Autores: Jezebel de Melo Eiras, Nikolly Milani Simões Silva e Roberto Augusto Brito Alves.

O século XX é recheado por fatos sociopolíticos que influenciam o pensamento contemporâneo. As duas grandes guerras causaram no mundo uma enorme estranheza e, consequentemente, profundas transformações políticas, econômicas e também sociais.

O Estado Liberal que nasce com as revoluções do século XVIII, em suma com a revolução francesa e revolução americana, trouxe um novo paradigma para o contexto social: o liberalismo político. Através dessas influências, o mundo passou por um processo político voltado as liberdades individuais.

Neste primeiro momento, a abordagem irá se dar em um diálogo com a conceituação dos paradigmas propostos pelo filósofo Jürgen Habermas e o contexto econômico que acompanha o modelo de governo liberal, social e a construção sociopolítica pós queda do muro de Berlim. Em face da teoria jurídica, este primeiro paradigma do estado liberal traz à tona o indivíduo, o que combina perfeitamente com as aspirações e reivindicações de liberdades em um campo cada vez mais privado.

Deste modo, o liberalismo e a modernidade surgem em um momento de rompimento com aquilo que se assentava a pré-modernidade: havia a tradição, herdada e passada de pais para filhos, aqui podendo ser destacado o sistema estamental, marcado pela baixa ou até mesmo nula mobilidade social, de modo que a posição do ser no mundo era estabelecida, por exemplo, pela origem de seu nascimento.

Outro assento rompido na modernidade e com o liberalismo, pelo menos em um primeiro momento, diz respeito a religião. Como é cediço, a idade média é marcada pela forte presença entre igreja e estado. No entanto, a modernidade trabalha com a idade de secularização e laicidade que buscou efetivar a separação entre igreja e estado.

Por fim, a própria noção de autoridade. Muito embora seja bastante questionável, há uma acentuação em relação a noção de autoridade vista em momento anterior ao liberalismo. Até mesmo os países em que se manteve as monarquias, a figura do déspota foi, ano após ano, dando lugar a uma nova conformação política. Com este ideal voltado ao liberalismo político, foi visto a seta valorativa voltada ao privado.

Cabe destacar que por liberalismo compreende-se a esfera política e inevitavelmente atinge a seara econômica. Deste modo, a economia desta época era voltada a uma noção liberal no sentido mais radical da palavra. Aqui, me aproprio de uma das aulas brilhantemente ministrada pelo professor Menelick que descreve o paradigma liberal de modo sintético: no Estado Liberal o indivíduo era livre, inclusive, para morrer de fome.

O Estado Social vem em momento posterior ao Estado Liberal e decorre do próprio exaurimento deste. Este percurso importa, pois, neste momento histórico, destaca-se a Constituição de Alemã de Weimar, promulgada em 11 de agosto de 1919. Ela marca a decadência do Estado Liberal e a ascensão do Estado Social com a consolidação dos direitos sociais e se anteriormente a seta valorativa estava voltada ao privado, neste momento há uma grande prevalência do público como o responsável pela redução das desigualdades causadas pelo liberalismo.

No entanto, a Constituição alemã se afigura em um momento delicado da história, pois marca a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial. Havia um enorme sentimento de vergonha somado a um país economicamente devastado após a derrota. É neste contexto histórico que se localiza Carl Schmitt, ferrenho oposicionista a Constituição de Weimar.

Ao longo de sua vida, Schmitt demonstrou ser um grande crítico da democracia representativa, por vê-la, inclusive, como uma contradição em termos, uma vez que a mera representação não possui uma participação efetiva da população. Neste sentido, Roberto Bueno, em seu texto “Carl Schmitt e a Crítica à Democracia Liberal”, relembra Chantal Mouffe acerca do pensamento schmittiano sobre a representação que, para ele, apresenta-se como o aspecto não democrático deste tipo de democracia.

Antes de avançar neste tópico, importa destacar um momento crucial para compreender os próprios limites contemporâneos da democracia liberal e, para isso, importa destacar que o estado social não se confunde com o Estado Socialista, inclusive chega a ser um contraponto ao Socialismo Real presente na União Soviética e nos blocos socialistas durante o século XX.

De modo basilar, a primeira diferença que se denota diz respeito a superestrutura e infraestrutura, definições-chaves para a compreensão do pensamento de Karl Marx. Tal estrutura remonta ao célebre Manifesto do Partido Comunista[1] que, em paralelo com o 18 Brumário de Luís Bonaparte[2], traz um excelente panorama deste aspecto teórico. Vejamos, primeiramente, o 18 Brumário de Luís Bonaparte:

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada (Marx, 1852).

