Milton Paulo Santiago #Grupo 8 #O ser Universitário #Grupo8

Se o conceito de norma abranger as práticas consuetudinárias, o tempo social e o contexto social, então é possível dizer que o direito é um conjunto de normas e costumes que tentam solidificar o arranjo da população para a qual ele se destina. A lei é criada, primeiramente, no âmago da sociedade, nas relações interpessoais e coletivas, e só depois desse processo é que se torna um diploma formal, escrito e debatidos por quem tem a competência legislativa.

Para este post, o professor estabeleceu como referência o texto: “Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?”  de Noel Struchiner e Marcelo Santini Brando. Os autores partem da teoria do realismo jurídico norte-americano em que decisões judiciais seriam previsíveis. Nesse processo de decisão estaria o estado psicológico do juiz como um dos fatores de decisão. Alguns realistas chegaram a acreditar que a cuidadosa percepção de juristas experientes seria suficiente para identifi­car os verdadeiros determinantes nas decisões judiciais.

No texto, percebemos que o direito não está atrelado nem mesmo à linguagem, pois esta possui limitações para representar, na forma escrita, as situações da vida. Na verdade, a linguagem legal é vaga e deixa margem para muitas controvérsias nas fronteiras dos termos classificatórios gerais. Os parlamentos buscam emitir disposições gerais para toda sociedade e não para casos específicos inseridos em um contexto de usos-e-costumes.  Nessa acepção ampla, os casos difíceis são aqueles casos ligados à noção de indeterminação e para os quais não existe uma única solução correta, ou os casos diante dos quais quali­ficados juristas estão em desacordo sobre como eles devem ser resolvidos.

Para além do texto do professor, trago, como referência concreta, o caso Soobramoney versus Minister of Health KwaZulu-Natal (1997).

O Tribunal Constitucional da África do Sul negou a pretensão de um cidadão que precisava de um tratamento renal e que veio a falecer dias depois da decisão que lhe negou o procedimento, uma vez que o tribunal considerou legítimos e bem estruturados os critérios de elegibilidade fixados pelas autoridades públicas para as pessoas que seriam submetidas ao programa de saúde.[1]Ou seja, o sistema de saúde possuía critérios para a fila de atendimento que não necessariamente era a ordem de chegada dos pacientes. Uma vez que o Sr. Soobramoney não se enquadrava nesses critérios, teve negado seu pleito pela saúde, e faleceu dias depois.

O Sr. Soobramoney passava por uma insuficiência renal crônica, além de problemas cardiológicos e endocrinológicos. O paciente procurou a Corte Constitucional africana para que o sistema público de saúde fornecesse os serviços de diálise. O Sr. Soobramoey tinha sido informado que, em virtude da escassez de recursos, apenas 30% dos pacientes com o mesmo problema poderiam ser contemplados. A Corte Constitucional entendeu que a negativa do hospital não foi desarrazoada. Os elementos de prova indicavam que a política pública era racional e não discriminatória. Diante da limitação dos recursos disponíveis, a escolha estatal não deveria ser substituída pela decisão da Corte, porquanto não se mostrava inadequada.

Usando as máquinas de diálise disponíveis de acordo com as diretrizes estabelecida pelos hospitais, mais pacientes são beneficiados do que seria o caso se elas fossem utilizadas apenas para manter pessoas vivas com insuficiência renal crônica, e os resultado do tratamento também provavelmente será mais benéfico, pois é direcionado para curar pacientes, e não simplesmente para mantê-los doentes na condição crônica. [Na apelação] Não foi sugerido que essas diretrizes não são razoáveis ​​ou que não foram aplicadas de maneira justa e racionalmente quando a decisão foi tomada pelo Addington Hospital que desqualificou o recorrente para realziar a diálise[2].

Estavam em jogo diversos direitos e princípios que seriam analisados pela teoria da ponderação ou tão somente pela aplicação da lei abstrata. Quais filósofos e seus argumentos poderíamos usar para cada lado de uma das demandas?!

