Autores: Jezebel de Melo Eiras, Nikolly Milani Simões Silva e Roberto Augusto Brito Alves.
Pensar a sociedade em um contexto contemporâneo, sem dúvidas, é um exercício repleto de desafios dado o grau de análise que se impõe a quem decide se aventurar por este caminho. No entanto, afirmar essa complexidade não é de nenhuma forma um desestímulo ao objeto do estudo, mas sim uma reafirmação da necessidade de pensar o novo.
Pensar a sociedade em um contexto contemporâneo implica na constatação de um mundo de constantes transformações, rupturas, continuidades. O grande dilema da contemporaneidade também diz respeito a compreender se trata de entender se a busca é por algo inédito ou por um resgate de valores passados.
Para chegar a este fio de tensão, é interessante a abordagem acerca da filosofia moderna e, sobretudo, os comentários tecidos pelo professor Miroslav Milovic em sua Obra “Comunidade da Diferença”. Se por um lado a filosofia moderna através do pensamento de Kant e Descartes inicia com uma afirmação da subjetividade, o que implica a aceitação da diferença entre sujeito e objeto, o pensamento trazido por Hegel inaugura uma nova dimensão em razão da afirmação da identidade entre sujeito e objeto. Assim, a história passa a ser o palco através do qual a afirmação geral caminha com a superação do particular.
Neste sentido, temos a dominação como uma espécie que se afirma na história. Todo ideal de um novo racionalismo e subjetivismo moderno aliado a uma pretensa globalização acaba por acometer dominações e colonizações justificadas por esse racionalismo europeu bastante delimitado. Basta trazer como exemplo a França e a situação do Haiti. Enquanto a França levantava gritos de liberdade e igualdade pautados por um racionalismo moderno, ao cruzar o atlântico a realidade é de uma França que mantinha o Haiti como sua colônia, onde o ideal de igualdade em que “todos os homens nascem livres” permanece voltado ao homem branco europeu. Nesse sentido, cabe o diálogo com o texto Constitucionalismo Negro e o Atlântico Negro: A experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana, de Marcos Queiroz. In verbis:
"Influenciada pela Revolução Francesa, que desestabilizou as relações institucionais e hierárquicas na colônia, mas tendo também a sua dinâmica revolucionária específica, em poucos anos os eventos em São Domingos ricochetearam e fizeram o poder legislativo francês garantir os direitos políticos dos homens livres de cor (1792) e, posteriormente, abolir a escravidão em todas as suas colônias (1794). Os jacobinos negros impuseram derrotas aos potentes exércitos espanhol (1795) e inglês (1798), assim como, em seus derradeiros momentos, a Revolução Haitiana expulsaria as tropas napoleônicas da ilha quando começavam a retornar os boatos de restauração da escravidão (1803). Em 1805, a independência seria declarada sob o nome de Haiti, em uma forma de relembrar os primeiros habitantes de São Domingos e de afirmar ao mundo sua oposição à herança colonial-escravocrata do Ocidente."
O movimento revolucionário não apenas evidenciou a faceta contraditória do liberalismo, como também escancarou a ideia de que a que preço custa a dominação, subalternação e colonização de um povo em nome da racionalidade moderna. É óbvio que através deste movimento revolucionário uma nova perspectiva em face a esse ideal racionalista iria surgir. E neste primeiro momento surgiu através da Revolução Haitiana e uma nova dimensão de liberdade. Vejamos:
"No período pós-revolução, o Haiti, por meio de suas constituições, expressaria uma modernidade heterogênea diante de um mundo no qual o colonialismo, a escravidão e a "desigualdade entre as raças" eram a norma. Nestes documentos, era possível ver os dilemas, conflitos, interesses e tendências políticas da época, nos quais distinções, tão comuns aos discursos modernos, emergiam no calor dos eventos: universalismo em defesa da igualdade racial contra particularismo de direitos decorrentes de certas especificidades oriundas do colonialismo; liberdade individual versus poder do Estado sobre os indivíduos como consequência das necessidades econômicas; e ética internacionalista de combate a escravidão em oposição às restrições nacionalistas para se proteger do imperialismo."