Abaixo, parte transcrita do Manifesto.

A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito (Marx, 1848).

Com estas razões, em apertada síntese, na infraestrutura está presente as forças de produção. O Estado Social não buscou alterá-la, tendo em vista o seu caráter reformista, mas ainda de essência capitalista. Por outro lado, o estado socialista é marcado pela ruptura com o modo de produção vigente.

Todo este percurso torna-se ainda mais acentuado apenas no contexto pós segunda guerra mundial. As mortes em massa chocaram o mundo e trouxe um enorme desafio para a democracia liberal, tendo em vista a fragmentação entre o bloco capitalista e socialista durante toda a Guerra Fria.

Resgatando o pensamento de Schmitt, cabe destacar que os textos em questão trazidos não abordam a sua perspectiva em face ao comunismo, mas concentra-se em uma análise acerca da democracia e a sua teologia política. Deste modo, as reflexões trazidas servem de suporte para a compreensão histórica pelo qual a democracia liberal perpassa até os dias atuais.

Neste sentido, o contexto da segunda guerra mundial trouxe uma visão negativa a Carl Schmitt em razão da sua teoria e o alinhamento ao Terceiro Reich alemão. O alinhamento está bastante presente na teologia política de Schmitt e, tendo em vista o panorama de uma Alemanha destruída economicamente e também em seu orgulho nacional, o terreno se tornou fértil para a ascensão da figura de Hitler. Isso se dá, pois, um dos contrapontos entre Schmitt e Kelsen, está marcado em sua noção de democracia.

Schmitt defende uma teologia política calcada na homogeneidade e de uma concepção de verdade que Roberto Bueno trabalha de modo excelente nos seus escritos acerca da Representação em Carl Schmitt: O catolicismo romano e o caso da política. Junto a esta concepção é possível traçar um paralelo com o manuscrito de Schmitt não publicado, doravante denominado “Catolicismo Romano e Forma Política”, traduzida pelo professor Menelick Carvalho Netto, no sentido de trazer a concepção de que Schmitt se dedicara e propunha uma imposição de um conjunto de valores intrinsecamente ligados a uma visão teológico-política. Tal concepção não apenas dialoga, como diz muito respeito a sua visão acerca da democracia representativa. E de que maneira dialogam o conceito político e teológico de Schmitt?

Pois bem, o autor, em um primeiro momento aduz que a igreja romana, chama-se católica, que localiza-se no latim tardio como catholicus e indica uma estrutura universal sobre o grego “katholikós”, e uma vez universal, tinha como papel trazer estas diferenças existentes na sociedade para dentro de si. Assim, o autor definia que a Igreja Católica era um “Complexio Oppositorum”. Em analogia a sua teoria política-teológica, o concílio é visto como sendo responsável por lidar com as diferenças e no topo está o líder, que possui o mérito de ser o menor de todos, servindo a toda a igreja.

Assim, para Schmitt, essa mesma situação religiosa pode ser transposta para a política. Na religião, através do concílio, a voz que converge e apazigua a situação surge do Papa. Na teologia política, também se fazia necessário a voz que converge, apazigua e constrói a unidade: o führer. Deste modo, Schmitt vê a democracia como um grande bloco convergente, homogêneo, unitário e cabe ao líder realizar essa tarefa. Portanto, a autoridade deve conciliar os opostos, mas esse concílio vem através da autoridade. Assim, o líder representa o povo por carregar este espírito do povo, criando a identificação entre governante e governados. Apenas neste meio a democracia se manifesta em sua teoria. Kelsen, por sua vez, não fundamenta-se em uma verdade, uma vez que a heterogeneidade estaria ligada a negação de uma verdade fundamentada, a menos que seja por imposição.

Eis que adentramos no panorama mais atual acerca da democracia e o liberalismo. Com a queda do Muro e o fim da União Soviética, a democracia liberal aparentava ser o cenário ideal e para o qual os países iriam se direcionar. Estaríamos, portanto, no fim da história já teorizado por Hegel e trazido pós queda do muro por Fukuyama. Havia uma expectativa de democratização e difusão do estado democrático de direito de matriz liberal.

No entanto, as radicais rupturas, transformações e crises nas vertentes sociais, política e econômica reacenderam os debates sobre o limite da democracia liberal e, sobretudo, acerca do sistema representativo. É neste sentido que Chantal Mouffe brilhantemente traz suas contribuições através de um pensamento com e contra Carl Schmitt em face do dilema atual da democracia liberal, colocando em xeque as correntes acerca da razão da crise, uma vez que muito se atribui ao populismo, enquanto outra vertente trabalha a ideia de que o problema das instituições decorre do próprio liberalismo.

