Considerações iniciais
Nós somos linguagem ao passo que expressamos, mediante nossa língua, nosso entendimento acerca do mundo, de quem somos, do que fazemos, do que sentimos etc. Em outras palavras, sem o uso da linguagem, situar-se e expressar-se no mundo se tornam tarefas dificílimas. Portanto, se somos linguagem, o Direito, ao ser veiculado em texto, configura-se também em linguagem, sendo objeto de diversos sentidos, logo também passível de interpretação.
Nesse sentido, a definição que Kelsen dá para o Direito resume a situação: a norma jurídica em si não é somente o texto, mas o significado. Ora, o leitor ao ler um artigo de algum código do Direito brasileiro não extrai a palavra escrita em si, mas sim o sentido que todas as palavras, ao serem lidas e interpretadas como um todo em uma frase, carregam. Em razão disso, norma enquanto sentido/significado passa a ter uma relação íntima e de dependência com a interpretação textual, visto que é por meio desta que o sentido chega ao intérprete.
O que gera mais discussão sobre o tema, e acaba por tocar a natureza do Direito como concebemos atualmente, é o fato de que a interpretação que se faz de um texto normativo é diferente da interpretação textual de um texto não jurídico, isto é, à medida que interpretar depende do atendimento aos limites linguísticos da respectiva língua do intérprete, a interpretação ser jurídica implica o atendimento não somente ao que determina a linguagem, mas também ao que impõe o ordenamento jurídico em que o ato interpretativo está inserido.
Explicando melhor e trazendo as ideias de Kelsen e Bobbio, por compreendermos o Direito como um sistema de normas com as mais variadas importâncias e funções que visa ser coeso, completo, e aplicável, o ato interpretativo do Direito obedece a duas camadas. Se a norma “A” dispõe “a entrada de fumantes em locais públicos fechados é proibida”, quem a interpreta deve obedecer o significado linguístico da frase, isto é, não pode, por exemplo, afirmar que “fumante” significa “pessoa que não fuma”, assim como não extrair do dispositivo algo totalmente alheio ao ordenamento jurídico em que está inserido, ou seja, como Bobbio afirma, não se pode olhar a árvore (norma) sem observar a floresta (ordenamento jurídico).
Focando no ordenamento em si, é evidente que ele, apesar de almejar a completude e aplicação, não consegue determinar e regular todas as situações possíveis que merecem atenção. Isso, por sua vez, demanda do Juiz uma atividade, conforme Kelsen, quase idêntica à do legislador: criar Direito. Contudo, não se cria Direito deliberadamente, mas mediante um ato que reconhece estar inserido no ordenamento jurídico. Tomando como exemplo a norma “A” acima, pode ser que apareça diante do magistrado um caso que discuta se pessoas que usam cigarros eletrônicos seriam consideradas como fumantes. Aqui, o juiz pode tanto reduzir quanto expandir a área de aplicação de “A” para cigarros eletrônicos, mediante o ato interpretativo que segue os moldes tanto linguísticos como, principalmente, o jurídico.
Deste modo, Direito é significado ao passo que depende da linguagem para ser compreendido e aplicado, o que, por sua vez, demanda um ato interpretativo guiado por critérios linguísticos e pela rigidez do ordenamento jurídico em que está inserido.
O conceito de norma na doutrina a partir de interpretações kelsenianas
Na tentativa de conceituação plena da noção de norma, boa parte da doutrina recente do Direito se baseia nos postulados de Kelsen para, na medida das particularidades de cada autor, apresentar as noções mais satisfatórias para a compreensão das normas. Tendo em vista que o texto normativo é uma das principais formas de conexão do intérprete - ou até mesmo daquele que se submete a determinado ordenamento - é fundamental que a conceituação objetiva da norma seja feita de modo a trazer clareza na distinção do que é um “mero texto” e do que verdadeiramente está por detrás.
Alexy se deparou com o problema da dualidade texto/norma ao tentar distinguir dois conceitos: direito fundamental e norma de direito fundamental. Neste caso, o autor parte da premissa de que, para que alguém tenha um direito fundamental, seria necessário que houvesse uma norma de direito fundamental. No entanto, a recíproca para este fato não seria verdadeira se a existência de uma norma de direito fundamental não outorgasse concomitantemente um direito subjetivo. Com isso, somente seriam normas de direitos fundamentais aquelas que outorgam verdadeiramente os direitos fundamentais, levando assim, as normas e os direitos a serem meramente dois lados de uma mesma moeda.
Diante de tal cenário, Alexy se vê em uma posição em que é necessário dar um passo atrás e conceituar a própria norma. Para tanto, ele retorna à obra de Kelsen e busca atribuir à norma um caráter oriundo da Ciência do Direito. Para estabelecer seu raciocínio, o autor recorre a uma interpretação prática de um enunciado normativo: “Nenhum alemão será extraditado". Partindo-se desta norma positivada na Constituição alemã, Alexy demonstra que o referido enunciado nada mais é do que a expressão da norma que prevê que é proibida a extradição de um alemão. Ou seja, a norma abstrata precede qualquer enunciado normativo.
