Integrantes/Matrícula:

João Marcos Constante de Figueiredo-170146260

João Vítor Cordeiro Daniel- 170106489

Vinícius Martins Diniz-170115445

1.O povo: Um conceito (in) determinado ou o  (i) legítimo titular da soberania?

Ao se questionar sobre o que é o povo, facilmente nos vem à mente a concepção, em sentido jurídico, de titulares de direitos capazes de participar do sistema democrático. Nesse sentido, Hans Kelsen desenvolve este conceito enquanto uma unidade por força da qual somos sujeitos e objetos do Poder, de modo que a Democracia figura como um verdadeiro império do povo sobre o povo (BONAVIDES, 2001). Todavia, autores como Paulo Bonavides questionam em que medida tal modo de conceber o povo seria capaz de abarcar grupos sociais enfeixados ou caracterizados por seus contrastes de feição econômica, religiosa ou étnica, assim como aqueles que não dispõem da mesma solidariedade de interesses ( BONAVIDES, 2001).

Assim, o sentido jurídico de povo desenvolvido por Kelsen revela-se estritamente formalista na medida em que o reduz a uma unidade da ordem jurídica estatal e afasta a compreensão de homem social, físico, espiritual(BONAVIDES, 2001).

Ao lado da acepção meramente jurídica, reconhece-se a afirmação do conceito de povo próximo a um critério operacional de destinação, ou seja, como um jogo de linguagem específico, conforme aponta Friedrich Müller ( DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013). À propósito, com intuito de descrever o modo em que o conceito povo é evocado, sobretudo como forma de manipulação política, tem-se o povo ícone, que se trata de uma construção mítica cujo objetivo é afastar eventuais questionamentos sobre a condução da vida política abstratamente (afirmação de uma homogeneidade inexistente) e concretamente ( dizimação de povos e colonização) ( DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013).

Portanto, “ o povo” de  Hans Kelsen parece tratar de uma noção: (i) que, de um lado, é excludente com relação a grupos sociais específicos ao mesmo tempo em que (ii) evidencia um poder constituinte que se esgota no momento de elaboração da Constituição (COSTA, 2011), situação que, à luz do constitucionalismo liberal, condiciona a própria soberania do povo, que não poderia exercê-la posteriormente. Assim, a definição meramente formal do povo, na acepção do constitucionalismo liberal, nos leva a questionar em que medida este conceito é capaz de designar, de fato, os legítimos titulares da soberania.

Uma reflexão interessante sobre o tema é trazida na obra “A Revolução dos Bichos” de George Orwell. No livro, os animais de uma fazenda organizam uma revolução a fim de expulsar o fazendeiro que os oprimiam, e assumir o controle da fazenda por eles mesmos. Logo após a revolução, os animais escrevem regras para estabelecer uma igualdade entre todos os animais. A regra máxima era a de que “Todos os animais são iguais”. Porém, é interessante notar, que ao longo do livro, os animais que estavam liderando a revolução vão sutilmente alterando o conceito de quem eram aqueles animais protegidos pela regra, de forma que, ao final da história, quase todos os animais estão excluídos. Em determinado momento, a regra muda, passando a afirmar que: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”.

A ideia do livro de definir quem são os animais protegidos não é muito diferente da ideia de definir quem é o povo. Ao longo do livro, a abrangência de quem seriam os animais é reduzida a tal ponto que apenas os porcos (líderes da revolução) podem ser enquadrados. Na vida real, muitas vezes a ideia de povo também se reduz a tal ponto que apenas uma parte da população pode ser considerada povo, excluindo toda variedade e oposição sobre quem pode formular e ser protegido pela Constituição.