Dentro desse panorama, há uma dicotomia cada vez mais beligerante entre os direitos individuais e a vontade popular, assim como a ideia de uma democracia sem direitos ou de direitos sem a democracia. Ora, para defensores da democracia liberal, a noção de direitos praticamente se confunde com o conceito do liberalismo. Isso se dá pois, em certa medida, é possível verificar países que adotam o liberalismo econômico, mas estrangulam o liberalismo político por meio de condutas autoritárias e cerceadoras de direitos.

O problema central diz respeito à qual é a resposta dada pela democracia liberal aos frequentes ataques a suas próprias instituições? No caso do Brasil, quais os limites da atuação que visa proteger a constituição e a democracia sem que incorra em inconstitucionalidade? Qual a postura diante de um presidente que manifestamente coloca-se de maneira antidemocrática contrário as instituições políticas, inclusive inflamando a população para o golpe de Estado?

Diante disso, é nítido que não se trata apenas do populismo, mas de um total descompasso entre os cidadãos e as instituições democráticas. O populismo apenas deflagra um sentimento de não-representatividade e desilusão democrática já existente. Seria o parlamento responsável pelas mudanças necessárias? Ou haveria um caminho de direitos fora da noção liberal? Sem dúvidas, não há respostas fáceis diante do tamanho do problema enfrentado, arriscaria dizer que se houvesse resposta, encapsularia e distribuía a todas as nações em crise.

Fato é que as críticas postas sobre a democracia representativa por Schmitt, assim como o diálogo de Mouffe e as contribuições de Bueno coloca o grande desafio de salvar a democracia (liberal) e qual seria o custo disso. A falta de representatividade dentro de uma lógica liberal de democracia somada ao neoliberalismo econômico resulta em uma nação de calcada na sub-inclusão e estratificação de cidadãos e subcidadãos.

Encarar a situação atual é entender que a democracia liberal falhou em seu papel de representar, seja em países de primeiro mundo, onde vemos uma potência mundial como os Estados Unidos cujo liberalismo político legitimou a segregação racial, até mesmo nos países denominados periféricos ou de terceiro mundo, onde o Constitucionalismo e os poderes não conseguem, por exemplo ao caso do Brasil, enfrentar as consequências de uma herança colonial que colocou pessoas negras e indígenas à margem de qualquer política indenizatória.

Há, inclusive que se discutir a quem a democracia liberal está sufocando, haja vista que cidadãos nascem e morrem sem experimentar os ideais liberais consagrados e tidos como universais. Além disso, como convencer cidadãos acerca de um modelo representativo em casas legislativas cada vez mais fragmentadas e ao mesmo tempo aglutinadas em torno de determinados interesses?

Ainda que a história demonstre o papel de Schmitt em face da consolidação do nazismo, é inevitável escapar de sua construção e crítica acerca dos limites da democracia, sem, embora, compactuar da mesma conclusão. A metamorfose que acompanha este processo do liberalismo pode rumar para a superação da atual crise ou superação da própria democracia liberal que prometeu uma pós-política e, neste espaço vazio que se tornou a vida pública, restou a crise de atores que não mais se identificam com os seus papéis.

Referências Bibliográficas

Bueno, Roberto (2012). Carl Schmitt e a crítica à democracia liberal. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 16, n. 24.

Bueno, Roberto. Democracia ou oligarquia? O controle invisível da política. Tempo soc. [online]. 2017, vol.29, n.1 [cited 2021-04-20], pp.305-325.

Miguel, Luis Felipe. A democracia e a crise da representação política: a accountability e seus impasses.

Bueno, Roberto. A representação em Carl Schmitt: O catolicismo romano e o caso da política. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 29, n. 47, p. 455-479, maio/ago. 2017.

Habermas, Jürgen. Apresentação. Em: Schmitt, Carl. O conceito do político. Z-Library.

Rodrigues, Theófilo. Bellato, Caíque. A Crise da Democracia Liberal no Início do Século XXI: Duas Abordagens da Teoria Política. Agenda Política. Revista de Discentes de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos Volume 9, Número 1, p. 253-279, janeiro-abril, 2021. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/592/334. Acesso em: 14 outubro, 2021.

Tosi, Giuseppe. A crise do liberalismo político e a ascensão do liberalismo econômico e do populismo autoritário. O caso do Brasil. OpenEdition Journals. Disponível em: https://journals.openedition.org/tp/827. Acesso em: 14 outubro, 2021.


[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.htm

[2] https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm