Ao longo da história humana, partimos de um modelo explicativo de mundo baseado em narrativas mitológicas e crenças sobrenaturais. Passamos pelo gregos e a consolidação da sua crença em uma ordem abstrata natural. Os gregos compreendiam que a realidade é constituída pelo aspecto material ("visível) e pelo imaterial e é no mundo imaterial que se encontram os primeiros princípios (ou a verdade fundamental oculta das coisas). É na imaterialidade da realidade que se desenvolve a Metafísica grega. Por último, chegamos à análise materialista, que rechaça o imaterialismo e avança conjuntamente com a expansão científica, que passa a analisar não apenas a natureza, mas também a sociedade. A ciência busca a pretensão relativa de verdade, uma vez que compreende não haver uma verdade absoluta universal a ser encontrada, e que as respostas ("verdades") científicas possuem uma característica intrínsecas: todas são passíveis de refutação e ninguém espera que um achado científico vigore eternamente como verdade.

O mundo moderno se desenvolveu à luz do materialismo e, por isso, enfrentou sua profunda crise. Afinal, é cômodo viver um mundo em que há uma verdade absoluta e ela pode ser encontrada (seja ela uma verdade religiosa ou natural). É cômodo viver em um mundo em que há uma unicidade nos valores sociais - estéticos, religiosos, morais. Porém, pode ser profundamente angustiante (e até enlouquecedor) se perceber sem qualquer espécie de certeza. Para muitas pessoas, viver a liberdade de construir seus próprios valores com a consciência de que estes possuem o rótulo de "verdade" apenas para si mesmos (e talvez para alguns outros indivíduos que partilhem das mesmas crenças) pode ser uma prisão pior do que viver em um modelo autoritário em que as tradições te mostram a direção a tomar e não aceitam caminhos alternativos.

Ao chegarmos no mundo contemporâneo (e foco dessa postagem), nos deparamos com uma realidade ainda mais confusa. De um lado, temos parte da sociedade que, inconformada com a ruptura moderna, anseia um retorno às tradições e à consolidação de sua visão de mundo (supostamente verdadeira). Nesse contexto temos conservadores e religiosos (especialmente a parcela cada vez mais crescente de neopentecostais brasileiros), comumente atrelados a uma visão política "de direita". De outro extremo temos parte da população, comumente atrelados a uma visão política "de esquerda" que, se de um lado reconhece o discurso relativista ao analisar que as tradições, antes tidas como verdades absolutas, nada mais são do que uma percepção da realidade (de forma alguma superior às demais), de outro se colocam em uma posição de superioridade ao afirmarem que os seus ideais são os corretos. No meio dos extremos (e dentro deles) temos uma série quase que infinita de grupos diversos: católicos, protestantes, umbandistas, conservadores, liberais, libertários, anarquistas, socialistas, comunistas, progressistas, homens, mulheres, negros, brancos, pardos, indígenas, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, heterossexuais, crianças, jovens, adultos, idosos... Os grupos são tão diversos quanto a capacidade humana de rotular coisas.

Nesse contexto atual de multiplicidade de visões de mundos, tão múltiplas quanto a quantidade de grupos (ainda que esses grupos se alinhem ocasionalmente em crenças comuns), nos encontramos nós, universitários, dentro de um dos cursos mais prestigiados no mundo, em uma das universidades mais prestigiados do País. E tal qual na nossa sociedade, também aqui, dentro dos nossos "muros",  é possível analisar toda essa confusão. Vivemos dentro da universidade, assim como fora, uma atual guerra em que os lados se veem reciprocamente como inimigos mortais e detentores da verdade absoluta e dos valores mais elevados. Todos estão do lado certo da história, todos advogam o título de defensores do bem-estar da sociedade e todos negam que outra visão de mundo possa ser, também, aceita.

Pessoalmente, foi entrando na universidade que minhas certezas se desfizeram. Entrei na universidade para cursar Ciências Sociais, então com 19 anos de idade e com o nome de Ana Cecília. Meus primeiros anos no curso me trouxeram a crise da modernidade na sala de aula. Aprendi o que são papeis sociais - e como estes nos moldam a sermos pessoas diferentes em cada contexto da nossa vida (em cada relacionamento, em casa espaço, em cada momento) - o que me levou à pergunta "quem desses sou eu, de fato?". Terminei o curso sem saber a resposta para essa pergunta. Tive contato também com o materialismo e com o pensamento relativista - e pude perceber como "verdade" é um conceito talvez supervalorizado, porque conseguia claramente perceber que variava tanto ao longo do tempo, dos lugares e das culturas.

Mudei de curso e, aos 22 anos, comecei a cursar Direito e passei também a me chamar Paulo César. Foi aqui que vivi a crise da modernidade na minha vida pessoal. Afinal, o que é ser homem e mulher? Se nem a biologia (tão natural, tão concreta, tão "verdadeira") era capaz de ser imutável, o que dizer de todos os outros aspectos que me constituíam enquanto indivíduo? O que dizer dos meus paradigmas filosóficos, políticos? O que era de fato eu (e, portanto, verdade) e o que eram imposições/influências sociais? Haveria uma verdade?