Por sua vez, o povo ícone apresenta-se de modo indeterminado com finalidades excusas. A junção de ambas as acepções pode dar respaldo a uma soberania excludente, da qual a categoria povo é positivada na Constituição e, ao mesmo tempo, utilizada como discurso político de legitimação. A exemplo, cite-se as palavras de Paulo Bonavidades: “No caso do Brasil,  as “ditaduras constitucionais” e sua classe legislativa servil fazem do povo de Rousseau e   da Revolução Francesa uma quimera semântica, uma coluna de sustentação conservadora.” (BONAVIDES, 2001). g.n

Questiona-se, assim, a existência de um povo determinado e efetivamente titular da soberania. A primeira ressalva nesse sentido é o fato de um único conceito de povo mostrar-se insuficiente. É interessante pensar, a propósito, em ao menos três dimensões do conceito povo, quais sejam, povo ativo, povo legitimante, povo destinatário das prestações civilizatórias do Estado e povo participante, conceitos desenvolvidos por Friederich Muller.

O povo ativo compreende a totalidade de eleitores, sendo aqueles que detém o poder de voto assim como a capacidade de exercer o poder político por meio das eleições ( DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013). No mais, o povo legitimante designa aqueles que podem ser identificados como cidadãos de um determinado país, os quais poderão atuar de modo ativo e legitima o ordenamento jurídico, uma vez que, ao não promover uma revolta, o aceita tacitamente (DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013). Além disso, o povo como “destinatário de prestações civilizatórias do estado” refere-se àqueles que deveriam ser atingidos pelas ações estatais ou enquanto alvos da inibição do Estado, quando ocorre a sua atuação negativa ( DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013).Por último, o povo atuante compreende a ação ativa politicamente, além do próprio voto, consagrando uma democracia viva (DA SILVA, 2015, apud MULLER, 2013).

Por fim, em face das dimensões jurídicas e instrumentalmente políticas, o conceito de povo ativo, povo legitimante, povo destinatário das prestações civilizatórias do Estado e povo participante parecerem, à luz da realidade democrática contemporânea, mais determináveis e titulares de uma soberania compreendida como realização contínua.

2.O que é e a quem pertence a soberania?

Parte-se da ideia de que a soberania é um poder que se afirma como autoridade mais alta em uma determinada esfera de governo, uma vez que não reconhece a existência de qualquer autoridade política que lhe seja superior (COSTA, 2011). Assim, dada a amplitude deste conceito, a sua construção ao longo da modernidade foi objeto de discursos legitimadores sobre quais seriam os seus elementos fundantes. (COSTA, 2011).

Nessa linha, vê-se, por exemplo, como a centralização do Poder na mão dos monarcas exigiu discursos capazes de tornar legítima a concentração de Poder político nas mãos de uma única pessoa. No plano filosófico, a legitimação da soberania decorreu da transição do estado natural para a vida em sociedade, como defende Thomas Hobbes ao estabelecer que o soberano tão somente encontra limitações no próprio Direito Natural (COSTA, 2011).

Não obstante, os demais filósofos contratualistas reconhecem o poder ilimitado da Soberania e, ainda, a necessidade de sua positivação e organização da vida política.

Todavia, uma vez conhecida a noção basilar de soberania construída na modernidade, a resposta sobre o que é a soberania demanda outra pergunta: o que é a soberania dos Estados de Direito? Portanto, é necessário ser mais específico considerando que os filósofos contratualistas concebem um caráter absoluto ao soberano ao ponto de estabelecer o próprio Direito Positivo (COSTA, 2011).

Dessa forma, a ideia de uma Soberania concebida com um Poder Legislativo limitado desenvolve-se, a partir do Século XVIII, inspirado na necessidade de se buscar a legitimidade racional dos governos (COSTA, 2011) à medida em que se reconhecia um governo das leis e não um governo de homens (COSTA, 2011). Nesse sentido, o exercício da soberania é incorporado a um exercício do poder político condicionado às leis. Foi o que ocorreu, inicialmente, com o constitucionalismo norte-americano, no qual se reconhecia a soberania do povo de um lado, ao mesmo tempo em que a modificação da Constituição pressupunha rigidez.

A uma primeira vista, imagina-se que Soberania atrelada às leis é inclusiva ao   conceber o povo como legitimado a escolher os representantes políticos ao mesmo tempo em que é destinatário da própria política. Entretanto, tal construção trata o povo como uma categoria abstrata, o que pode ser, na verdade, interpretado como um fundamento de validade do discurso jurídico que, nesse sentido, se revela paradoxal.

