Nas últimas décadas o poder judiciário vem ganhando significativa importância no cenário político-econômico brasileiro. Como já destacado no post anterior, esse poder ocupa hoje papel singular no funcionamento do Estado, ao ponto de alguns autores defenderem que ele é o soberano no Brasil. Resta evidente portanto, a necessidade de compreender como a lógica jurídica opera, em especial à luz de uma importante fonte do Direito atualmente, os precedentes, e como a lógica totalizante dos mesmos acaba por comprometer o bom funcionamento do sistema por não estimularem o questionamento e a reflexão, procurando reduzir o direito a glosas jurisprudenciais em manuais comentados.

Como dizia um professor da UnB, os "manuais esquematizados e ilustrados para crianças" esvaziam a zetética do Direito. Trazem soluções fechadas, esvaziam o conteúdo político e interpretativo do conhecimento e o mais perigoso naturalizam o poder e controle.

HESPANHA já observava essa tendência de supressão da narrativa histórica nos manuais, que antes dedicavam páginas para questões filosóficas e agora se vendem enquanto conhecimento fácil, adotando uma abordagem tecnicista, tornando-se verdadeiros códigos comentados.

Para ilustrar, torna-se difícil se pensar o Direito do Trabalho sem termos algum contato com a luta de classes ou alguma noção da história do sindicalismo. Também, indagamos se seria possível compreender o Direito Penal sem noções da criminologia e do legado do racismo em nosso país. Como consequência teremos operadores (ou operários?) do Direito adotando um pseudo-tecnicismo exegético e pode-se cogitar que a formação exclusiva para concursos públicos esvazia o debate e a reflexão. Menciona-se o recente caso de um "professor" de um curso preparatório para carreiras policiais que incitou a tortura em plena "aula", assumindo assassinatos e afirmando "Quem mais matou e torturou aqui foi eu" (Para outras falas absurdas ver: "Escola de concursos ensina técnicas de tortura e exalta homicídio" disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/escola-de-concursos-ensina-tecnicas-de-tortura-e-exalta-homicidio/ ).

Sem pensamento crítico os profissionais do Direito incorrerão em abusos de autoridade, comentários e ações preconceituosas, ou até mesmo teremos procuradores citando a obra "Manifesto Comunista" de Marx e Hegel (sic). Nesse sentido é a entrevista da filósofa Marilena Chauí em que afirma:

"Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge, sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas ideias, nossos valores parecem contradizer-se uns aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma."

Nesse enfoque, evidencia-se o papel intrínseco da reflexão filosófica acerca de sistemas normativos que carecem desse tipo de raciocínio. Com o declínio da Escola da Exegese e a sua ineficiência ao interpretar as leis surge a necessidade da interpretação ser resultado de um intercâmbio de informações, e não apenas ser enfático como um sistema fechado, engessado e estático. No entanto, ao utilizar a lei como a sua única fonte do direito, mais precisamente o Código Civil francês, os ideais da escola se mostraram incapazes de acompanhar as mudanças oferecidas pela sociedade.

Atualmente, as leis e os códigos são, reconhecidamente, fontes que necessitam de suplementação conforme a análise de cada caso concreto. Os princípios, a jurisprudência, os precedentes e as decisões judiciais têm um papel fundamental na orientação da busca por justiça e equidade ao se aplicar o infinito sistema normativo. Assim sendo, a existência de lacunas faz parte do cotidiano do aplicador da norma.

Com base na dogmática do direito, os juristas buscam o alcance da atividade jurídica conforme uma ciência construtiva e dedutiva. Sobre o tema, Norberto Bobbio destaca:

“Hoje, o movimento de pensamento que diz respeito ao realismo jurídico tende a conceber como tarefa da jurisprudência extrair do estudo de uma realidade (o direito, considerado como um dado de fato sociológico) preposições empiricamente verificáveis, que permitam formular previsões sobre futuros comportamentos humanos (particularmente, prever decisões que os juízes tomarão para os casos que deverão julgar)”. (BOBBIO, 1995)

Dessa maneira, o papel dado aos precedentes e a sua aplicação dentro do âmbito do sistema do direito muito vem se destacando no cenário das decisões judiciais. Eles permitem que o núcleo essencial de uma decisão possa servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. E é sobre esse fenômeno que devem ser observados os reais efeitos de uma análise mais abrangente, de cunho filosófico, que possibilitaria uma melhor aplicação e complementação das normas jurídicas.

O incentivo ao uso indiscriminado de precedentes, nos dias atuais, vem sempre imbuído da justificativa de uniformização dos julgados em prol da segurança jurídica, e da previsibilidade, vislumbrando, também, a consagração do princípio da razoável duração do processo (CPC art. 926). A definição de precedente judicial vincula-se a compreensão da existência de um caso anterior, o qual poderá ser tomado como exemplo ou regra para casos subsequentes.

Entretanto, o processo de sistematização de precedentes exige que as decisões judiciais passem necessariamente a observar todas as que já foram anteriormente prolatadas, a fim de garantir uma coerência e estabilidade ao sistema jurídico. Tal fato, de certa forma, culmina em uma quase obrigação segundo dada decisão judicial tenha seu conteúdo considerado de aplicação universal para que seja extensível a casos similares posteriormente.

Importa dizer que há diferenças entre uma decisão que se baseia em precedentes e aquela que se fundamenta em regras legisladas. Isso porque, segundo o ilustre professor de direito e doutrinador Frederik Schauer o legislador ao elaborar uma regra pensa em diversas situações hipotéticas de forma generalizada, com o intuito de que o comando estabelecido possa abranger uma pluralidade de fatos e circunstâncias, cabendo ao juiz aproximar os fatos da regra normatizada para verificar a aplicabilidade desta. Já na aplicação da técnica de precedentes, o juízo deve escolher quais elementos do caso anterior se assemelham, podendo ser generalizado de modo a orientar a resolução do caso em questão.

