estado, mas a essência dele.  Se consideramos que cidadãos são aqueles que possuem capacidade política, questiona-se se seria possível votar sem moradia, votar com fome, votar sem acesso à saúde, à segurança e sem acesso a oportunidades. Esse voto teria substância e qualidade legítimas?! Esse voto seria soberano?

O debate entre os primeiros contratualistas e os constitucionalistas modernos (não necessariamente excludentes) acirra as divergências quando feito à luz dos sistemas de civil law e common law. O ponto comum entre Hobbes[1], Locke[2], Montesquieu[3], Rousseau[4], e outros, é o fato de o convívio social necessitar de uma administração central congruente para assegurar a ordem, promover e gerenciar estruturas. Para os contratualistas, a necessidade de segurança, a proteção da propriedade privada, o enfrentamento de ameaças externas e internas e o tratamento de surtos de doenças (saneamento básico) já existiam antes do século XX e eram o objetivo de uma coletividade que se organizava ou nomeava representantes para administrar anseios comuns. Nessa visão contratualista, a soberania seria o resultado do Contrato Social que orienta a relação do Estado e a coletividade, logo, o Estado seria o soberano.

O objetivo não era assegurar a abstenção de um Estado ou impedir a invasão pública na vida privada, mas juntamente a criação de uma instituição que administrasse aquilo que era difuso ou ameaçador da propriedade, aquilo que dependia do consenso social ou aquilo que se deveria fazer em conjunto. O direito, dito coletivo, difuso ou social, era a razão de existência do Estado, principalmente para a promoção da ordem pública e da vida daqueles que contratuaram em sociedade.

Ocorre que o regramento jurídico do Século XIX não foi capaz de levantar barreiras valorativas à emergência do nazi-fascismo na Europa dos anos 20 a 40 e ao domínio dos regimes burocrático-autoritários na América Ibérica nos anos 60 a 70. Regimes que não representavam o povo e sua “soberania”. Ou seja, o povo não estava e nem era o soberano naqueles momentos.

Após a década de 70, muitos países se viram diante da atuação do Poder Constituinte. Então, vários princípios normativos de legitimidade absoluta foram impostos nos preâmbulos das novas constituições (modernas/contemporâneas) e nas declarações dos direitos fundamentais como fonte obrigatória de limitação de todo o direito positivo e do Estado, ampliando a experiência do constitucionalismo democrático. Com o constitucionalismo moderno, o direito público passaria a internalizar uma concepção de prestação daquilo que é justo e não apenas a positivação ou abstenção de intervenção na vida privada[5].

Menelick de Carvalho Neto explica que esse novo modelo propõe a liberdade como igualdade material, “através do reconhecimento na lei das diferenças materiais entre as pessoas e sempre a proteção do lado mais fraco das várias relações”[6]. Supera-se o conceito de liberdade perante o Estado e introduz-se a liberdade por intermédio do Estado, com expressivas designações legais sobre as diferenças materiais. Ora, se liberdade física e material é garantida pelo Estado, seria o estado soberano ou seria o povo soberano?

Para responder a pergunta “quem é o soberano no Brasil Contemporâneo?” utiliza-se as lições de Rawls.

Liberal, contratualista e ex-Professor de filosofia em Havard, John Bordley Rawls (1921- 2002)[7]debate a teoria da justiça no auge e no berço do constitucionalismo moderno. Sua obra é importante porque discorreu sobre o papel de cada um dos poderes e seus agentes, pensando a função que ele considerava pertinente a cada um. O interessante é que Rawls não atribui a soberania a um grupo ou poder específico, mas tende a estabelecer uma relação de equilíbrio entre os diversos atores da sociedade.

Partindo de um nivelamento social, em que todos estariam reunidos sob o “véu da ignorância”[8], uma assembleia decidiria quais os princípios de justiça que guiariam a formação de uma sociedade, e as formas de cooperação social que seriam adotadas. O “véu de ignorância” é assemelhado ao Poder Constituinte Originário exercido por pessoas iguais. Rawls não atribuiu a soberania ao poder constituinte e nem ao povo que estava sob o “véu de ignorância”.  O véu garantiria a igualdade entres os membros da assembleia, seria o estágio inicial, em que ninguém saberia quais são os próprios dons, interesses ou capacidades individuais.  Ou seja, a assembleia serve para designar os princípios basilares de justiça que conduzirão a formação da sociedade livre e igual.

Denomina-se “posição original de igualdade” aquela que corresponde ao estado de natureza, em uma vaga similaridade com a teoria tradicional do contrato social. Essa “posição original” não é uma situação histórica real e nem uma condição primitiva da cultura, é tão somente uma situação hipotética para se projetar a concepção de justiça de Rawls[9].