É paradoxal porque a Soberania é um conceito absoluto, isto é, superior a todas as regras positivas (COSTA, 2011). Logo, como as leis poderiam reconhecer um poder superior a si ao mesmo tempo em que condiciona o exercício da soberania? No mais, como essa Soberania poderia fundamentar a falta de participação política do povo?

Essa situação foi objeto de reflexões pelo Abade Sieyés no sentido de se pensar em como o Terceiro Estado, com participação política inexpressiva, poderia convocar uma Assembleia Geral  e a alterar a Constituição?

A Constituição seria uma norma de direito positivo, sendo possível alterá-la a qualquer momento, a depender da opinião coletiva (COSTA, 2011). Assim, em sentido oposto à interpretação da constituição como forma de manter o status quo de uma organização política, por sua vez, conservadora, Sieyés aponta para a soberania política, segundo a qual as atribuições dos políticos ocorreria sobre a forma de uma procuração e, assim, o povo pode destituí-lo uma vez que não represente a sua vontade.

No mesmo caminho, o autor se posiciona sobre a legitimidade do Poder que funda a constituição a partir da ideia de Poder Constituinte. A população, ao desenvolver uma nova Constituição, exerce a Soberania pelo Poder Constituinte, o qual é o Poder da nação em fundá-la (COSTA, 2011). Sendo assim, não faria sentido conceber a Constituição como Poder Constituído. Nesse sentido, parece que o Poder Constituído, de um lado, implicava a manutenção de prerrogativas por parcela da sociedade e, na outra ponta, um verdadeiro dever de obediência.

Assim, parece razoável imaginar que a Soberania transcende  a lei positiva ao ponto de fundá-la ou mesmo extingui-la conforme a sua falta de correspondência com a soberania popular. No entanto, questiono em que medida a soberania popular é capaz de assumir um ponto de coordenação tão grande ao ponto de irromper contra a Constituição e o Constitucionalismo.

Uma vez que as sociedades contemporâneas, sob a égide do Estado de Direito, apresentam um caráter pluralista, parece que a Soberania apresenta-se de modo difuso, isto é, imersa em um contexto social em que a diferentes grupos competem para condicionar o poder político, de modo que o processo de decisão política é o resultado de uma longa e vasta série de mediações (BOBBIO, 2008) .

3. As Soberanias Contemporâneas

Em face de uma realidade globalizada e tecnológica, é interessante pensar quais são as fronteiras do conceito de Soberania.

Em primeiro lugar, deve-se indagar quais são as fronteiras internas da soberania.  Nesse sentido, em face do desenvolvimento e difusão das mídias sociais e veículos de informação pela internet, as sociedades, em especial as ocidentais, estariam, internamente, mais propensas à fragmentação? Digo isso pensando como as mídias sociais são capazes de fomentar construções de narrativas políticas, bem como a sua propagação. Nessa linha, penso sobre a construção de verdadeiros núcleos de poder centralizados capazes de (i) questionar e desrespeitar a Constituição e os Poderes legalmente constituídos e  (ii) desenvolver narrativas ressuscitando a noção de povo ícone, construção mítica cujo um dos principais objetivos é cercear questionamentos sobre a condução da política e homogeneizar o conceito de povo.

O tema é especialmente delicado na medida em que as mídias sociais dispõem de mecanismos de reforço a certos conteúdos a depender dos hábitos dos usuários, bem como a repercussão do conteúdo propagado.

Dessa forma, em que pese imaginar a soberania de modo difuso em face da disputa difusa pelo Poder, é preciso questionar se a as sociedades ocidentais, em especial o Brasil, não está caminhando em direção ao caminho inverso, qual seja, a consolidação de Poderes mais concentrados nos quais a soberania das leis e do povo são postas em xeque em função de novos projetos políticos, de novas soberanias.

