Nos momentos de estabilidade, as autoridades tradicionais não buscam justificar a legitimidade do seu exercício de poder e a Filosofia assume um papel mais ativo na crítica destes poderes (COSTA, 2020A). Entretanto, são nos momentos de adversidade que as concepções e limites das tradições modernas são questionados e postos à prova.

Em um contexto de crise sanitária, tal entendimento não é diferente. Abordagens como a prevalência do bem coletivo sobre os direitos individuais tornam-se rotineiras. Discussões referentes à interferência de questões políticas e meta científicas em um debate exclusivamente médico ganham a agenda nacional. Em suma, medidas protetivas estatais passam a ser interpretadas por alguns, conforme apontado pela filósofa Claire Marin, como um verdadeiro "ataque à liberdade".  

I- O direito individual dos modernos  

Antes de tudo, é necessária uma maior compreensão da visão de mundo tradicional vigente e entender que a própria modernidade é uma tradição (COSTA, 2020C). A base da modernidade é a naturalização dos direitos combinada com a artificialidade dos governos (COSTA, 2020B), ou seja, o discurso antigo-medieval de que cada ser humano deva ocupar seu lugar na sociedade por motivos divinos ou orgânicos foi substituído pela noção que todos são dotados de direitos naturais inerentes. Surge, então, o sujeito de direitos (COSTA, 2020A). O cidadão moderno, agora, é um sujeito autônomo com direitos à liberdade, a igualdade, entre outros.

E onde está a artificialidade dos governos? É aí que está o “x” da questão da modernidade. Foi a união de todos esses sujeitos dotados de direitos naturais que estabeleceu as estruturas políticas modernas por meio de um contrato social (COSTA, 2020A). É estranho reconhecer que os governos são construtos históricos e, ao mesmo tempo, fundados por valores metafísicos dos direitos naturais. Será que, na verdade, os direitos à igualdade e à liberdade não são naturais, mas também construtos históricos? De qualquer forma, os primeiros modernos fundaram suas constituições sob bases do direito natural.

Como consequência disso, podemos, agora, entender que o direito à liberdade dos modernos não é um valor metafísico que justifique uma pretensa ordem natural. Voltemos ao tempo medieval para uma melhor compreensão disso. Neste período, um senhor feudal se sentia livre quando podia usufruir dos seus direitos de estamento e, se um rei interferisse na ordem natural do lugar de cada um, feriria a sua liberdade. Portanto, a noção de liberdade dos antigos estava atrelada a participação política na sociedade e nada tem a ver com a liberdade da modernidade (CONSTANT, 1985). A noção de liberdade foi se alterando com o desenvolvimento histórico até a concepção atual de liberdade como autonomia individual.

Nesse sentido, após as revoluções burguesas do século XVIII, a autonomia do indivíduo foi colocada como base jurídica para a legitimação do paradigma moderno. Mas são os momentos de crise que levam as pessoas a refletirem o que legitima a tradição vigente. Pois bem, como as reações à Revolta da Vacina, no início do século XX, nos ajudaria a entender a concepção moderna de liberdade, assim como a crise causada pela pandemia de COVID-19?

II - Direitos individuais em crises de saúde pública

Comparar as manifestações acerca da lei de vacinação obrigatória de 1904 com as recusas em se seguir as medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19 não é uma reflexão anacrônica. Curiosamente, ainda que separadas por séculos, ambas as crises de saúde pública compartilham um ponto em comum: o discurso da defesa da esfera individual frente a "intervenção estatal". Após a indicação do sanitarista Oswaldo Cruz ao Departamento de Saúde Pública, um extenso programa de combate às doenças tropicais foi implantado pelo governo. A mais polêmica, dispunha sobre a imunização obrigatória contra a varíola.

