Para Clastres a existência de um poder político centralizado com a divisão da sociedade em governantes e governados não é uma decorrência natural das sociedades humanas. Nas sociedades sem Estado havia um controle social que impedia a emergência do prestígio individual para um prestígio de grupo dominante que pudesse ser transmitido entre gerações.

A existência de um poder político centralizado capaz de impor regras dirigidas a toda a sociedade, ou pelo menos a todos os membros do grupo governado, é uma construção social que encontra sua validade em fundamentos construídos coletivamente. Como destaca Harari, as sociedades humanas são construídas com base em ordens imaginadas que dependem da crença coletiva em sua validade para subsistirem.

Se a existência de um sistema de regras centralizado não é inerente a natureza humana, mas a uma construção social, não há também regras naturais e não naturais, mas apenas fundamentos de aceitação social distintos para as regras. Esses fundamentos foram sendo construídos em diversas sociedades humanas, a partir das regras tradicionais, ou naturais, e das impostas pelos governantes, ou positivas.

A separação filosófica entre direito natural e direito positivo existia no pensamento político chinês clássico. O “li” constitui as regras tradicionais derivadas do confucionismo, representando o ideal de condução social harmônica pelo governo. O “fa” consubstancia as normas de caráter dirigente estatal no sentido de impor a ordem pública. A dinâmica de construção do direito naquela sociedade era compreendida a partir das tensões entre o direito natural compreendido como inerente a conduta humana e a regulação estatal consubstanciada no poder regulatório governamental.

A perspectiva grega sobre o direito separa o direito tradicional, regras postas tradicionalmente e socialmente aceitas, do direito natural, baseado na racionalidade. Esse último seria embasado em uma reflexão sobre regras morais constantes que deveriam perdurar e ser capazes de gerar obrigações a todos, buscando ir além da realidade posta e realizar uma análise metafísica sobre a moral coletiva.

Para os gregos o direito natural não se confunde com o direito tradicional, transcendendo essa análise para uma reflexão racional que busca compreender e analisar os valores socialmente relevantes. O sistema tradicional seria formado por regras que poderiam ou não ser compatíveis com a racionalidade jurídica extraída da natureza humana.

A ideia grega de que existem padrões naturais e que esses padrões não necessariamente coincidem com os padrões tradicionais nos legou uma análise filosófica das regras impostas pela tradição, rompendo com a ideia, existente no pensamento político chinês e hindu, de que o governo justo é aquele que segue as tradições. O que permitiu a construção de um ideal jurídico que contraste simultaneamente com a tradição e com o poder estatal.

A partir do conceito de direito natural enquanto análise filosófica da natureza humana é possível criticar as normas alinhadas com a tradição e com o sistema legal vigente. A escravidão brasileira no século XIX pode ser um exemplo de regra que se alinhava com a tradição e com o direito positivo, visto que ocorreu desde os primórdios da ocupação portuguesa e era uma das bases do modelo econômico, sendo parte do sistema legal quando dos movimentos abolicionistas. As bases jurídicas para a crítica ao modelo escravocrata naquele século necessitaram da busca racional de valores permanentes com base em uma naturalidade que fosse simultaneamente distinta da tradicionalidade e da legalidade.

A compreensão do direito como um processo nos permite entender os conceitos de jusnaturalismo e juspositivismo como construções dialéticas validadoras do sistema normativo. Esse sistema é fruto dos embates políticos, sendo socialmente construído e simultaneamente regulando as relações sociais, portanto necessita de constante afirmação social para além do mero exercício do poder estatal.

A validação social do sistema normativo consubstanciado nas perspectivas de filosofia do direito pode se basear na tradição, no poder legal estatal e, a partir da filosofia grega, em uma naturalidade racional. Essa inovação permitiu um rompimento com a tradição apartado do exercício do poder estatal, possibilitando uma fundamentação jurídica amplificadora dos movimentos civis paraestatais. Essa ampliação pode ter propiciado um avanço mais rápido nos direitos humanos ao permitir a grupos sociais uma busca de validade com base em uma reflexão desalinhada com o sistema legal e social posto. Amplificando a possibilidade de busca política de reforma do sistema jurídico com base em mobilizações dos governados.

‌‌Referências Bibliográficas

Costa, Alexandre. Ordem natural e autoridade política. Arcos, 2021.

Costa, Alexandre. Da 'Sociedade sem governo' à 'Sociedade Contra o Estado'. Arcos, 2020.

Costa, Alexandre. Flannery & Marcus: as origens da desigualdade política. Arcos, 2020.

Costa, Alexandre. A ordem imaginada. Arcos, 2020.

Harari, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. LPM, 2015.

Acemoglu, Daro; Robinson, James. Por que as nações fracassam. Elsevier, 2012.