Está arraigado no senso comum que o Direito consiste em um sistema de normas, as quais são necessárias para que se mantenha a coesão e harmonia social. Diante dessa percepção, é normal que as pessoas pensem imediatamente em códigos, leis e artigos quando se fala em Direito. Mas é apenas isso?

Talvez o mais certo seria dizer o que não é direito, já que existem normas que não estão previstas em códigos e que não são jurídicas, mas regulam e orientam a vida em sociedade, como costumes, regras morais, religiosas etc. Assim, existem convenções que definem se uma atitude é correta, moral, virtuosa — consistindo em convenções sociais — despidas de caráter jurídico. O desvio de uma norma convencionada socialmente pode ser objeto de crítica, de repúdio e vergonha.

De outro lado, no direito, ao infringir-se uma norma, há a previsão de uma sanção — vincula-se ao fato, uma circunstância jurídica. Além disso, vê-se que as normas sociais são consideradas válidas enquanto úteis para a sociedade, podem ficar em desuso e serem deixadas de lado; já as normas jurídicas podem, em determinado momento, não serem dotadas de importância, mas continuarem a valer, uma vez que o sistema jurídico ainda as preveja, e não tratou de retirar-lhes a vigência — a norma jurídica é analisada, desse modo, em termos de vigência ou não; de validade.

Assim, para compreender o direito devemos, antes, compreender o conteúdo obrigatório de suas normas, segundo Hart, “onde há direito, aí a conduta humana torna-se em certo sentido não facultativa, obrigatória”. (HART, H.L.A apud KOZICKI e PUGLIESE, 2017, p. 7). E, além desse caráter obrigatório, há uma forte pressão social para que a norma seja respeitada, o que reforça o poder regulatório do direito e sua função de garantir coesão à sociedade.

Segundo o professor Alexandre Araújo Costa, pode-se dizer que “o direito é um conjunto de normas impostas pelo poder político” (2001, p. 45), podemos concluir, então, que o direito é formado por normas que impõem obrigações e estas, uma vez descumpridas, resultam em uma sanção, já anteriormente prevista e genérica, cabendo ao aplicador do direito subsumir a norma geral ao caso concreto.

Ademais, devemos ter em mente que esse conjunto de normas varia de acordo com o espaço e o tempo, fato que podemos constatar ao analisarmos o passado, como o reconhecimento do direito das mulheres ao voto, da proibição da escravidão, hoje assegurados, mas que, anteriormente, não havia qualquer previsão e resguardo. Desse modo, não há como pensar uma norma jurídica geral e válida universalmente, dado que o direito é uma construção social e histórica, e sua manutenção  se deve ao fato de que determinada sociedade o compartilha, sustenta a cultura e a repete.

A legitimação desse sistema compartilhado, na visão de Hart, se dá pela “referência à legalidade do procedimento de normatização — a procedência da norma” (HART, H.L.A apud KOZICKI e PUGLIESE, 2017, p. 7).

Para Hart, o direito é um fato institucional (KOZICKI e PUGLIESE, 2017, p. 8), e fatos institucionais são dependentes da linguagem — e esta é própria da sociedade, dos seres humanos. Essa linguagem possibilita as relações indivíduo-indivíduo, e ela varia conforme o contexto em que se realiza o processo de comunicação (KOZICKI; PUGLIESE, 2017, p. 12), nesse sentido o ponto de vista do intérprete da norma é determinante — como no caso das decisões judiciais, emanadas dos juízes.

Tendo isso em mente, podemos analisar o Realismo Jurídico. Trata-se de uma corrente com duas vertentes principais: o realismo jurídico norte-americano — no qual a realidade consiste naquilo que os juízes decidem — e o realismo jurídico escandinavo — no qual a realidade consiste naquilo que existe de fato como realidade psicossocial. Para o método empirista dos adeptos a essa corrente, o que importava não era a tomada de conhecimento acerca do Direito-norma, mas sim o mais do Direito-vigente (BITTAR; ALMEIDA, 2021, p. 469).

Alf Ross, autor do realismo jurídico escandinavo, não eliminou a relevância das normas jurídicas na realidade, mas deixou clara a relevância do encontro dessas normas com sua vigência na realidade social. Dessa maneira, o que é feito a partir dessas normas na realidade tem mais importância do que os conceitos jurídicos que elaboram por sua existência lógica ou forma (BITTAR; ALMEIDA, 2021, p. 470).

