Como se sabe, a modernidade foi fundada sobre o pressuposto de que a racionalidade e a autonomia são elementos da natureza humana, que é observada sempre no nível do indivíduo. Nessa concepção, a atividade política realizada pelo Estado deve, necessariamente, regular o tecido social ao mesmo tempo em que deve respeitar a autonomia individual, considerada como o bem jurídico mais importante, eis que é a própria justificativa para a existência do Estado, de acordo com Hobbes.

Em 2020, dificilmente se imaginaria o contexto atualmente vivido. Muitos foram os impacto causados chegada do novo coronavírus causador da Covid-19 na vida humana e na relações sociais, sendo que os pensadores de todo o mundo ainda estão tentando analisar a extensão da atual crise além de formas de minimizar os efeitos negativos causados pela pandemia.

A filósofa Claire Marin pontua sabiamente sobre o tema. Para ela, o vírus chegou e nos fez colocar em questionamento diversos pontos que já tínhamos como certos, baseados em toda a transformação mundial ao longo dos anos.

Importante mencionar que nós nos questionamos, nesse sentido, acerca da ciência e também da liberdade. Nos revoltamos com a ciência e vivemos um verdadeiro "ataque à liberdade".

Para Claire Marin, "Os vínculos com os outros se restringiram grandemente. Experimentamos até que ponto somos seres sociais, animais políticos que precisam se relacionar com outros."

Colocando em contraponto a visão de Hobbes, pode-se fazer uma análise de que o confinamento devido à pandemia seria também, assim como a escravidão, justificado pela autonomia de vontade. A lógica aqui seria a mesma utilizada para a "escravidão legitimada", uma vez que "a racionalidade exige de cada pessoa que, para manter sua vida e sua segurança, abra mão da sua liberdade."

A teoria de Hobbes se aplica ao momento da pandemia, visto que a segurança torna-se a base para o funcionamento da sociedade em alguns países. Em momentos de extrema dificuldade, as medidas para o enfrentamento à doença são enxergadas como um verdadeiro obstáculo à autonomia individual. Tome como exemplo os Estados Unidos, onde o uso de máscaras tornou-se uma nova expressão da [polarização política](https://www.theguardian.com/world/2020/jun/29/face-masks-us-politics-coronavirus): grupos conservadores, ligados ao Partido Republicano, chegaram à protestar contra a obrigatoriedade do uso de máscaras e contra as medidas de distanciamento social adotadas a nível estadual.

O indivíduo autônomo, que age livremente conforme suas próprias escolhas para ele mesmo, sequer pode existir nesse momento, uma vez que a pandemia se tornou um fator de insegurança em comum para todos. Todos estão em risco, logo, não se trata apenas de uma questão de saúde individual, pois toda e qualquer ação ou omissão pode influenciar a saúde e a vida de uma linha indeterminável de pessoas.

Talvez esse fenômeno do individualismo, sobre o qual a modernidade ocidental foi fundada, explique porque os países do Ocidente tiveram tanta dificuldade para conter a pandemia em seus próprios territórios, [comparando com os países do Sudeste Asiático, onde o SARS-Cov-2 surgiu](https://www.scmp.com/week-asia/opinion/article/3078618/why-wests-coronavirus-response-shows-it-isnt-better-rest-us). Muitas sociedades asiáticas dão maior prevalência à comunidade do que ao indivíduo, herança do confucionismo.

Para Engelhardt, que defende a teoria dos estranhos morais, ninguém teria o direito de impor aos outros seus estilos de vida e suas concepções sobre o que é o bem ou o mal, nem o direito de limitar a expressão de tais concepções. Ocorre que a pandemia veio para nos fazer transformar diversos conceitos. Em meio à caótica luta para evitar o adoecimento e morte precoce de milhares de pessoas, talvez a limitação temporária de direitos considerados fundamentais seja a resposta necessária para a sobrevivência da espécie humana.

Referências

COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. <https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/ >

Engelhardt Jr HT. The foundations of bioethics. London: Oxford University Press; 1996.