As diferentes situações desafiam a capacidade do juiz em traduzir as preten­sões gerais dos direitos sociais em ações bilaterais específicas. A sentença que beneficia um indivíduo não tem seu limite apenas naquela demanda. Os efeitos irradiam para o ambiente estatal e privado, ao ponto de insurgir em partes alheias ao processo.  O caso Soobramoneynão se tratava apenas do seu tratamento, mas na exclusão do tratamento de uma outra pessoa.

Os casos difíceis esbarram continuamente na limitação do orçamento público, que se torna o núcleo do conflito entre as teorias que são usadas para decidir casos difíceis. Ocorre, na verdade, que o conceito direito fica prejudicado caso não exista recursos para fornecê-lo ao destinatário; a pessoa pode até possuir o direito, mas o Estado não possui condições de entregá-lo. É um desafio para o juiz ter que atuar no planeja­mento orçamentário, posto que ele vê um ponto específico de toda a esfera pública.

A seriedade e sensibilidade dos temas exigem uma fundamentação sólida e doutrinária. Não podemos tirar da cartola um discurso contra ou a favor do Juiz. Toda a experiência acadêmica e prática devem ser valorizadas para resolver o assunto, seja para inovar e contrariar o costume ou para assegurar um status quo já pensado e construído na história legislativa c consuetudinária da nação.

Os casos difíceis são aqueles para os quais “não há uma formulação simples e objetiva a ser colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do intérprete e a realização de escolhas, com eventual emprego da discricionariedade. Trazendo para o debate um professor um professo da UnB, destaco que João costa neto identificou que as matérias de direitos fundamentais representam um desafio complexo, principalmente em hard cases. Em uma de suas teses de doutorado, o professor equipara essa complexidade da escolha aos perigos enfrentados por Ulisses contra Cilae Caríbdis, dois monstros mitológicos[3], em sua viagem epopeica. Sob esse pano de fundo, escolher entre Cila e Caríbdis tornou-se sinônimo de decidir entre dois males. Trata-se de enfrentar um dilema, sem uma saída agradável.

A alusão aos monstros da mitologia grega faz referência àquele que talvez seja o maior dilema do Direito Constitucional: o nó górdio entre democracia e Jurisdição Constitucional. Onde começa e onde termina a discricionariedade do legislador? Onde começa e onde termina a competência do juiz constitucional?[4]

Outro ponto polêmico sobre os hard cases (casos difíceis), apresentado pelo texto de Struchiner e Brando, é a expectativa que o juiz seja um herói que tudo sabe e tudo suporta. Citando Dworkin, o texto aborda a limitação dos juízes frente a casos complexos. É bem verdade que a teoria de Dworkin autoriza a atuação protagonista do judiciário sobre os outros poderes[5]. Ao debater o judicial review, Dworkin propõe que imaginemos um juiz especial, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade[6][7]. O juiz Hércules[8] aparece em algumas obras do autor e busca retratar um juiz independente, imparcial, sábio e que não se influencia por pressões temporais e sociais. Esse juiz está autorizado a atuar no conflito entre questão de política e questão de princípio.

O juiz Hércules não é um "ativista", mas ele não está limitado pela questão de política, pelo contrário, ele deve enfrentar a questão de política e verificar se ofende a questão de princípio. Por ser âmbito coletivo versus individual, e vice-versa, esse embate configura um dos campos de atuação do juiz administrador. O juiz Hércules vai se recusar a substituir seu julgamento pelo julgamento do legislador, mesmo quando acreditar que a questão em jogo é fundamentalmente política e não de princípio, ou quando o argumento for sobre as melhores estratégias para satisfazer inteiramente o interesse coletivo por meio de metas, tais como a prosperidade, a erradicação da pobreza ou o correto equilíbrio entre economia e preservação.

