Autores: Ana Carolina Callai da Silva, Carlos Henrique da Silva Figueredo, Daniel Oliveira Simões, Diego Rodrigues de Morais, Emerson Fonseca Fraga, Rossana José da Silva e Tatianne Pereira da Silva.

Há a ideia de que a família emana de uma ordem natural, haja vista que ela é considerada como o primeiro agente de socialização do ser humano. Conforme Aristóteles (1982, I, 2, 1253 a 2 e III, 6, 1278 b, 20), o homem é, por natureza, um animal político. Antes de tudo, é a família em que encontra a sua socialização e a garantia da manutenção da vida em seus aspectos financeiros e educativos.

Neste ponto, entra também a ideia de que existe uma ordem natural para a instituição de um governo. A hipótese de um contrato social, ou seja, um acordo entre os membros de uma sociedade em que todos reconhecem a autoridade da entidade única do Estado, sendo isso, portanto, a entidade reguladora que certos garantem aspectos de nossa vida social.

Uma das ideias centrais da contradição entre persistência da tradição e da evolução do conceito de família, é qual conceito está sendo sustentado ao passar dos anos e de onde ele emana. Acontece que não existe nada de ordem natural, mas como vai dizer Yuval Harari (2012 apud COSTA, 2020), existe uma ordem imaginária, criada a partir da capacidade de nossa linguagem em falar sobre coisas que não existem, como, por exemplo, lendas, mitos, deuses e religiões.

Então, através da análise do cristianismo no Brasil – pilar principal dos argumentos tradicionais – é possível justificar a força da tradição sobre o conceito de família. Se perguntarmos, por exemplo, o que constitui e sustenta uma família, a resposta de muitos será: um pai, uma mãe e os filhos - o conceito de família tradicional. Mas quem disse, constituiu e sustentou isso? Deus, deus. Em uma perspectiva sacralizada, a família é uma invenção divina, e não do ser humano; portanto, permanente e imutável. Então, quem será contra Deus? Quem tem a coragem de tentar ganhar a vida na terra e perder a vida no reino dos céus? (BÍBLIA 2008, Mateus 16,25).

Portanto, existe uma grande influência da religião na ordem natural das coisas e vem se sustentando com o passar dos anos. Tal influência é claramente perceptível a partir das discussões quanto ao reconhecimento de novas formas de entidades familiares. A seguir será traçado a evolução do conceito de família e suas implicações.

No Brasil, com o Código Civil de 1916, houve a instituição do casamento e o impedimento de sua dissolução. Portanto, a família era constituída unicamente pelo matrimônio e suas principais características eram: ser matrimonial, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual.

No ano de 1962, com o Estatuto da Mulher Casada (L4121), houve um grande avanço, visto que a mulher passou a ser entendida como plenamente capaz de direitos civis e foi permitido que ela administrasse os bens adquiridos com o fruto do seu trabalho, ou seja, quando casado, não precisava mais entregar o seu patrimônio ao marido (comum era o entendimento que o homem estava fazendo um favor com a mulher).

A própria lei do divórcio, instituída oficialmente em 1977, foi alvo de muitas críticas, principalmente por parte da Igreja Católica e dos setores conservadores da sociedade, pois defendiam que aquilo que Deus uniu o homem não se separa, sendo o casamento indissolúvel, que acabou apenas com a morte (BÍBLIA 2008, Mateus 19,6). Houve um grande embate, onde de um lado alguns protestaram dizendo que se tratam da "destruição da família brasileira", enquanto do outro defendiam que era a oportunidade de regularizar as famílias, visto que, antes, os desquitados não podiam casar novamente, mantendo uma relação sem respaldo legal e, se os filhos, estes eram considerados ilegítimos, visto que foram gerados em relacionamentos extraconjugais. Sem contar ainda os inúmeros preconceitos sofridos principalmente pelas mulheres.