Presume-se, então, que as partes não conhecem certas particularidades. Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é seu lugar na sociedade, sua classe nem seu status social; ninguém conhece a própria sorte na distribuição dos dotes e das capacidades naturais, sua inteligência e força, e assim por diante. Ninguém conhece sua própria concepção de bem, as particularidades de seu projeto racional de vida, nem mesmo as características especiais de sua psicologia, como sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. As partes também não conhecem as circunstâncias de sua própria sociedade[10]

A “posição original” é o momento em que as partes são protegidas pelo “véu da ignorância” e que impede que saibam de suas qualidades e posição social. “Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece o seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou status social, e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes[11]” O véu garante que ninguém seja desfavorecido ou mesmo favorecido quando da escolha dos princípios que ordenarão a estrutura básica da sociedade. A assembleia de pessoas racionais e iguais “é o status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos básicos nele estabelecidos sejam equitativos”[12].

Uma vez adotada a concepção da justiça pela assembleia, passa-se à escolha de uma constituição, de um sistema de produção de leis e demais estruturas, sempre baseadas no acordo sobre os princípios da justiça inicialmente adotados[13]. Nota-se que não se trata de um debate de soberania ou sobre quem é o mais forte ou mais capaz. Esse seria o primeiro estágio de quatro estágios da formação do sistema social em ordem lógica. Sucessivamente, os demais estágios seriam avaliados perante os princípios estabelecidos sob o “véu de ignorância”.

A grande invenção do constitucionalismo foi o estabelecimento de uma estratégia jurídica inovadora: a definição de normas positivas supraestatais, que derivassem diretamente do exercício soberano do povo e que, nessa medida, não fossem sujeitas à alteração pelas autoridades políticas. Depois de séculos procurando estabelecer critérios para definir uma autoridade legítima, surgiu uma teoria filosófica que pretendeu deixar vazio o lugar da máxima autoridade política. Estava criado o moderno direito constitucional: textos legislativos que estabeleciam a organização e os limites do poder do Estado e que, por isso mesmo, não poderiam ser modificados pelas próprias autoridades políticas, exceto de acordo com o difícil processo definido pelo próprio texto constitucional. No plano da lógica, evita-se o paradoxo da soberania limitada, pois continua sendo afirmado o caráter absoluto do poder popular. No plano prático, porém, a supremacia da constituição afastava a soberania do povo, pois estava escrito que somente pela letra da lei é que o povo poderia falar[14].

Em paralelo ao texto do Professor Alexandre Costa, para Rawls, o segundo estágio é protagonizado pela formação da constituição, é a elaboração de “um sistema para os poderes constitucionais do governo e para os direitos fundamentais dos cidadãos”[15].  Novamente, não se trata da definição de quem é o soberano ou quem detém o maior poder. O terceiro estágio contém a definição do legislativo, que se caracteriza pela análise da justiça das leis e das políticas.

No primeiro estágio, as partes adotam os princípios de justiça por trás de um véu de ignorância. As limitações quanto ao conhecimento disponível para as partes vão sendo progressivamente relaxadas nos três estágios seguintes: o estágio da convenção constituinte, o estágio legislativo em que as leis são promulgadas de acordo com o que a constituição o admite e conforme o exigem e o permitem os princípios de justiça, e o estágio final em que as normas são aplicadas por governantes e geralmente seguidas pelos cidadãos, e a constituição e leis são interpretadas por membros do judiciário. Neste último estágio todos têm completo acesso a todos os fatos[16].

O quarto estágio é o estágio da aplicação das normas aos casos concretos, realizada pelos juízes e também pelos administradores, e o da obediência dos cidadãos às normas em geral[17].  Como indicado no trecho acima, esse estágio seria o último, em que “todos têm completo acesso a todos os fatos”. É importante pensar esse quarto lugar destinado ao judiciário e aos administradores, e mais, nota-se que é um espaço compartilhado entre o executivo e o judiciário.

Entende-se que o conceito de soberania deve ser adequado à realidade contemporânea, em que se busca uma divisão de poderes para assegurar a justiça na sociedade. Os quatro estágios de Rawls seriam uma divisão de trabalho, na qual cada um trata de tipos diferentes de questões de justiça social e que o juiz e o administrador, colocados no quarto estágio, devem considerar a ponderação já feita pelos agentes racionais da “posição original”.  O juiz e o administrador não poderiam modificar ou subverter os princípios da justiça, tampouco sua representação em um texto constitucional justo, de modo que o esquema garantiria a coerência das decisões judiciais e reduziria a discricionariedade natural na interpretação das instituições jurídicas.

Em que pese todo o conceito de liberdade e equidade que fundamentou seus princípios de justiça, o filósofo parece prestigiar a estabilidade das instituições e, como uma espécie de fé, considera que a justiça é um elemento que permeia as estruturas básicas da sociedade, mesmo que exista uma suposta injustiça na lei produzida pela sociedade idealizada por ele.

O autor não invoca a soberania em nenhum momento, apenas divide tarefas. Logo, ela, a lei, não deve ser afastada da jurisdição pelos juízes, posto que ela emerge dos anseios sociais. Pode-se questionar a justiça de uma lei, mas não se recusar a obedecê-la, sob pena de colocar em xeque a própria ideia de obediência às leis em geral. É claro, “desde que não excedam certos limites de injustiça”, limites os quais são questão de bom senso e razoabilidade.  A ideia de Ra­wls é que não existe um exercício ou poder soberano, mas apenas uma sociedade que vive um sistema equitativo de cooperação social que permite a vantagem razoáveis e racional para cada participante.

