Introdução

A força que as instituições de poder exercem ao longo da história foi inicialmente considerado natural e inerente a cada sujeito na estrutura a qual nascia. Na modernidade, essa configuração naturalística passa a uma concepção de poder adquirido como parte de um processo de avanço gradativo de relações políticas por meio de acordos entre partes autônomas, criando uma construção híbrida, mantendo valores tradicionais de sujeitos que não estão dispostos a renunciar a eles e também valores parcialmente inovadores.

Tal equação da modernidade é delicada, principalmente quando se têm que é pautada tanto nas liberdades individuais, sendo esse um pilar dos Estados democráticos, quanto a necessidade de alcançar o coletivo e suas necessidades que podem entrar em divergência com elas. Isso se torna ainda mais complexo em um cenário de pandemia, sendo o que acontece atualmente com a covid-19, uma doença viral altamente transmissível e letal que já ceifou mais de 2,5 milhões de vidas no mundo e, só no Brasil, já deixou quase 300 mil mortos.

Nesse contexto, diversas discussões são feitas na sociedade e, especialmente no âmbito jurídico, acerca da linha tênue entre as liberdades individuais e ações com foco coletivo que visem achatar a curva de crescimento da letalidade da pandemia. Entre tais ações, estão a obrigatoriedade do uso de itens de proteção individual como máscaras, no campo individual; a promoção de melhor oferta de estrutura médica de tratamentos e tempo para produzir, adquirir e vacinar a população, no campo coletivo propositivo; mas também, no campo coletivo restritivo, de medidas proibitivas a estabelecimentos comerciais, espaços públicos e ao livre trânsito das pessoas e coisas.

(Foto: Marvin Recinos/AFP via Getty Images)

Direito à liberdade em tempos de pandemia

Especialmente em contextos emergenciais, como em um cenário pandêmico, torna-se muito mais complexo o rearranjo político e social das estruturas vigentes em cada sociedade. Não há fórmula sobre como como uma população inteira vai lidar diante de problemática de tamanha grandeza lançada. Pelo próprio caráter urgente, para além de se constituírem foros democráticos ou não para tratar dessas questões, entra em discussão até que ponto as liberdades individuais de cada sujeito podem ser determinadas e determinantes no alinhamento de decisões necessárias.

O art. 5º da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988), fica garantida a inviolabilidade de, entre outros direitos, o da liberdade. Nele, também é assegurado o direito de ir e vir, tanto para brasileiros, quanto para estrangeiros. Segundo o coordenador do curso de Direito da Universidade Unileão, o professor Otto Cruz (UNILEÃO, 2020), a Constituição busca justamente determinar barreiras para ações do Estado que venham a intervir de modo autoritário nas liberdades individuais, mas reforça que os direitos coletivos também são garantidos por lei. Nesse aparente paradoxo, pode-se encontrar na própria definição acerca do direito de mobilidade exceções que visam justamente preservar a coletividade, garantindo a sua priorização política nas ações a serem desenvolvidas.

Para Rios (2020), atitudes como as tomadas por governadores e prefeitos de todo o país referentes à limitação do funcionamento de estabelecimentos comerciais e da própria mobilidade dos cidadãos por meio de medidas restritivas e confinamentos que visem achatar a curva de contaminação pela covid-19 e, assim, oferecer mais tempo para um calendário de vacinação, melhores condições de atendimento aos pacientes, entre outros fatores, não se configuram como ruptura dos direitos fundamentais regidos pela Constituição, pois não possuem caráter permanente e não são impostos por motivação banal – pelo contrário, percorrem esferas democráticas e funcionam como último recurso a ser utilizado.

O fato de estarmos inseridos dentro de uma comunidade política, que além de possibilitar vantagens desde a sua organização visa proteger, desenvolver e cuidar de seu povo, também implica consequentemente em algum grau de limitação das liberdades individuais se assim for necessário. Inclusive, Rios (Ibidem) destaca que essa não é uma percepção recente, mas já em Leviatã, do filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651, discute-se a necessidade de uma relativização quanto a essa questão. Já no século XXII, John Stuart Mill, considerado um nome importante da filosofia política liberal, em seu livro “Sobre a Liberdade”, datado de 1859, a discussão se mostra mais ampliada e enriquecida, e mais uma vez são traçados limites para as liberdades sociais em detrimento da necessidade coletiva.

De acordo com Rios (2020), é necessário que seja combatido o discurso de que a liberdade absoluta é mais importante que a vida. Segundo a autora, isso é uma impropriedade jurídica, devendo-se impedir que ocorra um “atropelo da vida enquanto bem jurídico”.

