"-São esses os códigos de lei estudados aqui  - disse K. -,  é por homens assim que devo ser julgado". Essas são as indiferentes e resignadas palavras que o personagem principal do romance O processo, Josef K., sentencia após folhear o único livro sobre a mesa do juiz que presidira a sua audiência. O compêndio em questão não se tratava de autos processuais, ou de um código específico, como incialmente pensou K., mas sim um livro de contos eróticos. A conformação do personagem de Franz Kafka (1883-1924) reflete sua íntima convicção sobre o aparelho burocrático jurisdicional: incompetente e mecânico.

A apatia de K. poderia ser contrastada com a angustiante aflição que qualquer outro litigante, usuário da máquina judiciária, sentiria ao descobrir que sua demanda será perquirida de forma automática por um magistrado alheio às necessárias reflexões jurídicas de seu ofício. Em verdade, a confiança em uma atenta análise casuística é a principal motivação do acionamento do Estado juiz.

Não obstante, na maior parte das vezes em nome de uma pretensa "segurança jurídica", esse exame detido é abandonado, prevalecendo-se uma única fonte jurídica em detrimento de outra.  A situação se agrava ainda mais quando esse hábito é difundido nas Academias, que possuem o dever de formar os futuros operadores do direito.

O surgimento da Escola da Exegese no século XIX é ilustrativo desse premente cenário. A sua firme apologia à letra dos códigos e à vinculação dos magistrados à lei caracterizaram a formação de uma doutrina dogmática sem precedentes. A paulatina rediscussão do papel da jurisprudência, e do próprio do juiz, no entanto, trouxeram equilíbrio a ao ensino anterior. Essa mesma jurisprudência, no entanto, ganharia espaço para, no futuro, para se estabelecer como uma nova dogmática, igualmente limitadora do ofício do julgador. As correntes que o imobilizariam não seriam mais a loi, mas sim, os precedentes.    

I - Escola da Exegese: antecedentes e advento.

A École de l’Exégèse é, simultaneamente, o auge do jusnaturalismo moderno do século XVII, assim como o prelúdio de sua própria derrocata (COSTA, 2020). De fato, o Código Civil de Napoleão de 1804 (assim como outras compilações normativas do período, como o Código de Processo Civil de 1806), conseguiu sedimentar as ideias de sistematização e uniformidade estruturados inicialmente pelos autores setecentistas e levadas a cabo na era Iluminista. O processo, no entanto, desembocaria em um movimento de contenção conservadora, muito diverso dos ideais revolucionários radicais, iniciados em 1789 (COSTA, 2020). Por fim, a dogmática acabaria por transformar completamente a hermenêutica da lei, impelindo os magistrados a examinarem os códigos sem se "aventurar[em] fora deles com considerações de teoria geral ou de iure condendo" (SCHIOPPA, p. 350, 2014).  

Uma década antes da dita legislação, a Assembleia Nacional Constituinte já aprovava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em uma clara afirmação dos direitos naturais. A influência do pensamento de Locke (art. 3 sobre a imprescritibilidade da liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão) e Rousseau (art. 6 com a definição da lei como expressão da vontade geral), também eram patentes (SCHIOPPA, 2014). Observe que a esmiuçada transcrição dos direitos em lei, isto é, a codificação,  assume um papel elementar nesse cenário, devido à sistematicidade que o código conferia à nova estrutura judicial, dando-lhe "dignidade científica e previsibilidade" (LOPES, 2013).  

Em um contexto de ascensão do Estado nacional, fazia-se imprescindível a unificação do modelo jurídico, chamado por Hespanha de projeto de redução do pluralismo (apud COSTA, 2020). Impende lembrar que no período comentado as fontes do direito encontravam-se profundamente descentralizadas: dividiam-se entre o direito local, o ainda incipiente direito régio, o direito romano (reavivado no século XI), o direito canônico em determinadas matérias e ainda o ius commune. Crítico contundente desse padrão, Voltaire (François-Marie Arouet), censurava a pluralidade de costumes e a arbitrariedade excessiva das regras em vigor (SHIOPPA, 2014). Fortemente influenciado pelos jusnaturalistas, em especial Punfendorf, o filósofo francês comentava que para a criação de boas leis seria necessário "queimarem-se as antigas e elaborarem novas" (SHIOPPA, 2014).

