Os estudos filosóficos e humanos ainda separam com regularidade a história intelectual da contemporaneidade, o que pode ser contraditório com as teses antropológicas e sociológicas sobre o contínuo social e individual, confirmadas na história. Mesmo dando especial atenção às descontinuidades a que se refere Michel Foucault, admitindo que a linha cronológica da humanidade tem rupturas, para tentar entender o pensamento contemporâneo os estudos devem se desenvolver nesse sentido, para guardar seu lugar significativo como arte de explicar o mundo que nos rodeia. Um grande exemplo dessa compreensão é a análise da perspectiva  e da mensagem da sofística clássica.

Nos tempos primários, o foco da filosofia era a origem das coisas, natureza, mundo entre outros. Todavia, no século V antes de Cristo, com o advento do movimento dos sofistas, ocorreu uma ruptura do objeto de estudo, uma vez que deixou de manter a origem das coisas como centro das discussões e passou a colocar o homem no centro dos embates filosóficos. Nesse sentido, evidencia-se à célebre frase do filósofo Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Tal adução corrobora a mudança de viés adotada pelos sofistas, uma vez que evidencia a ideia de que tudo deve ser avaliado em relação às necessidades humanas. Para tal grupo de pensadores, as ideias e noções do que seja certo e errado, de bem ou de mal, da existência de deuses, da organização social e política e da própria ciência vão depender se as pessoas entendem que estas necessidades são naturais aos seres humanos (inato) ou se são criações da própria sociedade.

Induvidosamente, os sofistas eram indivíduos que na atualidade seriam chamados de sábios. Isso porque o termo era utilizado, em suma, para intitular àquelas que dispunham de notável compreensão acerca dos mais diversos ramos do saber, como por exemplo, gramática, astronomia, geometria, música, entre outras. Em virtude de seu notável conhecimento, costumavam lecionar as mais diversas matérias. Nas palavras de Landormy:

“[...] tinham a pretensão de formar homens completos, habituados a todas as sutilezas do pensamento, hábeis em manejar a palavra, corajosos e fortes na ação, dignos de todos os triunfos, de todas as felicidades.” (LANDORMY, 1985, p. 13).

Sofistas vs Filósofios

Neste ponto, destaca-se que o fato dos sofistas receberem pelos ensinamentos ministrados gerava muitas críticas por partes dos atenienses e principalmente de Sócrates que achava "vergonhoso vender o saber, dizendo que o comércio da sabedoria não merecia menos ser chamado prostituição que o tráfego da beleza" (BONNARD, 1980, p. 438). No mesmo sentido, entendeu o filósofo George Briscoes Kerferd:

“o que os sofistas estavam aptos a oferecer não era, de forma alguma, uma contribuição para a educação das massas. Eles ofereciam um produto caro, valiosíssimo para os que estavam buscando fazer carreira política e na vida pública em geral, isto é, uma espécie de educação secundária seletiva, em continuação à da contribuição básica da escola [...]”. (KERFERD, 2003, p. 34).

Percebe-se do exposto a nítida mercadorização do conhecimento. Contudo, seria esta de todo ruim? Certamente não, pois talvez do mesmo modo como os mercadores na busca da venda de seus produtos buscam adimplir com as necessidades de seus clientes os sofistas teriam perseguido o reconhecimento pelo seu trabalho. Por esse motivo, os sofistas podem ser considerados como os primeiros professores remunerados.

Diferentemente dos sofistas, Sócrates tinha motivações para transmissão do conhecimento distintas, não recebendo pagamento pelas suas lições. Enquanto os sofistas autodenominavam-se profundos conhecedores, Sócrates consagrava sua famosa frase “Só sei que nada sei” o que, visivelmente, não agregava valor como o propugnado pelos sofistas.

Além do mais, enquanto Sócrates causava grande incômodo na população ateniense, buscando trazer a reflexão de seus ouvintes, por meio de provocações, isto é, da maiêutica, os sofistas, utilizando-se da oratória e da retórica davam “aos seus ouvintes um festival verbal”, buscando sempre o agrado do maior número de indivíduos, de modo a possibilitar o seu proveito próprio (NUSSBAUM, 1980, p. 75).

