Miroslav Milovic foi figura icônica do pensamento filosófico latino-americano contemporâneo e deixa um legado inegável de, sobretudo, um raciocínio da filosofia que impacta a vida concreta e a práxis. Ele desenvolve uma forma de pensar que visa transformar o mundo e reduzir injustiças, utiliza a reflexão filosófica para mais do que uma construção intelectual teórica humana, mas também para determinar e ser ação de mudança social.

Professor da Universidade de Brasília nos últimos anos, o mestre que já morou e conheceu uma enorme variedade de lugares e formas diferentes de filosofia, possuía um currículo invejoso e era referência mundial da filosofia política e jurídica contemporânea, e, apesar disso, sempre muito humilde, acreditava que a verdadeira filosofia, política ou direito não estavam no que um ou outro teórico importante raciocinava individualmente, mas sim na prática e movimento sociais de construção que acompanhavam as mudanças na vida real concreta.

Ele traz um pensamento do contemporâneo de modo contemporâneo, isto é, faz filosofia da prática real através do olhar crítico da atualidade, observando cuidadosamente as implicâncias das formas de reflexão na sociedade e nos grupos sociais. Miroslav, assim, analisa os diferentes pontos de vista, a autorreflexão das diferentes partes da sociedade e quais os efeitos práticos das filosofias dominantes que guiam o governo das gentes em sentido amplo, e a quem estas beneficiam. Ele trabalha muito, sobretudo, na crítica à filosofia de um bem puro ou verdadeiro metafísico, que pode e é, na prática conforme observa, forma de controlar através da mitigação da reflexividade.

Seguindo neste raciocínio, a prisão dentro do certo ou errado metafísico implicaria na banalização do mal pragmático reflexivo. Ações em teoria condizentes com o bem puro ou justo, na prática trariam efeitos desastrosos para uma realidade social invisibilizada pela metafísica filosófica dominante. O mal, assim tido pela caracterização de desigualdades e sofrimentos identificados a partir da reflexão, é banalizado, já que não é assim apresentado notoriamente na política dominante, presa a uma corrente de pensamento ainda individualista.

Neste caminho, Miroslav destaca a indispensável importância dos movimentos sociais como parte presente da filosofia, uma vez que eles nascem da autorreflexão coletiva de uma fatia da sociedade, muitas vezes ignorada, que possui tanta legitimação quanto qualquer outra para refletir política ou direito. Com a participação coletiva mais intensa na reflexão das ações, promovida a partir dos movimentos, a filosofia passa a abarcar a prática concreta de maneira mais ampla e considerar a práxis social das formas de pensamento como um todo maior, enxergando os sofrimentos injustos. Os efeitos das ações políticas tendem a ser mais bem discutidos e ponderados com base em seus resultados na vida das pessoas, além de simplesmente em sua fundamentação teórica em doutrinas abstratas de outros tempos.

À proporção que este diálogo com os movimentos sociais é intensificado, a sociedade supera o sério risco da despolitização, ou seja, reflete e argumenta mais sobre como ordenar-se o poder e o povo. Com um povo despolitizado, a reflexão crítica seria mínima e a filosofia que regeria o raciocínio dominante poderia ser facilmente a que mais beneficiasse a elite que determina o poder, à revés do povo. A alienação poderia se dar de maneira que uma realidade completamente opressiva, desigual e injusta na prática reflexiva coletiva, seria totalmente válida e conforme o bem superior. O bem maior já bastou para, por exemplo, justificar a superioridade de uns sobre outros em razão da cor da pele, e isso foi normalizado por bastante tempo até que a reflexão crítica ganhasse o espaço de contestar aquela realidade. Esse espaço para a filosofia crítica é uma das facetas mais importantes do pensamento de Miroslav, e a voz da coletividade é fundamental neste ponto.

Voltando a tratar da metafísica filosófica, o Professor Sérvio buscava desconstruir os conceitos abstratos que regem o mundo, sempre tentando provocar a reflexão do significado pragmático concreto das formas de pensamento, qual eram os resultados sociais de uma reflexão ou ação dominante. Por isso, se apresentava cético em relação à razão pura metafísica, visualizava autoritarismo na imposição do bem justificado apenas na razão de ser, sem a observância da reflexão filosófica e sem a participação dos diversos fragmentos das sociedades.

Dentro da realidade de submissão a uma política ou filosofia metafísica apontada pelo autor, a manipulação da sociedade poderia ser fator determinante para os governantes e detentores do poder se estabelecerem, de forma que a negação do outro ou das realidades que não os convém seria a práxi real e legítima, embora totalmente contrária a uma reflexão coletiva.

A Utopia de Miroslav seria uma sociedade sem esse grau de violência, tanto física quanto no sentido de restringir a capacidade de reflexão dos grupos sociais. Uma sociedade na qual as comunidades pensassem criticamente e refletissem sobre as consequências da política ou do direito na vida cotidiana comum de todos, e que pudessem manifestar com efeito suas conclusões. Outro aspecto este em que ele demonstra o pensamento de modo contemporâneo, que consegue visualizar as diferentes demandas das diferentes partes da sociedade.

Ele alcança esse patamar de pensamento com um extenso conhecimento filosófico que não se restringe a só confirmar ou discordar de reflexões dos grandes pensadores, atestando sua veracidade, mas que tenta também trazer essas reflexões para a prática concreta a partir do olhar crítico, objetivando verdadeiras transformações sociais a partir da reflexão coletiva das implicâncias da filosofia política ou jurídica na realidade.

Com este intuito que Miroslav estuda o conhecimento, para ele, o conhecimento não se descobre, é produzido. O conhecimento é fruto de ação humana, ele não existe metafisicamente na natureza, é um produto da construção social e filosófica baseada no esforço. De tal modo o bem e o mal também não são preceitos da natureza das coisas, mas frutos do esforço reflexivo humano, da ponderação social dos benefícios e malefícios das ações. Diante disso que apresenta o temor de uma realidade na qual o bem no fundo seja advindo de somente a reflexão de um grupo específico social, que utilizaria a metafísica como forma de justificar a instauração de um regime autoritário disfarçado.

Por fim, Miroslav deixa um legado de suma importância para a academia e para todos que tiverem o prazer de acessar seus pensamentos, aqui destacando a interpretação do pensar como forma de agir, a atenção aos efeitos ou resultados dos pensamentos na prática, a indispensabilidade da participação da reflexão coletiva e a desconstrução do regime metafísico do bem manipulado. Como estudantes do curso de direito, é interessante perceber, conforme Miroslav, que o Direito é um dos instrumentos da ação reflexiva discutida neste post, e como podemos, dentro do ramo, analisar a essência e consequência concreta das ações, tentando superar a metafísica dogmática para alcançar a reflexão e justiça social mais coerente com a vida real, sem diminuir a importância das filosofias já estabelecidas, mas adaptando-as à concretude do mundo real.