O etnocentrismo cultural, juízo de valor que impede a constituição verdadeira da antropologia como ciência, historicamente permeia diversas abordagens sociológicas e antropológicas, disfarçado, por vezes, em afirmações objetivas a respeito de sociedades primitivas, como aponta Pierre Clastres (COSTA, 2020a).

A presunção de superioridade de determinada civilização em face de outra teve como fundamento, dentre vários, a adoção de teorias científicas de outros campos do conhecimento, como a biologia. Uma interpretação equivocada da teoria da evolução de Charles Darwin deu origem ao chamado darwinismo social, que serviu para legitimar, a título de exemplo, preconceito racial e eugenia (ALMEIDA, 2013).

Por outro lado, a simples afirmação de fatos objetivos a respeito de determinadas sociedades primitivas, como a maior complexidade social de uma ou outra, não necessariamente traduzirá etnocentrismo, ainda que emprestados termos da teoria da evolução. Tal dependerá das premissas do estudo e da finalidade da análise. Niklas Luhmann (2016, p. 320-321) utiliza o conceito de evolução de Darwin em sua teoria dos sistemas, para a “explicação da diversificação ou do aumento da complexidade”, quando tratando da evolução do direito.

Percebe-se, assim, que o etnocentrismo surge quando se traça uma linha de progresso entre as sociedades, que todas as civilizações trilhariam, com a consequente afirmação de serem as sociedades primitivas “atrasadas” (COSTA, 2020a). Almeida (2013) explica que essa é uma das grandes falhas na adaptação da teoria da evolução que gerou o darwinismo social, visto que Darwin “rejeitava expressamente a tese de que a evolução tem uma direção predeterminada”. De acordo com Almeida (2013), ainda em crítica ao darwinismo social e contra a hipótese de haver um sentido único da história, as sociedades humanas apresentam grande variedade de formas morais e políticas.

Nesse sentido, Clastres, com base em seus estudos com povos indígenas, aponta que as algumas sociedades primitivas não são simplesmente sociedades sem Estado, mas sim sociedades contra o Estado. Não se trata de uma forma atrasada de organização da sociedade, mas uma estrutura diferente e por meio da qual esses povos conseguiram atingir grande estabilidade. Há uma organização de chefia na tribo, mas o chefe não possui poder de coerção sobre os outros, isto é, há igualdade entre os membros. Ademais, a tribo possui também mecanismos para preservar a sua ordem social igualitária, contra a formação de um poder político individual (COSTA, 2020a).

Com isso, observa-se que há uma grande margem para sistemas políticos, não sendo necessária ou natural a concentração de poder para o bom funcionamento da sociedade primitiva, ao menos neste primeiro momento.

Flannery e Marcus “buscam estabelecer a transição de sociedades igualitárias para sociedades politicamente desiguais” (COSTA, 2020b), partindo do pressuposto de ser a igualdade característica das sociedades de caçadores-coletores. Entretanto, McCall e Widerquist apontam que diversas pesquisas relataram sociedades desiguais de caçadores-coletores. Desse modo, o igualitarismo não pode ser encarado como característica geral desse tipo de sociedade, mas tão-somente uma variação cultural (COSTA, 2020b).

Permanece, assim, a questão do início da desigualdade. De acordo com Flannery e Marcus, a explicação mais comum para a alteração das estruturas sociais, com a instauração de níveis sociais hierárquicos, é o crescimento populacional e a maior complexidade social decorrente. Contudo, os autores apontam que há outras formas igualitárias de sociedade capazes de integrar uma grande quantidade de indivíduos. Assim, a tese dos autores acaba por sugerir que “a estratificação da desigualdade não decorre naturalmente do crescimento populacional” (COSTA, 2020b).

Assumindo-se como verdadeira essa tese, a desigualdade ou a distinção entre governantes e governados não são consequências do aumento demográfico, mas antes formas de organização social que permitem a formação de uma sociedade mais ampla e complexa (COSTA, 2020b).

Desse modo, a existência de hierarquia social não é natural, no sentido de ser da essência das sociedades humanas, nem é corolário do aumento populacional. Por outro lado, foi o que permitiu a complexificação da sociedade e uma gestão mais eficiente de recursos. Portanto, embora em primeiro momento a centralização de poder não tenha sido ocasionada pelas transformações demográficas, intensificou-as e transformou o perfil da sociedade de tal forma que já não é mais possível abandoná-la.

É possível fazer um paralelo com a revolução agrícola, que Yuval Harari (2018) chama de armadilha de luxo. Para o autor, após acionados os mecanismos de transformação social da revolução agrícola, já não era possível retornar ao coletivismo, tendo em vista a explosão demográfica.

Da mesma forma, estabelecida uma sociedade complexa que somente se tornou possível após a distinção entre governantes e governados, essa desigualdade social passa a ser necessária para esse modelo de organização societária. A esse respeito, é esclarecedor este trecho de H. L. A. Hart (2009, p. 67-68):

“Devemos agora examinar mais detalhadamente essa teoria geral sobre os fundamentos de todos os sistemas jurídicos; pois, apesar de sua extrema simplicidade, a doutrina da soberania não é nada menos que isso. Afirma que, em toda sociedade humana em que exista o direito, encontraremos em última instância, latente sob a variedade das formas políticas, tanto numa democracia como numa monarquia absoluta, essa relação simples entre súditos, que prestam obediência habitual, e um soberano, que não obedece habitualmente a ninguém. Essa estrutura vertical composta de soberano e súditos é, segundo a teoria, uma parte tão essencial de uma sociedade onde haja o direito quanto a espinha dorsal de um homem.”

Deve ser feita, porém, uma ressalva a esse trecho citado. A teoria aponta a existência da estrutura vertical em toda sociedade humana em que haja direito. Como foi visto anteriormente, contudo, há diversas sociedades primitivas com organização igualitária e que possuem alguma forma de direito, variando de acordo com o conceito de direito que se adotar. Portanto, há de se entender no lugar “em toda sociedade humana em que haja um sistema de direito complexo e desenvolvido”, como a civilização atual.

Dessa forma, conjugando as ideias expostas, pode-se chegar à conclusão que a distinção entre governantes e governados não é natural das sociedades humanas. Há exemplos de sociedades igualitárias e perfeitamente organizadas e estáveis. Do mesmo modo, essa distinção não decorre necessariamente do aumento populacional ou da complexidade social. Por outro lado, permite a gestão eficiente dos recursos disponíveis e a intensificação dessa complexidade social. Logo, embora a distinção entre governantes e governados não seja natural, é necessária para a estruturação social de civilizações muito complexas, como a nossa.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. As origens evolutivas da cooperação humana e suas implicações para a teoria do direito. Rev. direito GV,  São Paulo ,  v. 9, n. 1, p. 243-268,  June  2013 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322013000100009&lng=en&nrm=iso>. access on  30  Sept.  2020.  https://doi.org/10.1590/S1808-24322013000100009.

COSTA, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020a.

COSTA, Alexandre. As origens da desigualdade política. Arcos, 2020b.

HARARI, Yuval. Sapiens: uma breve história da humanidade. 38ª edição. Porto Alegre: L&PM, 2018.

HART, H. L. A. O Conceito de direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.