Autores:  Carlos Alberto Rabelo Aguiar, Guilherme Domingos dos Reis, Adriano Augusto Araújo Magalhães, Jhonas de Sousa Santos, Rebeca Cristina Pereira Araújo e Raíck Junio dos Santos Silva.

Com o advento do século XXI, houve drástica mudança no modo de produção e organização do trabalho. Antes deste século, o trabalho era exercido dentro de espaços físicos e territorializados (as fábricas); a fabricação em massa era o principal objetivo dos chefes das fábricas, de modo a suprir um consumo também crescente; era a fábrica que exercia a regulação do fluxo de oferta e demanda do mercado; havia, dentro das fábricas, estruturas rígidas e hierarquizadas, que ditavam o modo de organização do trabalho (VIANA, 1999, p. 155-156).

Agora, em razão da exigência de redução do custo de produção e da globalização/informatização do capital, os modos de produzir e de trabalhar mudaram: i) a produção se horizontalizou; ii) não há mais vínculo direto entre empregador e empregado, em razão do incremento das estratégias de terceirização do processo de produção; iii) a produção em massa deixa de ser o foco do empreendimento, para dar lugar a uma estratégia de produção voltada à otimização dos custos de produção (produção daquilo que puder vender). Em razão da 4ª Revolução Tecnológica, as relações de trabalhos, no século XXI, passam a ser caracterizadas, sobretudo, pela ampla utilização das novas tecnologias como meio de descentralização do processo produtivo e de redução de custos (DELGADO; ROCHA, 2020, p. 20).

É nesse contexto de ressignificação do modelo de produção e evolução da tecnologia – intitulado de Gig Economy - que se insere o fenômeno da uberização (ABÍLIO, 2017). No contexto da Gig Economy, no qual prevalece o fenômeno da uberização, o mercado de trabalho transfere-se para o mundo online – o E- market -, onde a força do trabalho é economicamente valorada e oferecida a preços de mercado. O celular, que antes era instrumento de entretenimento, "tornam-se instrumento de trabalho popular” (ABÍLIO, 2017).

Quanto ao modo de produção, o trabalhador torna-se um parceiro microempreendedor, que assume individualmente todos os riscos advindos de seu trabalho, sem nenhuma contrapartida por parte da empresa-aplicativo. Quanto ao controle exercido sobre a atividade produtiva, este é transferida para a totalidade de consumidores – a multidão vigilante -, que exerce vigilância ostensiva e permanente sobre o obreiro, inclusive em tempo real.

Assim como ocorreram mudanças significativas no modo de produção e na organização do trabalho, esse modelo neoliberal uberizado também inventou novos modos de precarização do ofício e de flexibilização de direitos trabalhistas. Na Gig Economy, o dinamismo do direito é utilizado no sentido de agravar as desigualdades sociais, em favor de uma elite detentora do poderio econômico (VIANA, 1999, p. 172).

A sociedade do cansaço, marcada pela afirmação exacerbada do “eu” e pela supervalorização do desempenho individual é, também, um viés, por essência, de compreensão do exercício do individualismo nas relações laborais modernas.

No século XXI, cenário materializado na constância de reinvenções nas comunicações em nível individual e na respectiva inserção em todas as esferas da sociedade contemporânea, fizeram-se espontâneas as consequências aos vínculos trabalhistas. Concebeu-se, de forma generalizada, uma nova percepção da atividade laboral, uma aceleração na execução do trabalho resultante do surgimento de novas atividades, agora livres, complexas e autônomas, demandantes de uma atenção rasa, rápida e superficial (HAN, 2015).

Nesse toar, surgiu a economia digital. Em detrimento dos meios de conhecimento e de execução do trabalho tradicionais, a hiperatenção e a hiperatividade deram espaço à meios de produção, distribuição e consumo de bens e serviços dotados de flexibilidade na realização de tarefas de naturezas distintas, bem como à hegemonia de ferramentas digitais e da computadorização nos ambientes de ofício, ao protagonismo do consumidor e ao alcance globalizado dos mercados, empresas e clientes (RAMOS, 2019).

