Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Em sua obra O príncipe, Maquiavel afirma que “todos os principados que deixaram memória de si foram governados de dois modos diversos: ou por um príncipe e seus súditos, os quais, por graça e concessão sua, o ajudam a governar o reino como delegados; ou por um príncipe e vários barões, os quais, não por graça do soberano, mas por antiguidade de sangue, mantêm aquele título1”. Para esse autor, a sociedade era então dividida em duas classes: governantes e governados.

Nessa divisão, nota-se que aqueles que governam se encontram em menor número, monopolizando o poder contra aqueles que são controlados, formando a classe dirigente, e os que são dirigidos, fatalmente em maior número. Em tal contexto, Maquiavel irá abordar questões relevantes acerca da legitimação do poder, onde um governante de boa fortuna e com virtù seria capaz de agir diante das imprevisibilidades, resistindo no poder.

Em O contrato social, Rousseau2 faz uma análise introdutória acerca das primeiras sociedades, abordando as concepções de Grotius e Hobbes, convergindo no sentido de que a espécie humana é "dividida em rebanhos de gado, cada a qual com seus chefe a guardá-la, a fim de a devorar".

Evitando maiores digressões, pois não se pretende um debate acerca das obras dos mencionados autores, é necessário frisar que a ideia de uma divisão de poder entre governantes e governados não é nova, mas percebida já há algum tempo. Sob outro olhar, mais próximo de nosso tempo, Marx e Engels consideravam a essência do Estado burguês como determinada pelas condições materiais e suas relações sociais afins. O Estado seria a representação dos interesses de uma classe específica, um instrumento essencial de dominação de classes na sociedade capitalista, sendo seu principal meio de expressão o poder coercitivo institucionalizado3.

De forma muito sintética, podemos indagar que, para Marx e Engels, o Estado emerge como parte da divisão de trabalho, ou seja, como fruto das diferenças entre grupos na sociedade e da ausência de um consenso. Nessa visão, o Estado está inserido no modo capitalista de produção. Ressalta-se, ainda, que a classe capitalista domina o Estado por meio de seu poder econômico, tendo em vista que os membros do sistema estatal tendem a pertencer à mesma classe ou classes que dominam a sociedade civil.

Em verdade, nesse prisma, nos parece que a normalidade da divisão política entre governantes e governados advém do fato de o Estado ser um instrumento que se presta a servir o capital em prol da exploração do trabalho assalariado. Naturalizar essa distinção implica aceitar que as desigualdades da divisão de classes, características do modelo capitalista, constituem a ordem natural de separação da sociedade em uma elite econômica e política e sua força de trabalho.

Katharina Pistor, em seu livro The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality4, não apenas concorda com a ideia de que o Estado é um instrumento da elite para a dominação e manutenção dessa posição de domínio, mas vai além ao trazer o Direito como o instrumento para a criação dessas desigualdades e riquezas. Ela afirma que o Direito, por meio de seus operadores e legisladores, foi responsável por garantir a primazia de determinadas formas de geração de riqueza sob outras, assim como o enforcement das garantias e contratos responsáveis pela criação desta.

Nessa senda, em se tratando de comunidades organizadas por um governo, o Direito é uma peça fundante da criação de desigualdades e da naturalização destas. O capital foi o escolhido, ao longo dos anos, como a peculiaridade que distingue as pessoas - e o Direito serve, na visão da autora, para garantir a criação e a manutenção do capital.

E o Direito, por se tratar de uma construção social simbólica5, como os rituais também são simbolismos de comunidades pré-modernas, naturaliza essas distinções.

Destarte, o Direito é uma linguagem simbólica criada com a finalidade de ordenar a sociedade. Assim sendo, pode ser encarado como um ritual (processo) no qual os seus operadores utilizam de uma linguagem abstrata para falar sobre coisas abstratas - como é a causa de pedir próxima e o pedido imediato nas questões processuais. Esse modelo de simbolismo é mais antigo do que o Direito.

Conforme bem explicita o Professor Alexandre Costa em seu texto Yuval Harari e a Ordem Imaginada6, há indícios de que as comunidades humanas praticam rituais complexos há cerca de 70.000 a 80.000 anos, quando ocorreu o que Yuval Harari (2012) denomina de Revolução Cognitiva. Essa revolução está ligada com o desenvolvimento de uma linguagem abstrata, que não diz coisas apenas sobre entidades concretas, mas também sobre entidades abstratas7.

Essa capacidade cognitiva permitiu, segundo Harari (2012), aos Homo sapiens falar sobre ficções e acreditar em lendas, mitos, deuses e religiões, bem como, permitiu, por meio de uma crença social compartilhada, manter a coesão social comunitária mesmo com existência de uma certa superioridade de alguns grupos.

Conforme o professor afirma em seu texto, o surgimento dos governos na sociedade introduziu novas formas de descrição que precisam justificar a ruptura representada pela cisão social entre governantes e governados, sem no entanto mudar a nossa dependência das ordens simbólicas.