Ainda nesse sentido, o autor nos apresenta como seria possível reconhecer enunciados que expressam normas em quase qualquer idioma e contexto. Isso ocorre, pois neles há expressões como “proibido”, “autorizado”, “não pode”, etc. No entanto, também é plenamente possível que haja enunciados que positivem normas ao mesmo tempo que não utilizam quaisquer dos referidos termos. Exemplos disso ocorrem principalmente em normas que não necessariamente prevejam algo que é, mas sim um dever-ser (e.g. "Quem causar lesão corporal a alguém ou danos à sua saúde será punido com até três anos de prisão ou com multa em dinheiro"). Também é plenamente possível a concretização de normas sem que haja qualquer texto positivando-a, a saber, em semáforos de trânsito ou faixas de pedestres.
Por fim, Alexy ainda recorre a outra parte da doutrina para buscar o conceito de norma a partir de uma noção semântica. Para tanto, cita Alf Ross ao apontar que uma norma é "uma diretiva que corresponde a certos fatos sociais de forma tal que o modelo de conduta expresso na norma (1) é geralmente seguido pelos membros da sociedade, e (2) é encarado por eles como vinculante (válido)". Com isso, Alexy atribui à norma também a concepção de validade: somente pode ser considerada norma existente aquela que é válida. Por isso, ainda que a norma preceda o enunciado normativo, ela de nada vale se não se concretizar no contexto fático por meio de sua validade.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, por sua vez, busca trazer uma amplitude maior de autores à reflexão (naturalmente incluindo Kelsen como a base de todo seu raciocínio). Primeiramente, traz à luz de sua reflexão a obra de Rudolph von Jhering. Jhering em busca de conceituar as normas jurídicas se vale de uma comparação com as regras gramaticais, ponderando que o principal caráter da norma é o de orientação, distinguindo-se na medida que busca especificamente atingir o comportamento e ação humana. Conquanto, há de se ressaltar que as normas não só orientam (pois isso os valores morais também o fazem), como também imperam sobre a vontade. Nesse sentido, a norma se inclui numa relação de vontades, na qual ela é a representação de uma vontade mais forte que se impõe sobre as mais fracas.
Com isso, Jhering - quase um século antes da Teoria Pura do Direito de Kelsen - conclui que as normas são valores imperativos abstratos dirigidos ao agir humano que não existem na natureza. Vale ressaltar como parêntese que Kelsen na Teoria Pura do Direito também busca atribuir ao Direito uma compreensão comparativa aos fenômenos naturais. Segundo Kelsen, os fenômenos naturais são regidos pelo princípio da causalidade (se “A” é, “B” também será), enquanto as normas jurídicas são marcadas pelo princípio da imputação (se “A” é, “B” deve ser), marcando assim o caráter imperativo não naturalístico da ciência jurídica.
Nessa linha, segue-se que as normas devem ser vistas, primariamente, como uma proposição, independentemente de quem a estabeleça ou a quem é dirigida, justamente por se tratar de um dever ser. Estando inserida em um sistema jurídico (ou em uma floresta, como diria Bobbio), esta árvore tem vida própria. Ainda que ela seja produto de uma vontade, sua existência - bem como sua validade - independe de qualquer vontade. Por se tratar de um dever ser, é possível observar a norma como um imperativo condicional, formulável conforme proposição hipotética que disciplina um comportamento simplesmente por prever uma sanção decorrente de sua incorrência (novamente o princípio da imputação de Kelsen mencionado anteriormente).
Ainda, há de se dizer em semelhante raciocínio que normas seriam prescrições relativas a atos de vontade impositiva que estabelecem uma disciplina para determinada conduta. Por isso, ressalta-se que a norma não se resumiria ao enunciado que a prescreve, mas sim à vontade que a prescreve. Insere-se ainda a este raciocínio a condição de validade da norma, isto é, a vontade deve ser dotada de condições de validade (habilidade, legitimidade, autoridade, coação), ou então não produzirão quaisquer normas. Ainda assim, nota-se que a base da normatividade reside no dever-ser, precedendo qualquer enunciado.
Outra possibilidade, ainda, de se conceber uma norma, reside na possibilidade de concebê-la como um fenômeno que envolve, além da vontade, as situações interpessoais que regem o cotidiano humano. No referido caso, uma norma seria a comunicação que enseja uma relação de subordinação ou coordenação entre os sujeitos envolvidos. No entanto, essa concepção traz problemas na medida em que torna-se difícil a observância às fontes do direito, à compreensão e delimitação dos direitos subjetivos e às limitações das relações obrigacionais decorrentes de relações de coordenação. Ainda assim, nota-se que a norma não perde seu caráter abstrato e independente de qualquer texto normativo.
Considerações finais
Ante o exposto, nota-se que o positivismo kelseniano foi fundamental para a compreensão do que é uma norma nos dias atuais. Muitas vezes erroneamente interpretado, Kelsen não afirma que as normas decorrem dos textos jurídico-normativos, mas sim o contrário! Observando que as normas remetem a um dever-ser abstrato, é possível depreender o caráter precedente de uma norma a qualquer texto ou enunciado normativo. Uma vez que ela decorre de uma vontade maior, a norma pode ser comparada a um valor moral que deve ser seguido por todos, com a distinção de seu caráter imperativo. O texto normativo surge apenas com o objetivo de positivar e garantir o cumprimento de uma norma que já o precede, muitas vezes nem sendo necessário seu caráter escrito (como o exemplo do semáforo).
Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
Ferraz Junior, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 10ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2017.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6° ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.