Há centenas de anos é discutido o equilíbrio e a tensão entre a conservação da ordem natural e o estabelecimento de governos centralizados, em outras palavras, da ordem política, e os pesos e desdobramentos diversos existentes em cada cultura. Notadamente na cultura chinesa, as obrigações impostas pela tradição (Li), possuíam um papel central no pensamento político-social, prevalecendo ao Fa (obrigações impostas pelo governante). A princípio, a ideia de Li remetia ao comportamento que era exigido e esperado de cada indivíduo dentro da considerada ordem natural das coisas. Através desse comportamento, os indivíduos deveriam buscar um alinhamento aos princípios naturais, sendo esse um comportamento interior à própria conduta do indivíduo, não devendo ser imposto por um governante. Já as regras impostas pelos governantes (Fa), seguindo a linha de raciocínio, deveriam possuir caráter repressivo, para que fosse preservada a ordem natural das coisas, bem como a ordem pública. Os que falhavam em agir conforme a Li sofriam punições (COSTA, Alexandre. 2020)

Sendo assim, agindo de acordo com a ordem natural, tudo seria governado. Ao percorrer o caminho natural (Tao) por meio da virtude de se vivenciar esse caminho de forma pura (a mais pura possível), chamado Te, todos os indivíduos teriam o básico essencial e não se desviariam do Tao (TSE, Lao). Confúcio defendia a prevalência do Li e a desconfiança em relação ao Fa. Isso porque considerava o estado de direito prejudicial. Em sua visão, se as pessoas são guiadas por leis e guiadas pela punição, elas tentarão evitar a punição, mas, com isso, perderão o senso de vergonha. No entanto, se as pessoas forem guiadas pela virtude, elas preservarão seu senso de vergonha e se tornarão pessoas boas.  Dessa forma, novas obrigações impostas pelo governante eram tidas como um presságio de que o governo estava prestes a ruir. Essa prevalência do Li sobre o Fa sofreu questionamentos ao longo da formação do direito chinês, principalmente na contemporaneidade.

Para Weng Li, são 3 as escolas filosóficas que formam os pilares do direito chinês contemporâneo: (i) o Taoísmo; (ii) o Confucionismo; e (iii) o Legalismo. Inicialmente, o Taoísmo é guiado pelo princípio fundamental do Tao (o Caminho), segundo o qual se os indivíduos o seguirem, sem interferências arbitrárias, tudo correrá bem, ou seja, a inação ou inércia o levarão a seguir o caminho. Já o Confucionismo, por sua vez, defende o contrário do Taoísmo, rejeitando a inatividade em prol de uma ordem social mais ativa e rígida, regulada pelas leis naturais (Li) e tendo o governante um caráter repressivo em face daqueles que violam essa ordem natural (Fa) (LI, Weng). Por fim, os Legalistas argumentam que a ordem social deveria ser estritamente governada por meio do direito positivo, diferente da ordem natural defendida por Confúcio, que é essencialmente hierarquizada na sociedade.  Para os legalistas, a lei não favorece a ninguém por ser igualitária e não deixa de punir nem os mais poderosos. Por isso, a lei deve ser utilizada como forma de manutenção de uma ordem justa e igualitária por meio da punição e da recompensa. Resumidamente, os Legalistas rejeitavam o Confucionismo por entenderem que a ordem natural (Li) não se aplicava aos homens comuns e as leis penais não se aplicavam aos nobres. Além disso, rejeitavam o princípio da inatividade do Taoísmo, defendendo que a ordem social não poderia se organizar espontaneamente (LI, Weng).

Os chineses adotaram a filosofia Confucionista de ordem natural baseada na Li  por mais de dois mil anos, até a Revolução Chinesa de 1911, que acabou com o sistema monárquico, fazendo com que Confúcio deixasse de ser unânime. Shaohua Hu, ao enfrentar desafios sem precedentes do Ocidente, afirma que os confucionistas inicialmente rejeitaram o conhecimento moderno como estrangeiro e frívolo. Posteriormente, alguns afirmaram que a própria ciência e tecnologia da China foram perdidas durante a queima de livros realizada sob o primeiro imperador chinês, Qin Shi Huang (259-210 aC). Passada a relutância inicial em aceitar as percepções ocidentais, os confucionistas aderiram a uma máxima nova e mais benevolente: aprendizado chinês para os princípios fundamentais e aprendizado ocidental para aplicação prática. Quando da derrota da China pelo Japão em 1895, a elite confucionista percebeu a importância, na verdade a urgência, de estudar as instituições jurídicas e políticas ocidentais. A Guerra Russo-Japonesa de 1904-05 esclareceu a necessidade de afastar as tradições confucionistas para que a China sobreviva em um mundo imperialista” (HU, Shaohua. 2010). O Confucionismo perdeu grande parte de sua influência após 1911, ao passo que a China caminhava para a modernização e, consequentemente, caminhava para uma mudança de regime. Esse movimento se intensificou na era maoísta, que culminou na Revolução Cultural entre 1966 e 1976. Para os maoístas, o confucionismo era uma ideologia da classe exploradora e, sendo assim, a noção de harmonia social e ordem natural defendida por Confúcio contradizia os princípios marxistas sobre a luta de classes.

Com o governo de Deng Xiaoping, mesmo após décadas de declínio, o Confucionismo voltou a ganhar influência. Isso se deu pelas reformas do governante que acabaram por minar a ideologia comunista, mudando o sistema socioeconômico e aumentando o status internacional da China. Como consequência, houvei o ressurgimento do Confucionismo. A partir disso, por mais que o Confucionismo ainda possui um papel importante no direito contemporâneo chinês, mesmo que tenha tido altos e baixos nos últimos séculos - frisando-se que houveram momentos mais mais baixos do que altos. Fato é que a prevalência da Li sobre o Fa não é extrema como a defendida por Confúcio. Ademais, os Legalistas ganharam mais espaço nas últimas décadas com o estabelecimento de um direito positivo chinês mais forte. Entretanto, ainda se fala muito em um “constitucionalismo sem constituição”, devido a importância de aspectos culturais e sociais protagonistas e que não foram positivados no texto constitucional chinês (SHIGONG, Jiang. 2010). Por essa razão, alguns dos valores do Confucionismo ainda são extremamente fortes na contemporaneidade chinesa, como, por exemplo, o compromisso com a educação e o aprendizado, que é fundamental para as aspirações chinesas e ainda possui caráter de evidência nas famílias chinesas residentes na China e no exterior. Depreende-se, também, que há valores confucionistas que são prejudiciais à ordem política e social atual, como a ênfase exagerada na piedade filia, pelo respeito integral e incondicional aos pais e antepassados, que promoveu a lealdade à autoridade e impediu a liberdade individual, que acabou por contribuir para uma longa tradição de corrupção entre funcionários chineses. Ainda hoje, segundo Shaohua Hu, o nepotismo causa grandes problemas no governo e na política chinesa. Há, também, uso por parte do Governo de valores e crenças Confucionistas como forma de legitimação de atos que possam gerar instabilidade social, como feito por Deng Xiaoping ao justificar as reformas econômicas e ofuscar o materialismo excessivo vivido na China em decorrência da rápida expansão econômica.

Logo, o Confucionismo exerce ainda muita influência sobre o direito chinês contemporâneo, assim como na política. Às vezes de acordo com os valores confucionistas, às vezes de forma a legitimar atos governamentais polêmicos, como feito mais recentemente por Deng Xiaoping e Xi Jinping (SCHOTMER, Paul. 2019 e SCHUMAN, Michael, 2014). Grande parte da doutrina confucionista representa a sabedoria antiga que resistiu ao teste do tempo e é valiosa. Consequentemente, a prevalência da Li sobre a Fa foi ofuscada pela ascensão do Legalismo e pela positivação do direito chinês, de forma que o direito positivo, na contemporaneidade, possui maior protagonismo prático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos, 2020.

TSE, Lao. Tao Te Ching. Tradução: Wu Jyn Cherng. Cap. 3.

LI, Weng. Philosophical influences on contemporary chinese law. Parte II.

CHEN, Jianfu. Chinese Law: Context and Transformation. Legal Culture and Heritage (pp. 8-23).

SHIGONG, Jiang. Written and unwritten Constitutions: A new approach to the study of Constitutional Government in China. Modern China, v. 36, n. 1, p. 12-46, 2010.

HU, Shaohua. Confucianism and Contemporary Chinese Politics. Modern China, v. 36, n. 1, p. 12-46, 2010.

SCOTCHMER, Paul. Is China headed for a clash of cultures as Xi Jinping fuses Confucius and Marx? South China Magazine, 2019.

SCHUMAN, Michael. The Chinese President’s Love Affair With Confucius Could Backfire on Him. Time Magazine. 2014.