Ainda nesse sentido, Alexandre Costa8 explica que existem, nas sociedades primitivas tipicamente igualitárias, dois tipos de igualitarismo: igualitarismo fraco e igualitarismo forte. O primeiro diz respeito a sociedades sem Estado, enquanto o segundo se refere a sociedades contra o Estado. A partir, então, dessa diferenciação, surge o questionamento acerca de quais foram os fatores que permitiram que surgissem sociedades subdivididas em grupos hierarquicamente distintos.

Quanto às sociedades consideradas sem Estado, no texto Pierre Clastres e a Sociedade contra o Estado9 proposto pelo professor Alexandre Costa, o antropólogo Pierre Clastres leciona que as sociedades primitivas são justamente classificadas neste grupo. Nesta sociedade, o Estado é impossível, uma vez que não há a ideia de autoridade ou de poder de coerção, mas sim a ideia de existência de um chefe que não tem o peso de ser visto como um lugar de poder. A essência da sociedade primitiva está em impedir um poder político individual, central e separado. Assim, a história passa a ser uma luta contra a unificação, contra o Estado.

Contudo, a sociedade ocidental tende a concluir que as sociedades primitivas são um grupo incompleto justamente pela falta do Estado. Tal fato demonstra a convicção de que a história segue um sentido único, ou seja, que das sociedades consideradas sem Estado e que, portanto, não são sociedades verdadeiras, irão percorrer suas etapas e serem conduzidas à civilização, que seria a sociedade com a presença do Estado. Associa-se, assim, a existência de um Estado “consolidado” à civilização. Nesse sentido, o autor propõe que a civilização ocidental parece estar calcada sob dois axiomas: o primeiro, em que a verdadeira sociedade se desenvolve com a proteção estatal; e o segundo, que o trabalho de fato é necessário.

No contexto das sociedades com hierarquia definida, o ato de governar não estava vinculado à capacidade pessoal do governante, mas, sim, ao fato de esse indivíduo pertencer ao clã dominante. Esse costume, por si só, estabelece uma gritante distinção entre governantes e governados, além de determinar que o ato de governar está restrito apenas a determinados grupos dessa sociedade, os quais dominam e se impõem sobre os demais clãs, sem que haja possibilidade de haver qualquer alteração nesse cenário.

Essa concepção de política vai de encontro ao pensamento de Hannah Arendt10, para quem política não é sinônimo de domínio, não se baseia na distinção entre governantes e governados nem, tampouco, é mera violência. A verdadeira política, para a filósofa, consiste em ação conjunta, em comum acordo, reflexo da condição plural do homem e um fim em si mesma.

Hannah Arendt explora, ainda, o conceito de liberdade, o qual, para a autora, não significa fazer o que se deseja e não significa soberania, pois "só se é livre perante outros que também o sejam". Ou seja, só há liberdade onde a condição plural do homem é respeitada, uma vez que "a pluralidade é a condição da ação humana, porque somos todos iguais".

A distinção entre governantes e governados pode ainda ser analisada sob a ótica do "Outro" beauvouriano. Segundo esse conceito, nenhuma coletividade se definiria como uma, sem colocar imediatamente a outra diante de si, em oposição.

Nesse sentido:

"Ao fim de um estudo aprofundado das diversas figuras das sociedades primitivas, Lévi-Strauss pôde concluir: "A passagem do estado natural ao estado cultural define-se pela aptidão por parte do homem em pensar as relações biológicas sob a forma de sistemas de oposições: a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria, que se apresentam sob formas definidas ou formas vagas, constituem fenômenos que cumpre explicar os dados fundamentais e imediatos da realidade social". Tais fenômenos não se compreenderiam se a realidade humana fosse exclusivamente um mitsein baseado na solidariedade e na amizade. Esclarece-se, ao contrário, se segundo Hegel, descobre-se na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer o outro inessencial, o objeto"11

Portanto, pensar na distinção entre governantes e governados sob essa ótica é também evidenciar mais uma forma que os aqueles se utilizam da estrutura para legitimação de discursos e imposição destes.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 34.

[​2]    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, eBook Kindle.

[3]    CARNOY, Martin. “Marx, Engels, Lênin e o Estado”. In: Estado e Teoria Política. Campinas: Papirus, 1990, p. 63-87.

[4]    PISTOR, Khatarina. "*The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality*".Oxford: Princeton University Press, 2019.

[5]    BOURDIEU, Pierre. "O Poder Simbólico". Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

[6]    Costa, Alexandre. Yuval Harari e a ordem imaginada. Arcos, 2020a.

[7]    Harari, Yuval Noah. Sapiens. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2012.

[8]    Costa, Alexandre. 2020a. Op. cit.

[9]    Costa, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020b.

[10]    Conferir em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/961/865 >. Acesso em: set. 2020.

Ver também: https://www.conteudojuridico.com.br/coluna/1161/o-sentido-da-politica-em-hannah-arendt >. Acesso em: set. 2020.

[11]    BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980b, pp. 10-11.