Assim, devemos analisar o direito além das normas, além do que ele é no papel. Temos que enxergar o direito em sua aplicação, pois é nesse momento que ele deixa de ser abstrato para se tornar concreto. A decisão de um juiz é o momento em que essas normas passam a agir de fato no mundo real e, por isso, esse momento não poderia ser ignorado. Engana-se quem pensa que os juízes se valem puramente de normas ao proferirem uma sentença, o fato é que “as decisões judiciais (como quaisquer outras decisões) decorrem de julgamentos fortemente influenciados pelas condições subjetivas do juiz” (COSTA; HORTA, 2017, p. 272).

Como quaisquer pessoas, juízes se preocupariam precipuamente com as opiniões dos seus pares e das pessoas que lhe são caras. Assim, a visão de familiares, amigos, colegas magistrados, do meio acadêmico em que se inserem, das corporações que integram, dos grupos de interesse que apoiam, etc., teriam um peso substancialmente maior do que a das demais pessoas (COSTA; HORTA, 2017, p. 284).

Ademais, através do realismo jurídico norte-americano, pôde-se perceber que os juízes, além de deixarem suas preferências político-ideológicas influenciarem nos julgamentos, também levam em consideração as chances de suas decisões serem revertidas em instâncias superiores. Dessa mesma forma, os magistrados, em órgãos colegiados, também dão atenção aos votos de seus colegas. E mais ainda:

“as decisões judiciais são influenciadas pelos incentivos que os magistrados têm, devido a seu cargo, como satisfação no trabalho, tempo livre para o lazer, reputação e prestígio, e o prospecto de serem promovidos e a receberem melhores remunerações em tribunais superiores” (COSTA; HORTA, 2017, p. 280).

Dito isso, vê-se que o direito, mesmo que seja classificado como um sistema de normas, se mistura a tantos outros elementos em sua aplicação pelas mãos dos juízes que fica difícil ignorar tais aspectos. E não se pode mesmo ignorá-los, pois esses aspectos deixam marcas no mundo real ao influenciarem nas decisões.

Acerca deste assunto, também há de se ressaltar sobre a cientificidade do direito, pois se o direito for entendido como um conjunto de normas, pode-se descartar sua validade científica. Kirchmann retrata que o direito pode, sim, ser entendido como uma ciência, mas também demonstra as suas particularidades. Dentre essas particularidades, cita-se duas delas importantes para a definição do direito como ciência e o direito como conjunto de normas: a mutabilidade do direito natural e a discricionariedade do jurista. (KIRCHMANN, 1949)

A mutabilidade do direito natural se revela na adaptação constante das normas em reflexo às mudanças da sociedade que ela regula. Ao contrário do que se percebe na ciência, onde E=M.C² em qualquer período analisado, o direito é flexível entre épocas e, inclusive, entre sociedade. Essa flexibilidade está interligada com a segunda particularidade demonstrada por Kirchmann, pois a inconstância do direito revela a necessidade da discricionariedade do jurista ao analisar as normas, de modo que ele não volte a ser o juiz boca da lei, que apenas aplica o conteúdo da lei de modo objetivo.

Ao reduzir o direito a um conjunto de normas, descarta-se a presença e importância dos estudos jurídicos e do jurista em si, visto que é ele que humaniza as normas e evita que o direito se torne um instrumento de opressão, assim como foi utilizado na vigência do paradigma liberal. A teoria tridimensional de Miguel Reale, demonstra bem a presença humana no direito ao trazer o elemento valorativo, em contraposição com a teoria pura de Kelsen, que entende que a tarefa do jurista é a descrição do objeto sem nenhum juízo de valor.

Deste modo percebe-se que a presença humana no universo jurídico é muito importante para que não se caia na concepção de que o direito é um discurso normativo inflexível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 15. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2021.

COSTA, Alexandre A. Introdução ao Direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas. Porto Alegre: Fabris, 2001. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/introducao-ao-direito/>. Acesso em: 28 abr. 2021.

COSTA, Alexandre Araújo; HORTA, Ricardo de Lins e. Das Teorias da Interpretação à Teoria da Decisão: Por uma Perspectiva Realista Acerca das Influências e Constrangimentos Sobre a Atividade Judicial. In: Revista Opinião Jurídica. Ano 15, n. 20 (jan./jun. 2017). Fortaleza: Unichristus, 2017. p. 271-297. Disponível em: <https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/1387>. Acesso em: 1.º maio 2021.

KIRCHMANN, Julius Hermann von. El carácter a-científico de la llamada ciencia del derecho. Trad. de Werner Goldschmidt. In: Savigny, Friedrich Karl von et al. La ciencia del derecho. Buenos Aires: Losada, 1949.

KOZICKI, Katya, PUGLIESE, William. O conceito de direito em Hart. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/137/edicao-1/o-conceito-de-direito-em-hart. Acesso em: 29 abr. 2021.