As tentativas nesse sentido, aliás, não foram poucas. Além da Lei da Boa Razão (1769) em Portugal, visando ao fortalecimento da lei frente os costumes e o direito romano, a Prússia de Frederico II (que havia designado Voltaire como seu conselheiro) também ensaiou um amplo programa de inovação no plano do jurídico, buscando aliar o direito local e a razão natural, a ser interpretado "segundo a letra" do código (SCHIOPPA, 2014). O projeto de Direito Comum Territorial prussiano (ALR), no entanto, refletia os resquícios da organização social do Antigo Regime: o código previa, por exemplo, a divisão do direito por classes.

Na França revolucionária o processo de codificação civil seria longo e tortuoso. O jurista Cambacérès apresentaria, em 1793, proposta de 719 artigos, que seria apontado pela Convenção como muito "jurídico" e pouco "filosófico". Em setembro do ano seguinte, o pensador elaboraria novo códex, com apenas 297 dispositivos (SHIOPPA, 2014). O esboço, amplamente orientado pelo jusnaturalismo, prezava pela generalidade e laconismo das hipóteses  ("não existe convenção sem consenso", "quem causa dano é obrigado a ressarci-lo"), traduzindo-se em verdadeiro "código de princípios". Não obstante, a guinada dos ventos políticos do momento levaram a nova oposição do regramento.  Seria apenas sob o Consulado, e posteriormente no Império, que se lograria aprovar o Código Civil. Portalis, um dos redatores do projeto, arguia que a vitória revolucionária era propícia à criação da nova legislação, impensável nos anos anteriores:

De repente uma revolução se opera. Atacam-se todos os abusos; interrogam-se todas as instituições. À simples voz de um orador, os institutos aparentemente mais inabaláveis desmoronam; eles não possuíam mais raízes nos hábitos, nem na opinião. (...) poderia um bom Código Civil nascer em meio às crises políticas que agitavam a França? Toda revolução é uma conquista. Fazem-se leis na passagem do antigo para o novo governo? Por força das circunstâncias, essas leis são necessariamente hostis, parciais, destruidoras. Somos levados pela necessidade de romper todos os hábitos, de enfraquecer todos os laços, de afastar todos os descontentes. Não nos ocupamos mais das relações privadas dos homens entre si: só enxergamos os assuntos políticos e gerais; procuramos confederados mais do que concidadãos. Tudo se transforma em direito público. (...) Não é em um tal momento que poderíamos nos propor a regular as coisas e os homens, com esta sabedoria que preside aos estabelecimentos duráveis, e segundo os princípios desta equidade natural da qual os legisladores devem se limitar a ser os respeitosos intérpretes. Hoje a França respira, e a Constituição, que lhe garante o descanso, permite-lhe pensar em sua prosperidade" (apud LOPES, p. 193, 2013).

O discurso de Portalis constata uma evidente alteração do paradigma do início da Revolução, que agora prega a manutenção da segurança (COSTA, 2020). O novo Code alcançaria seu fito original de excluir outras fontes subsidiárias, tornando-se, de fato, a única fonte jurídica francesa. Estabeleceria uma unificação do direito escrito e consuetudinário em 2.281 artigos, por meio de uma linguagem clara e sucinta (SHIOPPA, 2014), reflexo da ideologia iluminista. Por fim, o Código conseguiria concluir o projeto iniciado ainda em1789, de esvaziar a autonomia judicial, reduzindo-a a letra da norma. Cumpria-se assim os ensinamentos de Montesquieu, para quem os magistrados deveriam atuar como mera "bouche de la loi".

