Desde o surgimento da ideia de agrupamento humano organizado, temos evoluído nosso conceito quanto às formas de organização social buscando estabelecer um sistema para regular a conduta dos indivíduos que optam por viver em sociedade. Todavia, a viabilidade desses sistemas e sua efetividade somente pode ser compreendia com uma análise mais aprofundada.

Dito isso, partimos de um conjunto específico de um corpus conhecimento básico, considerado pelos indivíduos como representativos daquela sociedade. A “Sociologia da Estabilidade”, de Lyra Filho (LYRA FILHO, 1999, p. 56-58), explica o fenômeno do Direito como algo que foi construído através de consenso refletindo os costumes e regras de um povo que vivia em perfeita harmonia, posteriormente sendo levado à criação das instituições de Direito, às quais só permitem mudanças dentro do limite, ou seja, controladamente, pois se trata-se de uma ordem estabelecida conforme o que o povo já tinha como certo e, portanto, não tem necessidade de mudá-la.

No mesmo viés desse entendimento, Martin Heidegger afirmou:

“A interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido de interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo o princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia” (HEIDEGGER, 1997, p. 207. 280-300).

Esse entendimento realça a qualificação das condutas em boas ou más, justas ou injustas. Esse paradigma foi se desenvolvendo durante séculos baseando-se na razão apurada e lógica, visando achar os princípios gerais e universais para regular todos os direitos, deveres e convenções, e estabelecendo a relação entre as normas e a realidade de uma determinada sociedade.

Vale lembrar que, com o passar do tempo, uma nova interpretação abre espaço para novas concepções e ideias. Nesse sentido, Hobbes (2003) afirma que a função essencial do Estado é a manutenção da ordem e da paz através do estabelecimento de um contrato firmado entre os indivíduos que renunciam à própria força em favor de um soberano, mas que não garantem o Direito do indivíduo contra este mesmo soberano. Isso nos leva à visão de Hannah Arendt em sua obra “Sobre a Violência”:

“a lacuna entre os meios de violência possuídos pelo Estado e aquilo que o povo pode juntar por si mesmo [...] duraria apenas enquanto a estrutura de poder do governo estiver intacta” (ARENDT, 2016, p.38-39).

E qual não seria a melhor forma de manter a estrutura de poder intacta, se não sua normatização? Pelo estabelecimento claro e inequívoco de normas escritas que orientariam o comportamento dos indivíduos? Poderíamos dizer então que careceríamos de um conhecimento sistemático e ordenado dos fenômenos que poderiam ser objeto de conflitos no convívio social.

Entretanto, seria isso o suficiente? Ou deveríamos adotar um olhar mais amplo, para além da norma? Bobbio vem em nosso socorro em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, ao escrever:

“[…] na realidade, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si (e estas relações serão em grande parte objeto de nossa análise). Esse contexto de normas costuma ser chamado de “ordenamento”. E será bom observarmos, desde já, que a palavra “direito”, entre seus vários sentidos, tem também o de “ordenamento jurídico”, por exemplo, nas expressões “Direito romano”, “Direito canônico”, “Direito italiano” [“Direito brasileiro”], etc.” (BOBBIO, 1995, p. 19).

Tais considerações nos permitem inferir que o conceito geral de norma é o ponto no qual nos apoiamos para desenvolver o próprio discurso normativo, bem como a teorização jurídica. Com isso, observamos a necessidade de codificação e a cientifização daí decorrentes, já que há uma mudança no entendimento da função do Direito ao se estabelecer uma interação dinâmica entre as três dimensões: fatos sociais, valores e normas.

Sendo assim, o fato está diretamente relacionado ao aspecto social e histórico de uma determinada sociedade e o que ela considera como justiça e valores válidos, sendo o escopo axiológico aquele buscado conforme estabelecimento normativo existente e um grande teorizador deste conceito foi Miguel Reale, resumido por José Maurício de Carvalho em sua obra “Miguel Reale: ética e filosofia do direito”:

“A compreensão tridimensional do Direito sugere que uma norma adquire validade objetiva integrando os fatos nos valores aceitos por certa comunidade num período específico de sua história. No momento de interpretar uma norma é necessário compreendê-la em função dos fatos que a condicionam e dos valores que a guiam. A conclusão que nos permite tal consideração é que o Direito é norma e, ao mesmo tempo, uma situação normatizada, no sentido de que a regra do Direito não pode ser compreendida tão somente em razão de seus enlaces formais” (CARVALHO, 2011, p. 186).
Tridimensionalidade do direito ilustrada (Imagem: Letícia Campos)

A tridimensionalidade postulada por Reale ainda defende que:

“Fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou sociólogo do Direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da norma” (Ibidem, p. 70).

Ao incorporarmos essa visão ao contexto cultural, reformulamos a vivência jurídica e podemos chegar a pelo duas conclusões imediatas: a sentença do juiz é fato e o direito apresenta uma realidade dinâmica.

Referências

ARENDT, Hanna. Sobre a Violência. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

CARVALHO, José Mauricio de. Miguel Reale: ética e filosofia do direito. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I. Petrópolis: Vozes, 1997.

HOBBES, Thomas.  Leviatã (1651).  Trad. Eunice Ostrenky.  São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LYRA FILHO, Roberto.  O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1999.