Para a filósofa Claire Marin, o mundo não estava pronto para vivenciar uma pandemia de tal grau na modernidade. Os países economicamente desenvolvidos, especialmente, não acreditavam nesse cenário, pois parecia para eles uma possibilidade ultrapassada. Do mesmo modo, para a filósofa, é indigesto indicar alternativas como o distanciamento social e o confinamento para a população, pois para eles, tais medidas são tão arcaicas quanto a ideia de uma pandemia de tais proporções parecia ser. Ela destaca que a população, de modo geral, não estava preparada para uma situação como essa, considerando como um ataque à liberdade após uma longa trajetória histórica ascendente de autonomia e afirmação do indivíduo (AYUSO, 2020).

No contexto atual, a humanidade se descobre mais vulnerável do que gostaria e menos individual do que imaginava. Essa é uma importante ruptura para nossa consciência social no âmbito pessoal, mas também estrutural enquanto sociedade. Isso porque tais conceitos de liberdade e individualidade são grandes marcos da filosofia moderna postos em cheque perante o cenário pandêmico.

De acordo com Claire Marin (Ibidem), será um caminho ainda tortuoso, pois apesar de tudo, ainda não adquirimos consciência do que é o corpo social, algo que ela relaciona com uma lógica individualista do capitalismo moderno, pois somos uma sociedade que não discute o coletivo e nem as implicações do que as ações individuais fomentam nele. A autora conclui sua análise de modo cético, desacreditando que essa experiência pandêmica realmente tenha reflexos transformadores da raiz da sociedade moderna, e que talvez apenas continuemos revivendo os mesmos dilemas em contextos, épocas e com pessoas diferentes (AYUSO, 2020).

(Foto: Daniel Castellano/SMCS)

Considerações finais

Por mais que a humanidade esteja atravessando um momento que tenha um certos elementos inéditos no aspecto da dimensão da crise de saúde global na modernidade, aspectos que regem a sociedade possuem uma base em motores políticos e filosóficos que pode nos auxiliar na compreensão de como lidamos com a situação, seja na esfera individual, política, social ou na jurídica. Tais esferas estão muito mais entrelaçadas do que talvez esperássemos, sendo algo que a própria pandemia nos apresenta.

Pelo viés jurídico, o desafio filosófico é tão grande quanto o político e social. Isso porque, do modo que como Costa (2020a) reflete, passamos a apenas priorizar “o que fazer”, ignorando a interrogação do “como fazer” e os questionamentos filosóficos que foram sendo suprimidos por abordagens positivistas, principalmente a tecnicista com viés dogmático definido pelo autor enquanto a base do senso comum dos juristas. Assim como nossas ações individuais possuem uma responsabilidade coletiva, o Direito precisa se desvencilhar de um senso comum tecnicista, para que possamos (re)discutir sobre liberdade, sociedade, direito, individualidade e coletividade. O autor descreve justamente que a base da política filosófica moderna é compreender a política enquanto uma referência à autonomia individual, configurando-se em um dilema tanto no âmbito político quanto filosófico (COSTA, 2020c).

Referências

AYUSO, Silvia. Claire Marin: “Talvez sejamos muito menos individuais do que pensávamos”. El País, 2 set. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-02/claire-marin-o-confinamento-nos-mostrou-ate-que-ponto-somos-seres-sociais.htmlAcesso em: 12 de março de 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmAcesso em: 12 de março de 2021.

COSTA, Alexandre. Cartografia da racionalidade moderna. Arcos: Textos Jurídicos e Acadêmicos, 2020c. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/cartografia-da-racionalidade-moderna/  Acesso em: 12 de março de 2021.

COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos: Textos Jurídicos e Acadêmicos, 2020b. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/Acesso em: 12 de março de 2021.

COSTA, Alexandre. O senso comum teórico dos juristas modernos. Arcos: Textos Jurídicos e Acadêmicos, 2020a. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/o-senso-comum-teorico-dos-juristas-modernos/Acesso em: 12 de março de 2021.

RIOS, Terezinha. As liberdades individuais no contexto da Covid-19: Constituição em tempos de pandemia. Porto Alegre: IARGS - Instituto de Advogados do Rio Grande do Sul, 2020. Disponível em: https://www.iargs.com.br/as-liberdades-individuais-no-contexto-da-covid-19-constituicao-em-tempos-de-pandemia/Acesso em: 12 de março de 2021.

UNILEÃO. Limites da liberdade individual durante a pandemia: liberdades individuais são representadas por um conjunto de direitos que estão dispostos na Constituição Federal. Unileão, 2 jul. 2020. Disponível em: https://unileao.edu.br/2020/07/10/limites-da-liberdade-individual-durante-a-pandemia/Acesso em: 12 de março de 2021.