Apesar dos efeitos positivos de uma dinâmica laboral extremamente vertiginosa e independente aos meios de adquirir, vender e trocar informações, serviços e, principalmente, os frutos da força do trabalho, a sociedade moderna tem, agora, as doenças neuronais como contrapesos deletérios à tamanhos avanços. Tais enfermidades são, principalmente, associadas ao individualismo exacerbado acarretado pelo hegemônico exercício da autoafirmação e por ambientes de trabalho eivados pela extrema competitividade, hierarquização e cobrança - doenças como depressão, ansiedade e síndrome de burnout surgem como efeitos, também, dos novos meios de interações laborais, assinalados por um exercício quase que solitário do trabalho e exacerbadamente demandante ao trabalhador. (HAN, 2015)

As constatações se materializam em dados. Em 2017, episódios depressivos geraram 43,3 mil auxílios-doença, sendo a 10ª doença com mais afastamentos. Já doenças classificadas como outros transtornos ansiosos também estão entre as que mais afastaram, na 15ª posição, com 28,9 mil casos. O transtorno depressivo recorrente apareceu na 21ª posição, com 20,7 mil auxílios. Sendo assim, as doenças neuronais se mostram uma problemática atual, crescente e preocupante à realidade das relações laborais modernas e revelam, sim, que o individualismo exacerbado no exercício laboral possui, muito além dos efeitos positivos à economia e à sociopolítica, força deletéria ao trabalhador, a qual pode estender seus efeitos ao trabalho como um todo (ANAMT, 2019).

Como se vê, ambas as categorias da uberização e da sociedade do cansaço têm um ponto em comum: ambas se inserem no paradigma modernizador hibridista europeu – transplantado para o contexto brasileiro em razão da ausência de modelos de justificação para o exercício do poder político dos colonizadores sobre o colonizado(COSTA, 2020).

No contexto brasileiro, como fruto do paradigma hibridista modernizador europeu, há, no campo das relações de trabalho, principalmente a partir do século XXI, o resgate de narrativas liberais, para justificação do domínio de uma classe detentora do poder econômico sobre os, agora, intitulados de trabalhadores-empresários – ou microempreendedores.

Assim como Hobbes justificava, no contexto da sociedade europeia do século XVII, a existência da escravidão em razão de uma ideia de autonomia individual, há, nos tempos atuais, a crescente utilização de narrativas liberais (por exemplo, a autonomia individual e a liberdade de contratação) como justificativas da exploração e precarização das relações de trabalho (COSTA, 2020).

No contexto de calamidade pública, ocasionada pela proliferação do vírus Sars- Cov- 2 (COVID-19), isso se tornou ainda mais evidente. Como reflexo do projeto modernizador europeu, há, nesse contexto de pandemia, principalmente no campo do direito do trabalho, o reavivamento de narrativas liberais para, por exemplo, privilegiar, no contexto da pandemia, os acordos individuais sobre as convenções coletivas de trabalho (vide Medida Provisória 927/2020).

Conforme argumentado, todos esses fatores só poderiam ter, na vida do proletariado, uma consequência lógica: o seu adoecimento progressivo. Porque, além da exploração e do adoecimento, o projeto modernizador brasileiro, como instrumento de biopoder (BERTULIO, 1989, p. 96), tem, como principal objetivo, escolher quem pode morrer (a população negra e trabalhadora propositalmente empobrecida) e quem pode viver (a burguesia tecnológica)

Referências:

  1. ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://passapalavra.info/2017/02/110685. Acesso em 20 de março de 2021.
  2. ANAMT. Transtornos mentais estão entre as maiores causas de afastamento do trabalho. [S.l] 2019. Disponível em: https://www.anamt.org.br/portal/2019/04/22/transtornos-mentais-estao-entre-as-maiores-causas-de-afastamento-do-trabalho/. Acesso em 20 mar. 2021.
  3. BERTULIO, Dora Lucia de Lima. “Direitos e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo”. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1989.
  4. COSTA, Alexandre.Direito e Modernidade. Arcos, 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/ . Aceso em: 20 de março de 2021.
  5. DELGADO, Gabriela Neves; ROCHA, Ana Luísa Gonçalves. Um retrato do mundo do trabalho na pandemia em cinco paradoxos. In: Direito. Unb. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito - Vol. 4, N.2 (mai/ago. 2020) - Brasília, DF: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito.
  6. HAN, Byung- Chu. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
  7. RAMOS, R. A era digital e a economia do século XXI. Brasil de Fato, Recife. 2019. Disponível em: https://www.brasildefatope.com.br/2018/09/19/artigo-or-a-era-digital-e-a-economia-do-seculo-xxi. Acesso em 20 mar. 2021.
  8. VIANA, Márcio Túlio. A proteção social do trabalhador no mundo globalizado. O direito do trabalho no limiar do século XXI. Revista LTr, São Paulo, n. 7, v. 63, jul./1999.