Nem sempre houve uma distinção entre governantes e governados, considerando que nem sempre existiu governo, pelo menos não como o conhecemos nos dias de hoje. A questão que se coloca é em que momento da história desenvolveu-se uma sociabilidade que introduziu uma diferença substancial entre governantes e governados, e se essa diferenciação foi algo natural ou se deu em razão de uma construção cultura e histórica.

Rousseau se propôs a investigar a origem dessa desigualdade, em seu ensaio “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”. Para ele, “o homem selvagem [no estado da natureza] anseia apenas o repouso e a liberdade, já o outro [homem da sociedade civil], sempre ativo, agita-se, trabalha até a morte, faz a corte aos ricos e se envaidece de sua escravidão pela vida”. Em suma, houve uma corrupção do homem quando, “cada qual começou a olhar os demais e também a querer ser olhado, e a estima pública teve um preço”. Assim, para ele não era natural essa desigualdade, como também não era a escravidão, visto que não há autoridade natural entre os homens e que a força não produz direito algum, sendo as convenções a única base da autoridade legítima entre os homens (Rousseau, 2015).

Os arqueólogos Flannery e Marcus também buscaram responder à questão proposta por Rousseau. Para eles, nas culturas madalenianas (cerca de 15.000 AC) há vestígios semelhantes aos das culturas que sobreviveram até os dias de hoje. Apesar das diferenças entre eles e nossas organizações sociais, “a integração social de pessoas que não fazem parte do mesmo núcleo familiar é realizada por meio de rituais, da religião e da arte” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

Tanto nas sociedades anteriores às madalenianas (Flannery e Marcus) quanto nas sociedades indígenas (Clastres) supõe-se que não havia diferença entre governantes e governados, ainda que no caso dos indígenas houvesse uma diferença de prestígio que conduzia certos indivíduos a uma posição de liderança, algo muito diferente da autoridade política de chefes, reis e imperadores.

A narrativa de Flannery e Marcus “assume que os caçadores-coletores tinham uma estrutura igualitária e que as sociedades se tornaram desiguais a partir da introdução da agricultura”. Porém, críticas, a partir dos anos de 1960, “indicaram que várias sociedades de caçadores-coletores (tanto contemporâneas quanto antigas) tinham graus consideráveis de desigualdade e que elas tinham contatos com sociedades de agricultores que eram suas contemporâneas”. Para McCall e Widerquist, “o igualitarismo não deveria ser pensado como uma característica necessária das sociedades de caçadores coletores, mas como uma espécie de variação cultural que era adaptada a certos contextos ecológicos e demográficos” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

O compartilhamento de alimentos foi o traço distintivo das sociedades igualitárias, que permitiu com que elas se adaptassem ao risco de acumulação e ganância, diminuindo os riscos inerentes a elas e permitindo que a população permanecesse alimentada, ainda que houvesse insucessos individuais.

Clastres diferencia dois tipos de igualitarismo nas sociedades igualitárias: “o igualitarismo fraco seria o de sociedades sem Estado, enquanto o igualitarismo forte seria das sociedades contra o Estado, que impõem estritamente um igualitarismo” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

McCall e Widerquist sugerem que formas de igualitarismo forte que marcam as sociedades de caçadores-coletores são um fenômeno novo, a partir de 15.000 AC, “pois elas são baseadas na imposição normativa da igualdade que parece ligada com a manutenção de estruturas igualitárias em contextos nos quais haveria uma pressão demográfica e ecológica para a adoção de sociedades com governo” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

Nas sociedades com igualitarismo forte (Schwendler), é desencorajado a competição inter-individual, e há pouca utilização de adornos pessoais para indicar prestigio ou status, algo diferente das sociedades que se aproximam dos indígenas de Clastres. Nelas, o status social diferenciado é demonstrado ou adquirido pelo investimento em bens não essenciais, tais como a utilização de adornos. Schwendler acrescenta, ainda, que houve assentamentos madalenianos que mostraram também sociedades com hierarquia social estabelecida, de forma a trazer estabilização para a tensão produzida nas sociedades baseadas em prestígio, nas quais há uma constante competição entre aqueles que pretendem ocupar cargos de liderança.

Dessa forma, ” a organização igualitária não decorre diretamente das estruturas sociais ligadas à caça e à coleta, mas das interações ambientais e das estruturas internas da sociedade, especialmente de seus elementos demográficos”. Para Flannery e Marcus, as mudanças ocorridas no final da Era Glacial se deram em razão de um crescimento populacional com uma densidade maior do que antes. Além disso, reconhecem também “que havia também outro processo em curso, que explicaria melhor o fato de que as evidências de comportamento simbólico são muito descontínuas, aparecendo fortemente em alguns locais, mas não em outros” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

Por isso, a solução que eles dão é a de que nas sociedades de caçadores-coletores pequenas, não formadas por diferentes clãs, “é provável que haja estabilização na forma de um igualitarismo fraco ou de um igualitarismo forte”. Já nas sociedades formadas por clãs, para além de suas famílias, havia a integração de uma quantidade maior de indivíduos “por meio de um processo que é baseado no fortalecimento dos laços simbólicos entre os indivíduos” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

Nas sociedades estruturadas em meio ao prestígio de lideranças, tende a haver uma maior estabilização social, e essas são uma das formas sociais mais estáveis, que se expandiu muito com a agricultura. Disponibilidade de riquezas e quantidade limitada de trabalho permitem que haja maior dinâmica de prestigio intra-grupal. Nas sociedades com hierarquia social definida, o governo depende de pertencer ao clã dominante, e não da capacidade pessoal do governante. Ao mesmo tempo em que há “estruturas voltadas a resistir contra a sua transformação em uma sociedade hierarquizada”, há “pressões sociais no sentido de converter o prestígio de certos líderes em um prestígio clânico capaz de impor o predomínio intergeracional de um clã determinado” (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

A conclusão dos autores é o de que a estratificação da desigualdade não decorre naturalmente do crescimento populacional, ou seja, transformar o grupo dotado de prestígio em um grupo superior não é decorrência necessária desse crescimento. Pode ser, por exemplo, quando um dos clãs é capaz de conseguir atingir determinadas feitos de forma constante e, então, passa a ser percebido como favorecido pelos deuses.

