O ano é o de 2020, o mundo encontrava-se em uma homeostasia (equilíbrio interno) aparente na perspectiva de boa parte da população brasileira. Porém ocorria ao mesmo tempo conflitos religiosos no Oriente Médio, a fome na África, o capitalismo voraz na América do Norte, a desigualdade social e a corrupção no nosso país e no resto da América Latina.  Acostumados com essas mazelas por vários anos assumindo o papel de simples espectadores, assistimos a homeostasia da banalidade com uma postura passiva diante de tantas contradições.  Por meio da abstenção dos problemas sociais alheios, deixamos de lado o nosso senso crítico, a empatia e o respeito a vida para dar lugar ao egoísmo, a ganância e a frieza.

Convergindo a esse pensamento, Christophe Dejours nos ensina que “a exclusão e a adversidade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilização política contra a injustiça, derivam de uma dissociação estabelecida entre adversidade e injustiça, sob o efeito da banalização do mal no exercício de atos civis comuns por parte dos que não são vítimas da exclusão (ou não o são ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da população, agravando-lhes a adversidade.”

Nesse cenário, fomos apresentados ao SARS CoV2. Inicialmente, o vírus acometeu os mais abastardo, os turistas globais, em seguida, foi ganhando reverberação e acabou por atingir a população carente, os mais vulneráveis, os aflitos, até se tornar pouco criterioso e começar atingir a todos indistintamente. Era questão de tempo para perceber o grande potencial do vírus. Não demorou muito após a primeira notícia de infecção por Covid no Brasil para que logo em seguida houvesse o início do colapso dos sistemas de saúde, o enfraquecimento da economia e o aumento do desemprego.

A crise estava instalada e a homeostasia aparente não encontrava mais espaço nessa nova realidade.  De acomodados com os problemas sociais alheios, passamos a vivencia-los dentro de nossa casa. O “banalizar e abstrair” é substituído pela cobrança de medidas efetivas do Estado no combate ao Corona vírus.  O engajamento na procura de mudanças, antes esquecido diante dos problemas sociais de terceiros, apareceu no momento em que, de alguma forma, o vírus rompeu o equilíbrio da vida cotidiana dos brasileiros. Alguns brigando pelo ir e vim, outros brigando para ter o que comer, falência, desemprego, houve a ruptura da homeostasia da banalidade.

Em alusão ao mito da caverna de Platão, observamos que estávamos e ainda estamos condicionados a uma realidade da conveniência aonde só enxergarmos os fatos que não nos incomodam ou os distorcemos para simplesmente abster-se dos problemas alheios. Colocamos nossos propósitos egoístas como prioridade e não sabemos ao certo explicar qual a finalidade disto. A ganância se torna a protagonista no projeto de vida das pessoas enquanto as injustiças sociais avançam do mesmo modo que um tumor maligno.

Dinheiro para viver feliz em mundo infeliz, não nos tornará felizes. Encarar a realidade e tomar para si as nossas e as demais dificuldades com o intuito de supera-las, é criar um propósito de vida verdadeiro que irá retribuir com a felicidade e a plenitude. Fora deste escopo, estamos fardados a ilusão.

A metafísica de Platão nos ensina a desnudar as coisas em si para atingir as verdades, os conceitos puros que possam de fato apresentar desde o princípio a explicação dos fenômenos mundanos.

A felicidade que buscamos ao nos realizar profissionalmente, ao ter um relacionamento afetivo estável, comprar imóveis ou o carro sonhado não condiz com a felicidade imutável pois pode ser relativizada. Para aquele que tem muito, o pouco não lhe fará feliz, ao contrário dos desamparados. Logo podemos ver que a felicidade não está associada a conquistas individuais. O principio da felicidade que está no mundo das ideias, descrito por Platão, é mais abrangente que as simples conquista matérias, transcende as nossas realizações egoístas para dá espaço a um bem coletivo. A felicidade surge como consequência da contribuição pura, sem interesses individuais envolvidos, na melhoria da coletividade.

Quando nos deparamos com os problemas mundanos e simplesmente os banalizamos e abstraímos, julgando que o nosso mundo interno se encontra equilibrado apesar dos inúmeros problemas exteriores, projetamos nossas vidas pra rumos diferentes do da felicidade. A euforia serve de remédio falso a plenitude dos indivíduos que segue no mundo das sombras achando que a felicidade se encontra em realizações pessoais.

A coletividade é a detentora da felicidade. Um mundo em guerra, fome por toda parte, violência desfreada, Covid, injustiças sociais não nos permitem sermos verdadeiramente felizes.  Devemos projetar nossos olhos para todo sofrimento do mundo e tomar atitudes para mudanças que irão contribuir para uma coletividade estável, saudável, equilibrada, feliz e verdadeiramente plena.

Bibliografia

1- Costa, Alexandre. A filosofia grega. Arcos, 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/a-filosofia-grega/. Acesso em: 13/03/2021.

2- Costa, Alexandre. A ética grega. Arcos, 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/a-etica-grega/ . Acesso em: 13/03/2021

3- A banalização da injustiça social / Christophe Dejours; tradução de Luiz Alberto Monjardim. - Rio de Janeiro : Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

4- PLATÃO. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2000. p.319-322.