Neste sentido, o professor Miroslav em sua obra, embora de modo rápido, consegue perpassar brilhantemente pelas ideias do racionalismo moderno, que recai na hipocrisia em face aos colonizados. Mais do que isso, o filósofo destrincha a perspectiva de identidade e diferença pela ótica de Hegel, Marx, Husserl e Habermas.
Neste sentido, importa mais ao texto destacar as contribuições do filósofo no que tange as suas reflexões filosóficas e histórico-políticas a fim de dialogar não apenas o moderno, mas também o contemporâneo. Para isso, o Encontro em Memória ao Pensamento do Professor Miroslav Milovic, feito durante a semana universitária da Universidade de Brasília, será um importante fio condutor.
No contexto de uma comunidade de diferentes, como contribuição política o Professor Miroslav traz uma importante reflexão acerca da modernidade e a (des)politização. Isso se dá porque a modernidade, em um dos seus efeitos, busca a despolitização e, no local do outro, fica apenas a ideia de um bem metafísico.
Em uma perspectiva de diferença, a ideia metafísica de um bem pode levar, na verdade a exclusão. A crença em uma metafísica plena que contempla o bem, dentro de uma comunidade de diferentes, dificilmente abarcará a multiplicidade que é encontrada dentro deste panorama social.
Faz parte desse mundo contemporâneo a ideia da diferença e se torna cada vez mais comum a luta pelo reconhecimento de grupos postos à margem. Neste sentido, a política se torna um campo fértil de transformações. No entanto, não é possível perder de vista que se trata de uma intensa disputa de narrativas. Pensar dentro deste panorama nos leva ao desafio da filosofia política e o direito.
No pensamento de Miroslav, destaca-se esse movimento de pensar o outro, pois a partir dessa perspectiva, chega-se à conclusão que, em algum momento, todo indivíduo assume o lugar do outro. Esse exercício é fundamental para a construção de uma comunidade que visa a igualdade, sem que haja o abandono de suas diferenças.
A modernidade marca este momento de (re)afirmação de direitos e uma longa disputa de narrativas que atravessam o campo político e filosófico, de modo que não deveria ser diferente. Pensar sobre a sociedade moderna é compreender não apenas o seu espaço no mundo, mas também o espaço do outro. Talvez essa dimensão seja a de maior dificuldade nos dias atuais.
Miroslav contribui bastante nesse campo de disputa ao propor não apenas reflexões teóricas, mas dedicar-se a materialização das transformações almejadas. Sem dúvidas, a comunidade onde a diferença coexiste e dela se produz o diálogo é um modo a ser perseguido. Nos últimos anos, com a ascensão de movimentos separatistas, ultranacionalistas, movimentos conservadores, dentre outros, tem colocado em xeque a dimensão de uma comunidade plural. Esses movimentos indubitavelmente caminham na direção contrária do referencial teórico e prático do professor Miroslav, que via e buscava no mundo este local de acolhimento, de pluralidade e acima de tudo que o senso coletivo contribuísse para uma sociedade firmada na igualdade e respeito.
Neste aspecto, Miroslav enquanto filósofo se apropria, no melhor sentido da palavra, da brilhante décima primeira tese presente nas Teses Sobre Feuerbach, de Karl Marx, pois compreendeu que ao papel do filósofo, não cabe apenas a interpretação do mundo, mas a mobilização para a sua transformação.
Com a partida de Miroslav, o campo da filosofia do direito e filosofia política perde um dos seus grandes nomes, mas perde-se também uma grande pessoa com o senso de humanidade. Como dito no seminário em sua homenagem, enquanto o seu pensamento permanecer, não há motivos para trata-lo no pretérito.
A comunidade de diferenças deve ser marcada pela transformação e isso implica em um passo além da interpretação do mundo contemporâneo. Neste sentido, ao professor Miroslav incumbiu a potência de interpretação e transformação do mundo. Isso se dá no campo das ideias. Assim, a comunidade de diferenças é feita por esse grande fluxo de ideias que traz a pluralidade, mas que não deve causar a exclusão, pois é o campo da política ocupado, jamais esvaziado por uma noção de bem metafísico, de onde as verdadeiras transformações vem a surgir.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Teses sobre Feuerbach. Marxists. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm. Acesso em: 08/10/2021.
MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. Disponível em: https://b-ok.lat/book/16799415/f4efae. Acesso em 07/10/2021.
QUEIROZ, Marcos. Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro. A experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.