INTRODUÇÃO

Se no mundo antigo e na Idade Média havia consenso sobre quem era o responsável por dizer o que era certo e errado, a modernidade e a contemporaneidade irão trazer complexidades sobre este tema, obscurecendo a dicotomia certo/errado e exigindo que o Direito evolua a fim de corresponder as novas realidades que lhe são apresentadas.

No mundo antigo, como explica Coulanges [1], o Sacerdote Supremo é quem deveria zelar pela tradição, concomitantemente ele detinha o poder religioso e a responsabilidade por revelar qual era a vontade dos deuses. Com base nesses elementos, o Sacerdote Supremo proclamava o que poderíamos chamar de Direito.  A noção de dever, para esta sociedade era muito clara: estava atrelada à tradição e à vontade dos deuses reveladas pelo Sacerdote Supremo.

Na Idade Média, com as monarquias absolutistas, o monarca agia como se o reino fosse sua propriedade, logo, era com base em seu julgamento o conceito de certo/errado. Era ele, assim, quem julgava as controvérsias de acordo com aquilo que ele próprio determinasse como correto e sem necessitar motivar seus atos e sem incorrer em responsabilidade, no sentido hodierno que temos para tanto.

Foi a partir da sistematização do direito que a ideia de neutralidade e imparcialidade começa a se delinear. Os positivistas procuraram oferecer ao Direito elementos de cientificidade como os tidos nas ciências duras (a física e a biologia, por exemplo). Porém, ao longo da história, a compreensão do Direito pelo Direito tornou-se insuficiente, uma vez que restou evidente que a política, as práticas sociais, o contexto dos operadores do Direito, dentre outras variáveis, acabam por influenciar a interpretação das normas jurídicas, e, desta forma, influenciar o Direito.  Portanto, idealizar o Direito como suficiente em si mesmo para dar respostas a demandas que lhe são impostas não nos parece ser o mais correto para nossa realidade.

O DIREITO PARA ALÉM DO DIREITO

Embora há quem tente argumentar que a lei abstrata e universal seja a referência para decisões jurídicas e, isto posto, sendo suficiente seguir a lei para se fazer justiça, na prática essas afirmações não se sustentam, pois entre o Direito e a realidade há muito mais variáveis e complexidades do aquelas que o texto da norma consegue abranger e expressar.

Fazendo um recorte e tomando a Assembleia Constituinte como estudo, podemos fazer algumas reflexões. A partir do movimento constitucionalista o qual prevê a instituição de um documento solene do qual as demais legislações deverão extrair seu fundamento, já se impõe uma descentralização entre em quem se fundamenta o poder constitucional, quem de fato escreve a constituição, quem irá redigir as demais leis e sobre quem aplica essas leis.

Tendo-se o Brasil como referência, no preambulo da nossa Constituição (CF/88) [2], os constituintes declararam que são representantes do povo, ou seja, ainda que o titular do poder seja povo, o exercício deste poder será mediante representantes eleitos. Isso demonstra como a construção da legislação (e por consequência do próprio Direito) acaba por ocorrer em camadas que vão selecionando menos sujeitos a medida em que se constrói, pois, uma pequena parcela da sociedade será responsável por delinear o documento legal que irá nortear todos os demais diplomas jurídicos.

Ainda que estas pessoas sejam eleitas e atuem como representantes, considerando a multiculturalidade brasileira, torna-se tarefa hercúlea eleger parlamentares que contemplem a nossa diversidade.

Para se ilustrar apenas um exemplo, na Constituinte de 1987 dos 559 eleitos apenas 26 eram mulheres. No documentário Palavras de Mulher [3], as deputadas constituintes relatam as dificuldades em se trabalhar na Constituinte simplesmente pelo fato de ser mulher. Elas contam sobre como foram objetificadas, sobre como as pautas que defendiam eram minimizadas e até ridicularizadas pelos demais parlamentares e revelam outras situações que obstavam o trabalho feminino no Parlamento.

