O Ato institucional nº 1, de abril de 1964, que ficou conhecido na história recente do Brasil como “golpe militar” traz em seu preâmbulo os motivos pelos quais os chefes das forças armadas poderiam alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente funcionário públicos que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública, além de convocar eleições indiretas para presidente.
Parte do Preâmbulo do AI 1/64
“(...) Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. “
O trecho citado informa que o Brasil passava por uma revolução que não tinha o interesse ou vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. Mais adiante, traz a ideia de que a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte, em sua forma mais expressiva e mais radical, que se legitima em si mesma e que possui a capacidade de destituir o governo anterior e instituir um novo governo. Isso somente seria possível graças à ação das forças armadas e apoio inequívoco da Nação, que essa revolução representa o povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que é o nome e o único titular.
Da mesma forma que o AI nº 1/64, o Auto Institucional nº 2/65 apoiou-se na legitimidade popular para continuar impondo medidas autoritárias sem a adesão da massa,
Parte do Preâmbulo do AI 2/1965
“(...) Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e uni Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão.”
De fato, não há dúvidas de que o preâmbulo traz elementos que define o conceito soberania de um país, especialmente quando se refere a legitimação popular. No entanto, trata-se de uma falácia e uma justificativa incoerente dentro do próprio ato. Ora, se o povo legitima o ato, por que afastar dele os direitos políticos, a liberdade de expressão? por que legislar por conta própria? Da mesma forma, se o povo é titular da soberania, era de se esperar que houvesse consulta prévia, com aceitação tácita ou expressa, diretamente ou por meio de representantes eleitos. Simplesmente, não houve.
Na verdade, se consideramos o Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 1946, o preâmbulo do AI nº 1/64 foi um discurso retórico para justificar uma ruptura baseada no uso da força, com a justificativa de livrar o país de uma ameaça socialista, personalizada na então figura do presidente João Goulart.
Naquele momento, que ficou conhecido como “guerra fria”, o Brasil estava no centro da bipolarização mundial entre o sistema capitalista, encabeçado pelos Estados Unidos e países do leste europeu, e o sistema socialista, encabeçado pela União Soviética e país do oeste europeu. Os militares estavam alinhados com o Estado Unidos e o novo presidente empossado possuía, na visão dos militares, ideias socialistas que seriam colocadas em práticas.
Nos moldes modernistas, para Thomas Hobbes, o poder soberano, e, portanto, a soberania, nasce do consentimento do povo reunido em uma espécie de contrato social. A soberania decorreria da renúncia do poder por parte do povo que o transferi para uma única pessoa.
“o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração.” (HOBBES, p. 146)
Nessa citação, Hobbes deixam claro que não pode haver quebra de pacto do soberano, porque nenhum dos súbitos pode se libertar da sujeição, sob qualquer pretexto de infração. O autor busca na autonomia da vontade do indivíduo a explicação para criar a figura do Estado como instituição e do soberano como líder deste. Os indivíduos cederiam direitos e assumiriam obrigações, por sua livre disposição de vontade, por meio de um pacto social tácito para criação do Estado governado pelo soberano.
Jean Bodin, em seu livro Lex Six Livres de la República, de 1576, tratou a soberania como “poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de Estado de uma República”.
Diferentemente de Hobbes e Bodin, Jean Jacques Rousseau acreditava que a titularidade da soberania era o povo e se que se caracteriza por ser inalienável, uma vez que se dava pelo exercício de vontades de todos; por ser indivisível, uma vez que a vontade do soberano deve considerar o todo e não a parte; e por ser imprescritível, uma vez que o exercício do direito de soberano não se perde com o passar do tempo.
Contemporaneamente, a definição de soberania ganhou novos ares e estar ligado principalmente a concepção da Independência de um Estado no plano internacional e a expressão do poder jurídico dentro dos limites jurisdicional do Estado. Nesse sentido, é a definição do professor Dalmo de Abreu Dallari,
“(...) soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira, ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado (...) (DALLARI, 1983, p. 74)
O que tem de comum na ideia de soberania tanto para os modernos quanto para os contemporâneos é a legitimidade popular, uma vez eleito o soberano pela maioria, há de se respeitar as decisões políticas tomadas.
No entanto, observa-se que nos AI nº 1 e nº 2 predominou mais uma relação de poder constituinte de chefes das formas armadas baseado na repressão popular do que de poder constituinte de origem democrática. Ambas as situações inovam, apresentam poderes iniciais, ilimitados e incondicionais, mas divergem quanto à legitimação.
Portanto, a relação de poder com imposição desses atos faz lembrar a figura do Rei no Estado Moderno absolutista, em que não era dado aos súbitos o direito de insurgir-se sob pena de repressão.