Parti da minha vida pessoal, apesar de não ter sido essa a ideia inicial, mas que agora considero adequada por dois motivos. Primeiro, que não poderei jamais falar de qualquer ponto de vista que não seja o meu próprio - ainda que o texto resulte de uma profunda reflexão coletiva. E tendo em vista que só posso falar da minha visão, nada mais justo que situar o leitor nesse contexto. E segundo que, por mais atípica que tenha sido a minha experiência pessoal (caso o leitor se fixe na questão da minha identidade de gênero), se o leitor puder ampliar um pouco mais sua visão verá que, apesar de isso ter me feito evidenciar mais os conflitos, essencialmente as dúvidas e angústias que vivi, todos viveram também.

Eu trilhei o caminho de me ver como um profundo progressista, situado à esquerda no espectro político, e profundo defensor das causas minoritárias. O fiz com tamanho afinco que, apenas após a minha transição de gênero e estando situado em um novo lugar - o de transexual (e, como minoria social, com o dever de me manter à esquerda), mas também de liberal, me dei conta de como são engessados todos esses locais. E nesse lugar paradoxal, rechaçado por todos os lados - tal qual Sartre e Camus - percebi que os extremos partilham dos mesmos validadores que justificam seus próprios anseios. As minorias sociais e a esquerda me rechaçavam pelo meu posicionamento político à direita. A direita me rechaçava pela minha identidade de gênero ameaçadora às tradições conservadoras. Eu rechaçava a todos, pois o meu lugar já não precisava estar fixado em lugar algum.

Mas de igual modo vi amigos entrarem na faculdade, situados à direita conservadora, seja por questões religiosas pessoais ou por visões políticas, viverem os mesmos sofrimentos e crises ao colocarem em questionamentos suas próprias crenças. Em que pese a universidade estar situada na sociedade e com ela partilhar os grupos sociais, dentro do espaço acadêmico não há abertura para que o conservadorismo se posicione. Foi um espaço conquistado e que ainda é majoritariamente pertencente ao pensamento progressista ("à esquerda"), o que implica em um choque muito grande para boa parte dos estudantes que se veem, em um primeiro momento, incertos sobre suas próprias crenças.

De outro lado, vi amigos com quem compartilhei muitos momentos de militância progressista se sentirem perdidos da mesma forma. Veja, seja à esquerda ou à direita, todo pensamento extremista (e atualmente, todos os lados são extremistas e mais se assemelham a seitas) é capaz de, num piscar de olhos, colocar um indivíduo de seu grupo em uma espécie de ostracismo social. Eu vivi essa exclusão e conheço muitos que também viveram.

Que a crise da modernidade alcança a todos  na universidade, ainda que com pequenas diferenças, quase todos concordarão. Menos certeza tenho sobre como saem dessa crise e com que novo paradigma pessoal.

Talvez em decorrência da ruptura pessoal que fiz em minha vida, nunca mais consegui retornar a uma postura intransigente de verdade universal, absoluta. Me tornei mais flexível a compreender que as visões de mundo são múltiplas e todas carregam o semblante de verdade para quem as segue. Porém, nunca cheguei ao ponto de me ver como Alexei, herói de Dostoiévski, descrito como alguém que "parecia tudo admitir, sem nada reprovar, embora muitas vezes com profunda tristeza"[1]. Sou talvez um pouco mais humano e sinto não apenas tristeza, como raiva dos pontos de vista que são extremamente diferentes e incompatíveis com o meu. Acredito que muitos se vejam da mesma forma - situados em um lugar não tão ao extremo, mas com muito menos certezas do que tinham quando chegaram.

Ainda procuro equacionar a consciência de que todos possuem suas verdades, porque os significados e valores são atribuídos pelos homens (e mulheres) e não há qualquer verdade universal a ser encontrada, nas escrituras ou na natureza, com o fato de que, ao ser livre para construir meus valores e significados, automaticamente atribuo a eles um papel de maior relevância do que os construídos por outros. Assim, apesar de (acreditar) compreender o que Sartre buscou dizer com "cada qual pode fazer o que quiser, sendo incapaz, a partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vista e os atos alheios"[2], ainda não alcancei a capacidade de efetivar isso na prática. E aqui deixo o meu questionamento final: se não há verdade absoluta e universal no mundo e todos somos livres para criarmos significados e valores, e considerando que ao fazermos isso, elegemos determinados valores como superiores aos que não escolhemos, de todo modo, na prática, não baseamos nossa vida em verdades que se operacionalizam como absolutas?

[1] Alexei é o personagem principal do livro "Os irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski.

[2] Citação extraída do livro "O existencialismo é um humanismo", de Paul Sartre.