Essa anulação do poder judiciário era desenlace lógico da hostilidade popular aos juízes, visualizados como herdeiros do Antigo Regime (SHIOPPA, 2014). O fim da "arbitrariedade" pretorial se consolida nas disposições sobre a proibição da recusa do juiz a julgar "sob pretexto de silêncio, obscuridade ou falha da lei" (art. 4º ) e no efeito vinculante do contrato, que teria "força de lei"  (art. 1.134). Em poderosa demonstração do espírito holístico e científico dos tempos, o Conselho de Estado vetaria o art. 11 do Código, que definia a autorização do juiz ao "retorno à lei natural ou aos usos aceitos" em caso de lacuna normativa. Era o prevalecimento do positivismo sobre o jusnaturalismo.  

A formação da Escola da Exegese se insere no âmago do movimento de limitação da dita discricionariedade jurídica. Além de ser propagado no ensino universitário, ela influenciaria também outros Estados, os quais investiriam na proposta de fim do pluralismo jurídico. O perpassar dos anos, todavia, viriam a flexibilizar o radicalismo exegeta. Delvincourt não ignora em sua obra os "pontos controversos" enfrentados pela jurisprudência; Toullier usa-se de argumentos que transcendem o texto normativo; Alexandre Duranton não negligenciaria o papel da jurisprudência e dos costumes que, na sua opinião, auxiliariam na atenuação dos rigores da lei (SHIOPPA, 2014).

II - A Nova Escola da Exegese: precedentes, súmulas vinculantes e o ensino jurídico.

A questão das Súmulas Vinculantes e precedentes

As Súmulas Vinculantes foram criadas a partir da Emenda Constitucional 45, que acréscimo o art. 103-A à Carta Magna, na seção concernente ao Supremo Tribunal Federal. Segundo o dispositivo ela "terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei".  

As Súmulas não eram novidades no sistema jurídico brasileiro: desde 2006 o Código de Processo Civil já previa esse instituto, que deveria, por sugestão do Min. Victor Nunes Leal, "facilitar o trabalho de juízes e advogados que, ao invés de consultar o todas as decisões anteriores sobre o tema, poderiam pesquisar apenas os pequenos textos sumarizados" (BAHIA, 2012). Outra justificativa arguida para a o efeito vinculante das decisões da Corte Constitucional seria impedir a ocorrência de decisões conflitantes para relevante multiplicação de processos entre os diversos órgãos judiciais e administrativos do Estado (CARVALHO, 2012).

Ocorre, porém, que o jurisdicionado perde a expectativa de ter sua lide apreciada pelo Estado. Em outras palavras, a súmula vinculante retira do cidadão a oportunidade de defesa direta de direitos fundamentais. Surge a questão sobre o que consiste sua força, que não é o poder persuasivo das razões de fato e de direito delineadas na decisão, mas sim, o caráter obrigatório e inevitavelmente vinculante que impõe aos juízes o dever de segui-lo.

Essa lógica jurídica aproxima-se do pensamento exegético e não soluciona uma questão fundamental da hermenêutica jurídica: os axiomas continuam necessitando de uma interpretação. Pode-se afirmar com segurança que não existe relação causal obrigatória entre uma linha de precedentes e os termos da decisão concreta do juiz. Quando se evoca uma decisão anterior como precedente, ela própria tem de ser interpretada (LIXA, 2003).

Mesmo nos países que adotam o stare decisis (principal inspiração para a criação das súmulas), a relação é mais dinâmica, por meio da possibilidade de o ligante desassociar-se dos efeitos vinculativos decisões anteriores. Na common law americana, as partes podem alegar a superação dos precedentes, através da demonstração das hipóteses fáticas e jurídicas que lhes deram origem (overruling). O disputante pode ainda solicitar a flexibilização dos precedentes, ao comprovar que seu caso possui particularidades que o diferenciam (distinguishing) (BAHIA, p. 366, 2012).

A questão do ensino jurídico

Por outro lado, percebe-se uma crise de conhecimento dentro das faculdades de direito, traduzida na perda de confiança epistemológica acerca dos paradigmas de sua formação, excessivamente legalista e formal, abandonando a sua missão reflexiva e crítica do mesmo direito. Quando se fala em pseudo-tecnicismo jurídico, é a redução do ensino jurídico a uma dialética profissionalizante, alheia, pela mediação decerto da ciência e da cultura, à vocação ético comunitária.