O Professor Menelick [4] explica, a partir de Niklas Luhmann, que Direito e política estão estruturalmente acoplados, afinal, é por meio da Constituição que o sistema político ganha legitimidade operacional e que o Direito pode ser imposto de forma coercitiva.  Porém, esse sistema pode revelar sua face brutal ao fazer com que as instituições legitimadas pela Constituição se voltem contra as liberdades previstas pela Constituição.

Essa contrariedade é evidente no exemplo supracitado sobre a composição de homens e mulheres da Constituinte brasileira. O povo brasileiro tinha, em 1987, o tido poder “inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado” [5] nos dizeres do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, porém, esse ente dotado do Poder Constituinte originário não estava representado de modo isonômico no que se refere ao gênero, uma vez que homens e mulheres correspondiam cada qual cerca de metade da população [6] e a Constituinte não obteve 5% de participação feminina em seus membros.

Essa parca representatividade feminina, corrobora e sustenta a dificuldade das mulheres constituintes em conseguir aprovar pautas voltadas para as mulheres e desenvolvida pelo olhar das feminino. Exemplo elucidador disso, apresentado no documentário Palavras de Mulher [3], foi o caso da licença paternidade, o qual quando apresentado por mulheres foi sinônimo de piadas, precisando que um homem (médico) explicasse a relevância deste direito no sentido de que o pai, durante a licença, auxiliasse a mãe durante a sua recuperação e enfatizasse a importância da presença paterna nos cuidados com os filhos ou filhas.

Escolhemos apresentar a problemática da Constituinte em relação às mulheres, contudo, esta reflexão é pertinente à outros integrantes da sociedade. Questionamos a representatividade dos povos indígenas, quilombolas, da população rural (dos pequenos produtores e não dos grandes latifundiários), a população ribeirinha, da comunidade hoje identificada como LGBTQIA+, será que aquela Constituinte construiu um documento com regras gerais e abstratas que contemplou a reflexão sobre todas essas realidades atinentes ao contexto brasileiro?

É preciso pensar o Direito para além de expressão de comportamentos idealizados e reconhecer que há elementos que dão sentido e valor jurídico que estão para além do Direito. Neste sentido o Professor Menelick [4] diz que:

“deve-se vincular ao reconhecimento de que as práticas sociais, ou melhor, as posturas e supostos assumidos pelos distintos atores em sua ação, a gramáticas dessas práticas sociais, é atribuidora de sentido, de significação”.

CONCLUSÃO

A interpretação do Direito é uma atividade muito mais complexa do que elencar rol de condutas e taxá-las como certas ou errada. A interpretação das normas jurídicas deve ser construída e reconstruída à luz das gramaticas subjacentes as práticas e posturas sociais instauradas [4].

Portanto, não se deve reduzir o Direito a um mero conjunto de normas desprovido de criticidade e relação com os contextos em que os textos jurídicos estão inseridos. Também não se deve ignorar os adjetivos dos sujeitos que participam do Direito, seja na elaboração das leis, seja na sua interpretação/julgamento. Não podemos estreitar e simplificar um processo de entendimento, de consenso, de cognição, de reflexão e de construção que o perpassa a esfera jurídica. Adotar tal postura empobrece o debate que necessita se fazer em torno do Direito, uma vez ser este relevante instrumento eleito para a mediação dos relacionamentos existentes na sociedade.

REFERÊNCIAS

[1] Coulanges, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. EDAMERIS, São Paulo, 1961. Versão Digital.

[2] Constituição da República Federativa do Brasil.

[3] Palavras de Mulher. Documentário. TV Senado. Disponível em: <Palavra de Mulher - Documentário Completo - YouTube>

[4] Carvalho Netto, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (coordenação).  Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

[5] Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 31. Ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[6] Disponível em: <https://www.populationpyramid.net/pt/brasil/1987/.>