O juiz Hércules não teria aderido à maioria no julgamento do caso Lochner, por exemplo, porque teria rejeitado o conceito sobre o princípio da liberdade adotado pela Suprema Corte naquele caso, considerando-o claramente incoerente com a prática norte-americana e de equivocado de entendimento, [o juiz Hércules] também teria se recusado a reexaminar as demais decisões do legislativo de Nova York sobre as questões de política.[9]

Os passivistas[10]fortalecem seus argumentos citando o caso Lochnere outros, nos quais, a Suprema Corte, erradamente, recorreu aos direitos individuais para impedir ou frustrar programas legislativos justos e desejáveis. Por outro lado, teríamos mais a lamentar se a Corte tivesse aceitado irrestritamente o passivismo nos casos de segregação racial das escolas do Sul, que ainda estariam segregadas, por exemplo. Na verdade, se fôssemos reunir as decisões mais lamentadas da Corte norte-americana ao longo da história constitucional, acharíamos muitas outras nas quais o erro esteve na falta de intervenção em momentos nos quais os princípios constitucionais de justiça exigiam uma intervenção. Os norte-americanos sentiriam mais orgulho de sua história política se esta não incluísse, por exemplo, os casos Plessy[11] ou Korematsu[12]. Nesses dois casos, a decisão majoritária do legislativo foi profundamente injusta, e também, como muitos juristas hoje acreditam, inconstitucional; a Suprema Corte norte-americana não interviu para fazer justiça em nome da Constituição.[13]

O passivismo parece, à primeira vista, uma teoria atraente sobre a medida em que critica o fato de os juízes imporem sua vontade às maiorias políticas, ou seja, criticam o ativismo. Assim também Dworkin, para ele, o ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores dos tribunais que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições da cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe esteja próxima. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição por meio da interpretação, querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la.

Struchiner debate o realismo com o sócio-intuicionista no papel decisório do juiz. Apresenta estudos e técnicas de decisão que procuram mitigar o envolvimento psicológico do magistrado nesse processo. Há uma tentativa de reconhecer a inexistência do juiz Hércules descrito por Dworkin,  No domínio das ciências cognitivas, prevalece a visão de que o pensamento e julgamento são operados por sistemas distintos às vezes chamados de implícito e explícito, intuitivo e deliberativo, ou sistema 1 e sistema 2.  O raciocínio moral é uma atividade desempenhada pelo sistema 2 (lento, controlado e consciente) no qual uma pessoa busca argumentos que darão suporte ao julgamento já alcançado. Mas o sistema 2 também tem a função de operar como “porta-voz” do sistema 1. raciocínio post hoc descreve o raciocínio moral como um processo esforçado no qual uma pessoa busca argumentos que darão suporte ao julgamento já alcançado. É o momento em que juízes buscarão razões para justi­car o julgamento “isto é errado!” ou “isto é correto!”

No processo de decisão de casos difíceis, o juiz estaria vinculado a 6 elos: (1) Os dois primeiros elos são pessoais, individuais. Elo do julgamento intuitivo. O primeiro elo conecta os flashes de intuição com os julgamentos morais conscientes. (2) raciocínio post hoc descreve o raciocínio moral como um processo esforçado no qual uma pessoa busca argumentos que darão suporte ao julgamento já alcançado. É o momento em que juízes buscarão razões para justifi­car o julgamento “isto é errado!” ou “isto é correto!”. (3) O terceiro elo, chamado elo da persuasão racional, diz respeito à prática da moralidade veiculada por meio da linguagem. (4) O quarto elo do modelo, chamado elo da persuasão social, decorre do reconhecimento de que também há “meios de persuasão que não envolvem fornecer razões de qualquer tipo” (5) o elo do julgamento fundamentado (6) elo da reflexão em contexto privado.

Apesar de todos os estudos dos elos do processo de decisão e da análise da teoria do juiz Hércules de Dworkin, é possível identificar que Direito e Justiça estão em lugares diferentes no conceito de Norma. A norma não garante a justiça. Assim como o contexto social influencia a criação da norma, as decisões dos casos difíceis são influenciadas pela psicologia dos juízes que estão longe de serem um Juiz Hércules.