É o que atribuiu o jurista Roberto Lyra Filho, ao falar de “um direito que se ensina errado”, nos seus ensinamentos “como ensino do Direito em forma errada e como errada concepção do Direito que se ensina”. Logo, a lógica conclusiva é óbvia: “se o primeiro aspecto se refere a um vício de metodologia; o segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar, ambos permanecem vinculados, uma vez que não se pode ensinar bem o Direito errado; e o Direito, que se entende mal, determina, com esta distorção, os defeitos da pedagogia” (FILHO, 1980).

Nesse sentido, o texto intitulado “Ensino Jurídico e Formação Profissional” do professor José Geraldo de Souza Junior, cita os pilares norteadores a serem perseguidos nos cursos de direito que o:

1. a formação humanística, técnico-jurídica e prática indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais;
2. senso ético-profissional, associado à responsabilidade social, com a compreensão da causalidade e finalidade das normas jurídicas e da busca constante da libertação do homem e do aprimoramento da sociedade;
3. apreensão, transmissão crítica e da produção criativa do direito, aliada ao raciocínio lógico e a consciência da necessidade de permanente atualização, não só técnica, mas como processo de educação ao longo da vida.
4. visão atualizada de mundo e, em particular, consciência solidária dos problemas de seu tempo e se seu espaço.

Por essas considerações é que atribui-se importância significativa para a filosofia, enquanto atividade orientadora da prática jurídica, quer no plano legislativo quer no plano aplicativo, mas que encontra forte resistência pelo pensamento jurídico dominante, que prefere ainda adotar um modelo idealista de hermenêutica.

III - Conclusão

Quando algo nos parece muito natural, usual e evidente, tendemos a aceitar esse fato sem refletir, problematizar ou inseri-lo no rol dos casos a serem desvendados. Com isso, ele se torna “invisível”. O costume de julgar por precedentes e ensinar o Direito por meio da jurisprudência materializada nos acórdãos das cortes superiores, não contribui para a superação desse óbice.

Nesses termos, é preciso repensar aas condições que são indefectíveis para a autonomia do direito. Refere-se aqui à questão do judiciário que perpassa pelo esgotamento de seu modelo de organização. Os tribunais escancaram a desconfiança da falta de legitimidade para atuar como mediador eficaz para a solução de tensões decorrentes de uma explosividade de conflitos sem precedentes, gerando uma perda de legitimidade em relação à função social desses operadores, despreparados para sequer compreendê-los.

Essa é a conclusão de K., quando se coloca defronte do juiz, salientando o absurdo do magistrado não conhecer o processo sob a sua análise. Ao ser questionado languidamente pelo magistrado se era pintor de paredes, Josef K nega o ofício (informa que na verdade era bancário) e descreve a negligência com que o seu processo era tratado:

"Sua pergunta, senhor juiz de instrução (...) é característica do tipo de processo que movem contra mim. O senhor pode objetar que não se trata de maneira alguma de um processo, e tem toda a razão, pois só é um  processo se eu o reconhecer como tal. Mas neste momento eu o considero, de certa forma por piedade. Não se pode ter outra coisa senão piedade, se se deseja levá-lo em consideração. Não digo que seja um processo desleixado, mas gostaria de lhe oferecer essa definição, para que reflita sobre ela".

Bibliografia

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. As Súmulas Vinculantes e a Nova Exegese. Revista de Processo, ano 37, nº 206, abril, 2012.

CARVALHO, Alexandre Douglas Zaidan. Efeito Vinculante: e concentração da jurisdição constitucional no brasil. Brasília: Consulex, 2012.

COSTA, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito. Arcos, 2020.

FILHO, Roberto Lyra. O Direito que Ensina Errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980.

JUNIOR, José Geraldo de Souza. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008.

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LOPES, José Reinaldo de Lima. Curso de história do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

LIXA, Ivone Fernandes Morcilo. Hermenêutica & Direito, uma possibilidade crítica. Curitiba: Juruá, 2003.

SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fonte, 2014.