As desigualdades sociais e econômicas são aceitáveis, mas devem satisfazer a duas condições: devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades e têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade[18].

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a poucos sejam contrabalançados pelo número maior de vantagens de que desfrutam muitos. Por conseguinte, na sociedade justa, as liberdades da cidadania-igual são consideradas irrevogáveis;

O juiz está lado a lado do administrador na obra de Rawls e são asseguradores dos bens primários (bens primários com algumas diferenças para com aqueles listados por nossa CF88), todavia, a ele não é dada autorização para se afastar do que foi convencionado nas etapas anteriores do desenvolvimento social, por mais que a norma expresse uma injustiça, pois, a cooperação social pressupunha o cumprimento das orientações que emanavam da “posição original”, da constituição e do legislativo.

Todavia, parece que nosso constitucionalismo contemporâneo precisa ser justificado com a ideia de soberania e não apenas de sistema equilibrado. As mutações constitucionais precisavam ser justificadas pela soberania, entendida, por Sieyès, como um poder constituinte de titularidade da nação. Para ele, alguém deveria ter legitimidade para estabelecer a constituição. Essa não é a leitura de John Rawls e nem da contemporaneidade.  O que se pretende atualmente é um equilíbrio de forças e atores que venham permitir a existência sadia, autônoma e livre de cada indivíduo. Não carecemos de um ente político soberano que delega poderes.

Para Sieyès,  a nação é naturalmente soberana, ou seja, ela é dotada de um poder que não exige justificação. Esse poder absoluto não pode ser limitado nem pode ser objeto de abdicação porque, como afirmava Rousseau, “o próprio povo não pode, mesmo que o quisesse, despojar-se desse direito incomunicável porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade geral é a única que obriga os particulares” (1993: 54).

É bem verdade que Rawls e Sieyès concordam que a origem do sistema social é o acordo/pacto firmado entre as pessoas de um território específico. Todavia, isso não significa soberania, não significa que esse povo possui força e autonomia sobre todos os atores dessa sociedade que se forma com aquele pacto. Muito menos nos dias atuais. Parece inviável a pretensão de Sieyès no sentido de que o povo poderia se autoconvocar para exercer o poder constituinte, dado que isso implicaria a admissão de que um grupo não dotado de poder constituinte teria a faculdade de conformar o poder soberano.

O texto do Professor Alexandre Costa aborda também a doutrina de Anto Negri que separa Poder Constituinte de Soberania. Mas essa dissociação, para alguns teóricos, significa vincular soberania com o exercício do governo; quem governa exerce a soberania.

Não há espaço no constitucionalismo democrático para uma noção de poder constituinte que se diferencie da ideia de soberania popular. Isso ocorre porque a categoria poder constituinte indica um poder que é absoluto (no sentido de não encontrar limites no direito positivo) mas não é perene, pois se esgota ao ser exercitado.

O conceito original de soberania é uma construção religiosa, na ideia de poder absoluto, com forte influência feudal. Esse conceito vem sendo mitigado desde os contratualistas. Na verdade, a soberania, no sentido de exercício de poder, confronta a ideia de democracia. O povo brasileiro não é soberano e isso é uma realidade dura de se ouvir. Contudo, devemos buscar lições em Rawls para desenvolver um sistema equilibrado de pesos e contrapesos que permite impedir a desigualdade e as injustiças.

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[1] BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de janeiro. Campus. 1991.

[2] LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. São Paulo. Martins Fontes. 2005.

[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O espírito das leis. São Paulo. Saraiva. 1998.

[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Constrato Social. Lisboa. Presença. 1966.

[5]VIANNA, Luiz Wernek. Poder judiciário, positivação do direito natural e história. Revista Estudos Históricos. FGV.1996. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2033. Acesso em 27/11/2019.

[6]CARVALHO NETO, Menelick de. A contribuição do direito administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no brasil: um pequeno exercício de teoria da constituição. Porto Alegre. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 68, n. 2, p 67 – 84, abr-jun. 2002. p. 77.

[7]Disponíevel em: https://en.wikipedia.org/wiki/John_Rawls. Acesso em 20 de outubro de 2020.

[8] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo. Martins Fontes. 2008.. 10

[9] Ibid.p.12.

[10] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. São Paulo. Martins Fonte. 2008. p.166.

[11] Ibid.p.13.

[12] Ibid. p.19.

[13] Ibid.p216

[14] Alexandre Costa. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/o-poder-constituinte-e-o-paradoxo-da-soberania-limitada/

[15] Ibid. p42

[16] RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. Traduzido por Claudia Berliner. São Paulo. Martins Fontes. 2003. p. 68.

[17]RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo. Martins Fontes. 2008. p. 73.

[18] RAWLS, John. Justiça como equidade - uma reformulação. São Paulo. Martins Fontes. 2003. p. 60.