[1] Confira-se a palestra proferida em Yale University pelo Justice Albie Sachs, reconhecido ativista de direitos humanos e então juiz da Suprema Corte da África do Sul que participou desse histórico julgamento, na qual apresenta o contexto político-jurídico-econômico sul-africano pós-apartheid e expõe algumas justificativas para as inovadoras e polêmicas decisões da Corte: http://www.law.yale.edu/news/10901.htm

[2] Soobramoney v Minister of Health (Kwazulu-Natal), 1998 (1) SA 765 (CC); 1997 (12) BCLR 1696, par. 25. “By using the available dialysis machines in accordance with the guidelines more patients are benefited than would be the case if they were used to keep alive persons with chronic renal failure, and the outcome of the treatment is also likely to be more beneficial because it is directed to curing patients, and not simply to maintaining them in a chronically ill condition. It has not been suggested that these guidelines are unreasonable or that they were not applied fairly and rationally when the decision was taken by the Addington Hospital that the appellant did not qualify for dialysis.”

[3]COSTA NETO, João. Entre Cila e Caríbdis: a liberdade de expressão em meio ao conflito entre a discricionariedade do Legislador e a intensidade do controle exercido pelo Juiz Constitucional. Tese de Doutoramento. UnB. Brasília. 2014

[4] Ibid. p.7

[5]Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_Dworkin. Acesso em 25 de novembro de 2019.

[6] O conceito de integridade, na teoria de Dworkin, possui duas dimensões. O Prof. Dr. Menelick de Carvalho Neto assim expõe os dois sentidos da integridade do Direito: “A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do ideal da comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como co-autores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional, como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal. Desse segundo sentido decorre a metáfora do romance em cadeia. (...) A teoria de Dworkin defende que a Constituição constitui uma comunidade fundada sobre princípios, a chamada comunidade de princípios. Uma comunidade que se alicerça sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de todos e cada um de seus membros. Esses princípios que constituem a base dessa comunidade são princípios que o Direito tomou emprestado da moral, uma moral de princípios extramente abstratos e universais. Porém, o Direito, ao recepcionar esse abstrato conteúdo moral, empresta-lhe maior densidade e concretude, ao passo que a moral fornece ao Direito sua legitimidade. Esse conteúdo moral incorporado ao Direito como direitos fundamentais, submete-se ao código próprio do Direito, ou seja, funciona como Direito, e não mais como moral” CARVALHO NETO. Menelick. Lutas por reconhecimento e a cláusula de abertura da Constituição. CEAD/UnB. Brasília. 2013. p. 7 - 11)

[7] Ibid. p.287

[8]Ibid. p.453 – 454. Suas convicções sobre a justiça ou a política sábia se vêm inibidas em seu julgamento interpretativo geral, não apenas pelo texto da lei, mas também por um grande número de considerações sobre a equidade e a integridade.

[9] “He would not have joined the Lochner majority, for example, because he would have rejected the principle of liberty the Supreme Court cited in that case as plainly inconsistent with American practice and anyway wrong and would have refused to reexamine the New York legislature’s judgment on the issues of policy that then remained.” DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Harvard University Press. 1986. Disponível em: https://archive.org/stream/EmpireDworkin/empire%20dworkin_djvu.txt

[10]Ibid. .p.287 “Os juízes "passivos", dizem eles, mostram grande deferência para com as decisões de outros poderes do Estado, o que é uma qualidade do estadista, enquanto os "ativos" declaram essas decisões inconstitucionais sempre que as desaprovam, o que é tirania.”.

[11]Plessy v. Ferguson (1896) foi um caso marcante decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos que decidiu sobre a constitucionalidade do direito dos estados da União de impor a segregação racial em locais públicos sob a doutrina do "separate but equal" ("separados mas iguais")

[12]Em Korematsu (1944), a Corte recusou-se a proteger os japoneses norte-americanos contra o internamento injustificado no início da Segunda Guerra Mundial.

[13] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Martins Fontes. São Paulo. 1999.p.449