Talvez, a atual prevalência do uso de precedentes advém da dificuldade do exercício da atividade interpretativa normativa, quer seja suas razões, acabando por resultar no reducionismo da atividade jurídica a uma limitada descrição de fontes relevantes. Afinal, o uso de precedentes, como muitos querem fazer parecer, não é uma garantia automática de segurança jurídica, posto seu conteúdo não conter, abstratamente, uma regra jurídica prévia, capaz de solucionar automaticamente diversos casos jurídicos futuros.

Na contemporaneidade, a aversão à figura do “juiz boca da lei” delineada por Montesquieu[1] encontra novo paradigma: o intérprete míope que enxerga apenas o produto final do direito.

A exegese contemporânea, centrada no comentário de decisões e quase avessa às reflexões filosóficas e estruturantes do saber por trás das decisões, é uma das causas da formação de tecnicistas, práticos de atuação restrita e visão estreita. O professor Alexandre Araújo, ao tratar do tema, explica que, a partir do início do século XIX:

“Consolidou-se, então, um tipo de postura que implica a valorização dos saberes práticos e é avesso à teoria e à filosofia que lhe subjazem, perspectiva essa que até hoje predomina no senso comum dos juristas. (...) essa organização dogmática não é feita por meio de um discurso teórico-filosófico, mas por um discurso técnico-prático, que estimulou o florescimento de uma mentalidade legalista que veio a ser conhecida como Escola da Exegese (...). Porém, ao serem educados para operar o discurso dogmático sem compreender a teoria que organiza esse próprio discurso, os juristas se tornaram praticamente cegos para a base teórica e filosófica que sustentava, com sua estrutura invisível, os padrões de organização de sua própria prática.” (COSTA, 2020)

Crítico contumaz do Direito construído e aplicado na atualidade, Lênio Streck afirma que nas produções literárias mais recentes “o Direito não passa de uma mera racionalidade instrumental. Na verdade, para essa gente o Direito é uma mera técnica, que pode ser manipulada ao bel prazer do utente”. O professor acrescenta que “a interpretação do Direito se transformou em um conjunto de posturas e teses utilizadas ad hoc.

“É possível ver um tribunal ou um órgão fracionário lançar mão de uma ‘metodologia exegético-subsuntiva’ (na verdade, quase sempre uma vulgata) ao mesmo tempo em que ignoram totalmente os limites semânticos de um texto jurídico. Por vezes, em um mesmo julgamento. Assim, em um determinado momento, escravo da lei (e com leituras rasas que passam longe de, porque não, desejadas sinonímias); em um segundo momento, o ‘proprietário dos sentidos da lei’, tal como acontece com a peça de Shakespeare, na parte em que Ângelo faz a proposta para que Isabela passe uma noite com ele em troca da liberdade de Cláudio. Mixagens... Nada mais do que isso.” (STRECK, 2014)[2]

A construção de um pseudo-tecnicismo exegético se contrasta com a complexidade indicada por Habermas para o uso da razão prática. Segundo Habermas, é possível avaliar o uso da razão prática sob três perspectivas: aristotélica (uso ético da razão), kantiana (uso moral da razão) e utilitarista (uso pragmático da razão). Por meio da tradição aristotélica é possível discutir o uso ético da razão, a ética de cada caso, assumindo que a justiça deve se aproximar daquilo que é bom. Kant avança para análise mais reflexiva, tratando da razão prática em termos morais, de forma que as questões de justiça são diferentes da moral, afirmando em um de seus imperativos categóricos que um dever moral deve ser cumprido independentemente de condições, em abordagem pretensamente universalizante. Por fim, cabe citar a concepção utilitarista, que indica um uso pragmático da razão prática, com juízo de adequação entre meios e fins.[3]

Como exposto, a utilização dos precedentes como a fonte mais influente do Direito e a efetiva redução da técnica jurídica a encontrar um caminho por meio de julgados passados para casos presentes é extremamente problemática. No Brasil, não há critérios claros que separem um precedente de uma decisão judicial no cotidiano da justiça. Logo é cômodo ao magistrado fundamentar suas decisões com base em casos pretéritos decididos de forma apressada e sem a devida reflexão, desde que estejam de acordo com seu raciocínio. Muito comum são as analogias a casos supostamente semelhantes, mas que na prática não são. Nesse contexto, tanto uma ADI amplamente discutida pelo plenário da Suprema Corte quando uma decisão monocrática superficial de um ministro serve para justificar novas decisões, desrespeitando as particularidades de cada caso e o direito do jurisdicionado e seus advogados na construção efetiva do Direito.  

Referências bibliográficas

BRASIL, Código de Processo Civil. Senado Federal. 2015.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.  São Paulo: Ícone, 1995.

[1] MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. Martins Fontes, 1993.

[2] STRECK, Lenio. Justiça entre exegetismo e decisionismo: o que fazer? Disponível em https://www.conjur.com.br/2014-mar-27/senso-incomum-justica-entre-exegetismo-decisionismo. Consulta em 28/10/2020.

[3] HABERMAS, Jürgen. Para uso pragmático, ético e moral da razão prática (1989). In: Anotações da disciplina Introdução ao Direito 2, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, p. 571-605, 1987.

HESPANHA, Antônio. História do Direito na História Social. Lisboa : Livros Horizonte, 1982. p. 9-63

Entrevista – Marilena Chauí. Revista Cult. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-marilena-chaui/