No Brasil contemporâneo, o soberano invocado pela Constituição da República de 1988 é, como em outros períodos democráticos, o povo, que perante o Congresso Nacional têm suas demandas encaminhadas por seus representantes eleitos para concretização. Além disso, no regime democrático permite a participação do povo nas decisões políticas diretamente por meio de referendo, plebiscito e ação popular.
Do poder constituinte originário surgem as “Constituições de Estado”, documento formal supremo em são criadas instituições e ferramentas de representação de poder e controle social e garantias e direitos fundamentais.
É importante frisar que o povo é uma figura dispersa e são representados por números, apresenta expressões e interesses diversos, de impossibilidade prática de moldar uma nova ordem constitucional, são “massas” difusas, que se faz representar por classes que as dominam e que passar a controlar o poder estatal.
Nesse sentido, o poder constituinte passa a ser uma criação mitológica para manter grupos oligárquicos sobre o controle de quem lhe deu origem. Na contramão da soberania popular, o poder constituinte passa a ser, a contrassenso, controlado por uma elite oligárquica.
Exemplo dessa narrativa é a Constituição cidadão promulgada em 1988, que ao invocar o movimento conhecido como “direitas já” como legitimador de uma nova ordem constitucional, demonstrou ser uma expressão do poder constituinte original genuíno. No entanto, a ruptura de regime militar para democrático se deu pela Emenda Constitucional nº 26/1985, que conferiu poder constituinte ao Congresso Nacional, cujos integrantes eram deputados eleitos pelo voto democráticos e senadores nomeados pelo regime.
A nova constituição previu uma série de regras procedimentais de mudanças do texto constitucional e um núcleo pétreo que não pode ser abolido, como a forma federativa de estado, separação de poderes, o voto direto, universal, secreto e periódico, direitos e garantias fundamentais. Pôs o povo como titular do poder constituinte, mas que em tese inexiste viabilidade prática de construção por ele de uma constituinte, muito menos de regular diretamente disposições constitucionais derivadas, que fica a cargo de grupos representativos concentradores de interesses capitais, figurando-se como construção retórica de controle social.
Esses dispositivos têm papel maior de manter a estabilidade, mas não pode pôr o povo contra o próprio povo. Aliás, se a constituição a eles é dirigida sendo por eles criadas, nada é mais lógico de eles mesmo possam convocar uma nova assembleia constituinte. Com isso, pode se concluir que uma grande insatisfação popular nacional teria o condão de provocar uma nova assembleia constituinte.
Nesse contexto, os protestos contra o governo Dilma Rousseff entre 2015 e 2016 que tinha como bandeira a luta contra corrupção instalada no país poderiam, sem dúvida, desencadear uma ruptura institucional, de origem popular, para convocar uma nova constituinte. Nesse caso, não haveria revolução propriamente dita, mas insatisfação pelo mal dirigismo estatal. No entanto, o movimento poderia ser absorvido por oligarquias políticas, buscando a legitimação popular, para direcioná-lo à defesa de seus próprios interesses.
Da mesma forma, no atual governo, partidários afetos ao Presidente Jair Bolsonaro clama por intervenção militar para assegurar o pleno exercícios dos três poderes, em especial contra o Supremo Tribunal Federal. Haveria algum impedimento para isso?
Há duas respostas para essa pergunta. A primeira, seria o Presidente agir como soberano nos moldes do Estado Moderno, em que os súditos devem apenas seguir o novo modelo institucional, sob pena de repressão. A segunda, seria agir como soberano nos moldes do Estado Contemporâneo, de cunho democrático, respeitando direitos e garantias fundamentais. Ambas as respostas têm origem popular. Porém, nessa última, a ordem constituída limita o poder do Presidente da República por meio do mecanismo de freios e contrapesos, inclusive com o uso da força, da mesma maneira, o jogo de interesse das oligarquias políticas se bem orquestradas impedem quaisquer mudanças institucionais.
Por fim, a ideia de que o povo é titular da soberania não é nada mais que um instrumento de estabilização social e manobra política. Resta ao povo o ideário mantenedor da ordem constitucional, de manutenção velada e controlada do “status quo” dominantes. Concluir-se, com isso, que a assembleia constituinte pode ser criada em qualquer tempo e não só em período de insatisfação popular, basta que o líder supremo do Estado faça o jogo político das elites.

Referências Bibliográficas

AI-1 (1964). Preâmbulo. AI-2 (1965). Preâmbulo.
Alexandre COSTA. O Poder Constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Revista Teoria & Sociedade. 30p.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: D.O. 5 de outubro de 1988.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. p.68.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Companhia das letras/Peguin, 2011.
Thomas HOBBES (1651). Leviatã. Cap. XVIII, XIX e Cap. XXVI.