Com essa estratificação surge a figura do chefe: “um governante que exerce poder sobre os demais membros de uma comunidade e que pode transferir esse poder para outros membros do seu clã, gerando segmentações sociais intergeracionais”. Com ele, há o surgimento de tensões internas, principalmente na tentativa de galgar posições de prestigio de lideranças fracas; por outro lado, surge a criação de um governo capaz de maximizar a utilização de recursos, o aumento da prosperidade social e capacidade bélica (Costa, As origens da desigualdade política, 2020).

Dessa forma, a diferenciação entre governantes e governados, tanto na visão de Flannery e Marcus quanto na de Acemoglu e Robinson, não é natural e nem se deu em razão necessária do aumento da produção e densidade demográfica, mas sim foi uma adaptação para que se formassem sociedades mais amplas, que, com a centralização do poder decisório, melhor se utilizariam dos recursos disponíveis, tanto econômicos quanto bélicos, e possibilitariam uma adaptação social mais rápida. “Não há nada de natural na estratificação da sociedade em pessoas superiores e pessoas inferiores nem na a distinção entre governantes por natureza e governados por natureza” (Costa, A Ordem Imaginada, 2020).

Então, se não é natural, como manter a superioridade artificial? Alterando o sistema de crenças que organiza a sociedade. Com a revolução congnitiva de que fala Harari, o homem passou a utilizar a linguagem também para falar de coisas abstratas e, com isso, vieram os mitos, deuses, lendas e religiões. Por meio dessas crenças sociais compartilhadas é que é possível manter a coesão social numa comunidade em que há superioridade de um certo grupo.

Com o surgimento dos governos, a nova ordem precisava estar alinhada à mitologia anterior (um a ordem natural imaginada) dos caçadores-coletores, “sendo que a introdução da desigualdade parece ter sido justificada em termos religiosos: os governantes são favorecidos pelos deuses e, por isso, têm autoridade para exercer seu poder” (Costa, A Ordem Imaginada, 2020).

A naturalidade, como visto, tem raízes antigas e também chega aos gregos. Aristóteles, por exemplo, “considerava que a cidade (polis) era uma organização natural e que o homem era naturalmente um animal político, ou seja, um animal que por natureza integra alguma cidade”, e que “a natureza nada faz sem um propósito” e “o objetivo para o qual cada coisa foi criada — sua finalidade — é o que há de melhor para ela” (Costa, Direito e Modernidade, 2020). Em outras passagens: “é possível ver claramente quais as coisas que não podem ser de outra maneira, que são como são por natureza, e as que não são naturais, e sim convencionais” (Costa, Colóquio de Ontologia Jurídica, 2020); “é natural a submissão da mulher ao homem, do escravo ao senhor e dos indivíduos à cidade” (Costa, A Ordem Imaginada, 2020), distinguindo naturalmente os papéis sociais de cada um, algo comum até mesmo nos dias de hoje para se fundamentar uma ordem social posta.

Para Harari, para se fazer acreditar numa ordem imaginada, não se deve admitir que ela é imaginada, mas insistir que “a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos deuses ou pelas leis da natureza”. Os governantes então seriam os garantidores do bem, da tradição e da justiça, mas não tiranos que imporiam à população suas vontades (Costa, A Ordem Imaginada, 2020).

Para sustentar essa ordem, é preciso de um esforço contínuo para além da violência e da coerção. É preciso também do papel exercido pelo direito, a moral e a religião para não só nos oprimir, mas moldar nossos próprios desejos desde o nascimento pelos mitos dominantes, desejos esses que se tornarão as defesas mais importantes da ordem imaginada.

Então, a ordem natural não tem nada de natural, mas é uma interpretação diversa de cada cultura de uma ordem simbólica (Dharma, Tao, natureza, Deus, etc). Essa ordem natural de matriz grega que questionou a tradição, mas que não questionou a autoridade objetiva dos valores naturais, permeou todo o pensamento renascentista e moderno (iluminismo, constitucionalismo, liberalismo). O que talvez veio a reforçar ainda mais esse pensamento foi a pseudo-racionalização da ordem natural que ocorreu na modernidade (alternância da ordem natural da comunidade política para o indivíduo) que, apesar das críticas feitas pelo historicismo e pelo giro linguístico, permanece enraizado no senso comum, servindo de pano de fundo para os mais variados discursos justificadores dos que detêm o poder político e econômico.

Bibliografia

Costa, A. A. (21 de Setembro de 2020). A Ordem Imaginada. Fonte: Filosofia do Direito: https://filosofia.arcos.org.br/yuval-harari-e-a-ordem-imaginada/

Costa, A. A. (21 de Setembro de 2020). As origens da desigualdade política. Fonte: Filosofia do Direito: https://filosofia.arcos.org.br/untitled-13/

Costa, A. A. (28 de Julho de 2020). Colóquio de Ontologia Jurídica. Fonte: Filosofia do Direito: https://novo.arcos.org.br/coloquio-de-ontologia-juridica/

Costa, A. A. (03 de Setembro de 2020). Direito e Modernidade. Fonte: Filosofia do Direito: https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/

Rousseau, J. J. (2015). Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: edipro.