A Constituição de 1988 trouxe um grande avanço, pois instaurou a igualdade entre homem e mulher. Houve o reconhecimento de outras entidades familiares e uma grande extensão da proteção para as famílias advindas da união estável, família monoparental e trouxe certa igualdade para os filhos.

O conflito entre tradição e o conceito de família voltou a reascender no ano de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ADI 4277 e do ADPF 132, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar com iguais direitos e deveres de uniões estáveis. Isso porque, mais uma vez, surgiu-se a teoria da “crise da família tradicional”. Três são os principais posicionamentos conservadores: I - a família é instituída por Deus, que apresenta seu fundamento desde a criação do mundo, como está descrito na Bíblia, no livro de Gênesis onde foi criado o homem (Adão) e a mulher (Eva) (BÍBLIA 2008, Gênesis 1,27), não o homem e o homem ou a mulher e a mulher; II - a finalidade principal da relação é a procriação (BÍBLIA 2008, Gênesis 1,28); III – A constituição é muito clara em dizer que a união é entre homem e mulher. Do outro lado, defendeu-se que desde a Revolução Industrial, quando se abriu espaço para a mulher no mercado de trabalho, o relacionamento deixou-se de ser algo hierarquizado, advindo de proteção e tornou-se algo baseado na afeição. Assim sendo, se o que sustenta os relacionamentos é a união socioafetiva, não haveria problema algum em duas pessoas, ainda que do mesmo sexo, estarem juntas por existir afeto entre elas.

O mesmo ocorre quanto ao reconhecimento da família paralela e poliafetiva. A primeira ocorre quando há a constituição de uma família paralelamente a outra; a segunda se trata de uma união conjugal formada por mais de duas pessoas convivendo em interação e reciprocidade afetiva entre si. O principal argumento conservador e cristão é a invocação do princípio monogâmico e dos deveres de lealdade e fidelidade; enquanto do outro lado, defende-se a busca por respeitar e regulamentar o afeto entre as pessoas, de forma a reconhecer direitos.

O grande conflito por trás disso tudo é a forma como é regulamentado pelo Estado. Se partirmos da ideia de que o Estado é responsável por regulamentar a ordem natural – que para muitos vêm de Deus -, a partir do momento em que ele começa a contradizer a ordem, ele perde a legitimidade e vira alvo de críticas, principalmente do setor conservador. Surge, ainda, o embate de até onde deve o Estado intervir na relação privada das pessoas, de modo a não impor um modo de vivência, mas de garantir que a vivência escolhida seja respeitada.

Diante da evolução do direito das famílias no Brasil, percebemos que grande parte da tradição familiar se sustenta em algo criado por nossa linguagem através da fala sobre coisas que não existem (HARARI 2012, apud COSTA, 2020), como é o caso de Deus; ou que talvez exista, sendo um erro não da palavra de Deus, mas sim dos intérpretes ao não captarem adequadamente o sentido do texto bíblico, conforme diz Galileu Galilei (1988, p. 48).

O problema de tudo isso é que a ordem imaginada que é criada preexiste ao nascimento das pessoas, de forma que já nasce com um papel social e uma explicação para as coisas (HARARI 2012, apud COSTA, 2020). O fato de não aceitarmos, contradermos e questioná-los, é o que muda e permite evoluções e conquistas; de fato a dizer que o direito ele não é, mas se faz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia Católica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de José Simão. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008.

BRASIL Código Civil. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916. BRASIL. Código Civil.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

COSTA, Alexandre. Yuvial Harari e a Ordem Imaginada. Disponível em:<Yuval Harari e a Ordem Imaginada (arcos.org.br)>. Acesso em 05 de março de 2021.

Dias, MariaBerenice. Manual de direito das famílias / Maria Berenice Dias. – 10 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos tribunais, 2015.

GALILEI, Galileu. Ciência e fé. Rio de Janeiro: Nova Stella Editorial, 1988.