Habitualmente, por outro lado, há de se pensar que a Soberania é adstrita aos limites territoriais e políticos de um Estado em uma dimensão de controle e controle do próprio Estado, como apresenta Dalmo Dallari (DEMARCHI e WLOCH,2017, apud DALLARI, 1995). No entanto, a hegemonia da soberania estatal vem sendo questionada a partir do intenso processo de globalização, acentuado principalmente a partir da segunda metade do século XX, e que implicou no aumento da interdependência entre Estados em termos econômicos, culturais e políticos.

Além da abertura de mercados e difusão da cultura pop, a globalização apresenta reflexos próprios a aspectos considerados como manifestação da Soberania, em especial na América Latina. Aos defensores assíduos da Soberania da Lei, por exemplo, uma série de mudanças introduzidas na Legislação do Brasil a partir da década de 90. Cite-se, nesse sentido, as seguintes modificações legislativas no Brasil:

“Em sintonia com o projeto de desnacionalização em marcha, a Emenda Constitucional nº 7, de 15/08/199564, autorizou que embarcações estrangeiras explorassem a navegação de interior e de cabotagem no país, conforme a redação do parágrafo único do artigo 178 da CF/1988. A Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/199565, permitiu a exploração do setor de telecomunicações pelas empresas privadas. Antes dela, o inciso XI do artigo 21 da CF/198866 determinava a exploração direta do serviço pelo Estado ou pela concessão à empresa estatal. Por fim, a Emenda Constitucional nº 9, de 09/11/199567, alterou a redação do parágrafo 1º do artigo 177 da Carta Magna, quebrando o monopólio da União em setores econômicos estratégicos: petróleo, gás natural e minério nuclear, e, portanto, permitindo a União contratar empresas estatais ou privadas para atuarem nestes setores” (DA SILVA e SALIBA, 2015)

Tais reflexos, no entanto, repercutem em outras esferas da vida nacional, sobretudo na política, o que nos leva a questionar em que medida a soberania dos Estados desenvolve-se de modo a não reconhecer um Poder mais forte que o próprio Estado.

4. Quem é verdadeiramente esse povo ao qual atribuímos soberania?

Considerando as ideias sobre o povo de Frederich Muller como um verdadeiro “ethos” no contexto atual com as noções de povo ativo, povo legitimante, povo destinatário das prestações civilizatórias do Estado e povo participante, a resposta sobre quem é o povo ao qual atribuímos soberania suscita outras indagações. Por mais que pareça falacioso buscar responder uma pergunta com outras indagações, os conceitos apresentados no exercício se aproximam de cláusula geral: faz sentido ser respondido conforme o  contexto e o caso concreto. Quais são as bases de sustentação da soberania deste povo? Mais precisamente de qual povo estamos a tratar? Qual o contexto histórico, político e social  em que a soberania  é exercida? A soberania é, de fato, exercida por este povo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E OS BLOQUEIOS DA CLASSE DOMINANTE. Ano: 2001. Disponível em:     http://milas.x10host.com/ojs/index.php/ibdh/article/view/35/37. Acesso em: 10/09/2021

COSTA, Alexandre Araújo. O PODER CONSTITUINTE E O PARADOXO DA SOBERANIA LIMITADA. Ano: 2011.

DA SILVA, Amanda Albano Souza. FUNDAMENTOS DO PÓS-POSITIVISMO: “QUEM É O POVO?” DE FRIEDRICH MÜLLER.  Ano: 2015. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/dir/dir-amanda_albano.pdf. Acesso em 10/09/2021.

DA SILVA, Mauri; SALIBA, Maurício Gonçalves. Globalização e direito: perda de soberania do estado e reforma constitucional na periferia do capitalismo. Ano: 2015. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/974/951. Acesso em: 11/09/2021.

DEMARCHI,Clovis; WLOCH, Fabrício. AS CONTRIBUIÇÕES DE NORBERTO BOBBIO E DE LUIGI FERRAJOLI À SOBERANIA DE HANS KELSEN. Ano: 2017.