A legislação não foi bem recebida pela população. Questões religiosas e morais foram trazidas à tona: "A virgem, a esposa e a filha terão que desnudar braços e colos para os agentes da vacina" dizia o porta-voz do Centro das Classes Operárias (MELLO, 2019). Periódicos acusavam a aplicação da norma, que seria de fato obrigatória apenas aos  moradores de cortiços e áreas suburbanas. Mas o argumento mais complexo era o da própria liberdade do cidadão. Essa teoria era defendida pelo senador Ruy Barbosa, que em longo discurso, enfatizou sua posição:

"(...) Neste assunto, é hoje, pois, convicção minha, só uma certeza existe: a de que o Estado comete uma violência, de que o Estado exorbita suas funções constitucionais, a de que o Estado perpetra um crime assumindo um papel de árbitro nessa lide (...) Duvidosa pende, ainda, aqui, a verdade científica. Mas por isso mesmo, quanto à verdade jurídica, não pode haver dúvida alguma. Assim, como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme (...) Até aqui, até a pele que nos reveste pode chegar a ação do Estado. Sua polícia poderia lançar-me mão à gola do casaco, encadear-me os pulsos, lançar-me ferro aos pés. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene pública, as drogas de sua medicina, isso não pode, sem se abalançar ao que os mais antigos despotismos não ousaram" (ASR: 16/11/1904, p. 106).

Para o jurista baiano, amplo defensor da teoria constitucional norte americana no advento da república, seria inconcebível que o Estado legislasse sobre "a terapêutica do meu uso". Segundo o parlamentar, não haveria lugar a obrigatoriedade de uma medicação que ainda teria efeitos relativamente desconhecidos pela ciência. "Eu não tenho o direito de legislar", completava, "coercitivamente para os meus concidadãos a terapêutica do meu uso, por mais autorizada que seja, com bons afiadores nacionais e estrangeiros".

A construção argumentativa de Ruy Barbosa guarda semelhança com discursos daqueles contrários às máscaras, como forma de prevenção à COVID-19. A alegação de ferimento da sua individualidade e personalidade, assim  como o direito à liberdade de escolher a medida mais desejada, são comuns em ambas. A defesa do direito de duvidar de métodos racionais, comprovados por uma área especializada também é patente nas duas manifestações. Interessante notar, que estes argumentos são usados em outros cenários, como na rejeição ao uso do cinto de segurança nos veículos ou o uso de capacete em motocicletas. Entretanto, nos casos de doenças contagiosas em que o agente infeccioso pode se disseminar entre indivíduos, existe um fator que pode “flexibilizar” o direito à liberdade: a individualidade de um ser humano contaminado afeta a saúde da coletividade.

Na atual pandemia, muitos tiveram que abrir mão de sua liberdade individual para manter a saúde da população. A quarentena como medida de enfrentamento à COVID-19 é outro exemplo de que o direito natural de ir e vir foi abalado. Era inimaginável que antigos métodos, como a quarentena, voltassem à tona em pleno século XXI. Em virtude disso, não há um critério objeto da liberdade, pois ela é um construto histórico. A capacidade do ser humano de se moldar frente às adversidades nos revela que o conceito de liberdade “varia” de acordo com o contexto histórico.

Aliás, tal percepção não passou despercebida por Ruy Barbosa, o qual mudou de opinião. Após a morte de Oswaldo Cruz, o senador baiano passou a glorificar a eficiência da administração do sanistarista na saúde. Ironicamente, Ruy Barbosa elogiou o caráter do falecido médico de não se "trepidar ante obstáculos" e críticas. Caso contrário, "o Brasil estaria, hoje, onde estava há vinte anos, malvisto, atrofiado e esterilecido pelas endemias e epidemias, que o vexavam e arruinavam" (BARBOSA, 1917).

Referências

ANAIS DO SENADO DA REPÚBLICA. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica.asp

BARBOSA, Rui. Oswaldo Cruz. Discurso pronunciado em 20 de maio de 1917.

COSTA, Alexandre. O senso comum teórico dos juristas modernos, Arcos 2020A.

COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade, Arcos, 2020B.

Costa, Alexandre. Cartografia da racionalidade moderna, Arcos, 2020C.

CONSTANT. B. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Filosofia Política 2. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 9-25.

MELLO, Fernando. Rodrigues Alves: a modernização do Rio de Janeiro. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2019.