Muitos autores identificam a máxima "penso , logo existo" formulada por Descartes como elemento fundador do pensamento moderno. A separação entre "mente" e "corpo", e entre "sujeito" e "objeto", proposta por Descartes, lançou as bases da ciência moderna, além de uma pretensão de um sujeito universal, que poderia alcançar o conhecimento verdadeiro, não condicionado por nenhuma particularidade, ignorando o fato de que sua observação dos fenômenos é condicionada pela sua experiência localizada no tempo e no espaço.

Apesar de Comte entender que o cientista é alguém "que abandonou a crença injustificada em ficções" (COSTA, 2020), o conhecimento científico moderno foi fundado em uma série de ficções, como a possibilidade de se produzir um conhecimento universal, impessoal e objetivo. Essas ficções servem para deslegitimar todas as outras formas de conhecimento, tidas como "primitivas" ou "metafísicas". Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (2019, p. 24-25),

As epistemologias do Norte têm como premissa uma linha abissal que separa as sociedades e as formas de sociabilidade metropolitanas das sociedades e formas de sociabilidade coloniais e nos termos da qual aquilo é válido, normal ou ético do lado metropolitano dessa linha não se aplica no seu lado colonial. O fato de essa linha ser tão básica quanto invisível permite a existência de falsos universalismos que se baseiam na experiência social das sociedades metropolitanas e que se destinam a reproduzir e a justificar o dualismo normativo metrópole/colônia. Estar do outro lado, do lado colonial, da linha abissal equivale a ser impedido pelo conhecimento dominante de representar o mundo como seu e nos seus próprios termos. Nisso reside o papel crucial das epistemologias do Norte de contribuir para a reprodução do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. As epistemologias do Norte concebem o Norte epistemológico eurocêntrico como sendo a única fonte de conhecimento válido, seja qual for o local geográfico onde se produza esse conhecimento. O Sul é o problema; o Norte é a solução. Nesses termos, a única compreensão válida do mundo é a compreensão ocidental.

Segundo o sociólogo latino-americano Ramón Grosfoguel (2016, p. 25-29), o pensamento cartesiano, aliado à colonização européia, inaugurou a “geopolítica do conhecimento” que influenciou fortemente o racismo e sexismo epistêmico presente nas universidades ocidentalizadas. Essa estrutura dota os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é a verdade, deslegitimando os conhecimentos produzidos pelo Sul global ou por mulheres (ocidentais ou não), de forma a legitimar a dominação do sistema-mundo e do patriarcado.

Esse processo de sacralização do conhecimento científico se relaciona com o conceito de "desencantamento do mundo", cunhado por Weber, segundo o qual o processo de racionalização da sociedade moderna provocou a decadência das formas tradicionais de sociabilidade, que funcionavam como uma chave para explicar o mundo para diversos grupos sociais. Importante mencionar que, para as subjetividades colonizadas, a modernização representa uma violência epistêmica (epistemicídio). O sujeito colonial deve abandonar suas formas próprias de representação do mundo para, finalmente, se tornar "racional", "civilizado" e até "humano".

Portanto, cremos que esse mal-estar da modernidade, identificado como a negação dos valores tradicionais, que provoca um sentimento profundo de alienação, deve ser sentido com maior intensidade, principalmente, pelos estudantes indígenas e quilombolas da Universidade de Brasília, uma vez que, muitas vezes, esses estudantes têm formas próprias de representação do mundo, intimamente ligadas às suas comunidades ancestrais e, por isso, se distanciam muito das formas de sociabilidade considerada "moderna", que as universidades ocidentalizadas tendem a reproduzir.

Provavelmente aqueles estudantes que já foram socializados a partir de uma visão de mundo ocidentalizada não sentem tanto esse conflito quanto os estudantes que têm seus conhecimentos constantemente negados pela academia, até porque muito já se naturalizou a "espécie de desorganização psíquica" que permite uma multiplicidade de esferas de valor (COSTA, 2020). A maioria das pessoas não enxergam suas próprias posições como contraditórias.

Além disso, é muito possível que esses estudantes identifiquem outros problemas como mais urgentes, como a sensação de perda segurança existencial "que era oferecida pelos grandes sistemas de moralidade e pelas consolidação de relações sociais mais instável e voláteis, uma situação em que um alto grau de incerteza (sobre o futuro, sobre a maneira correta de viver, sobre os modos de se relacionar com as outras pessoas) já não é vista como um inconveniente e sim como uma característica permanente e irredutível" (COSTA,2020).

Entendemos que esse sentimento, identificado como o mal-estar da pós-modernidade ou da modernidade líquida, é compartilhado pela grande maioria dos estudantes universitários, ainda mais diante da atual crise política, econômica e social, mas, certamente, deve se impor com maior intensidade sobre os estudantes que não possuem tantas redes de apoio (econômico, emocional, etc.) disponíveis.


COSTA. Alexandre Araújo. Os dilemas da contemporaneidade. 2020.

SANTOS. Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc. estado.,  Brasília ,  v. 31, n. 1, p. 25-49,  Apr.  2016 .   Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922016000100025&lng=en&nrm=iso. access on  11  Sept.  2020.