A rejeição do sofisma por Platão na era clássica, descrevendo a escolaridade de uma forma caricata em seus diálogos, pode estar relacionada com a metapolítica, e a crítica do filósofo grego à democracia é sempre expressiva. O conceito de cultura retórica foi estigmatizado por Platão como negação do conhecimento real ou filosófico. A disputa entre filosofia e retórica é tendência intelectual constante do pensamento europeu desde a época do declínio da democracia.

O primeiro grande filósofo a reconhecer o valor do sofisma foi Hegel, identificando como uma grande tendência na história do pensamento humano, sendo assim possibilitando o desenvolvimento da cultura baseada em fundamentos racionais (KERFERD, 2003 [1981], p.19). Esse pensamento é, segundo o filósofo alemão, a compreensão de diferentes aspectos e da própria realidade de muitos pontos de vista. Hegel, em suas obras tem ideias distintas sobre cultura e filosofia, entendendo a sofística como uma educação formal, que é a base da cultura geral de um indivíduo.

Sofistas e a Democracia

As concepções dos sofistas são notáveis nas predisposições da sociedade moderna que expressam a essência da formação democrática, além de várias formas de filosofia pós-moderna, como a “Nova Retórica” de Perelman. A persuasão é um mecanismo primário da democracia.

Como antes mencionado, os sofistas efetuaram mudanças significativas na educação grega, sendo precursores a considerar a sociedade como comunidade de indivíduos enviando e recebendo ensinamentos. Essa pedagogia deu origem à orientação utilitarista e pragmática que influenciou o pensamento liberal europeu clássico, expondo diversos pontos de vista e convicções subjetivas de grupos específicos. Abre assim portas para uma abordagem democrática, voltando a ser objeto de grande relevância especialmente desde o século XX até atualmente. Com isso, observamos a retomada de um dos pilares sofistas, precursor da ideia moderna de tolerância.

Nesse sentido, Chauí afirmando que os sofistas defenderam o "partido" democrático, assim se manifesta sobre o tema:

"Os sofistas, formados no conhecimento da história e na explicação médica sobre o processo de humanização do homem por meio dos costumes, defendiam o 'partido democrático contra o aristocrático', afirmando que o costume e a lei não-escrita não são por natureza ou naturais, mas são nómos, isto é, por convenção, e por isso relativos a cada sociedade (em outras palavras, a aristocracia, exatamente como a democracia, é uma convenção social e humana e não uma instituição natural ou divina)”. (CHAUÍ, 2006, p.166).

Sofistas no âmbito jurídico

Além da suma importância para debates no campo político e social, os sofistas manifestam uma significativa relevância no campo do direito. Conforme a Escola sofística, a justiça surgia a partir da intervenção humana, difundida como Lei. Manifestando-se dentro de um contexto onde os cidadãos não se conformavam à apelos divinos, a sofística afasta-se de explicações místicas e apelo a verdades imutáveis.

Marilena Chauí (2006) explica a máxima de Protágoras: “A lei ou nómos é a medida de todas as coisas e o critério para avaliar e regular as técnicas(...)” (CHAUÍ, 2006, p.171-2). Assim, com as diferenças dos tempos, dos lugares, além das circunstâncias, a lei determina, em conformidade com os quais são as técnicas necessárias e melhores para uma cidade. Assim, “o homem é medida das coisas que são”, significa que é por ação humana que as coisas existem tais como são e que outras não existem, porque os homens convencionaram, por meio de leis, não admiti-las, de acordo com Chauí.

Segundo o sofista Protágoras, o homem é responsável pelo seu destino, como também pela criação de suas leis, apresentando assim, indícios de um direito positivo. O processo de formação do Estado, e a normatização da esfera do positivismo jurídico através do seguimento exposto ainda está presente no Estado Contemporâneo e na formação de juristas. Encontra-se na atualidade a visão sofística a respeito do tema da justiça relativa.

A oratória também se torna relevante na prática jurídica, na capacitação de compenetrar os juízes conforme um determinado posicionamento. Apenas poderia ser examinada a justiça do caso diante da análise verdadeira, de sua efetiva ocorrência. Assim, as palavras se tornam aplicadas e meticulosas para definir o justo e injusto diante à um tribunal.

Por fim, a respeito  do mérito das críticas sofistas, Souza Filho esclarece:

"A importância dos pensadores sofistas transcende pois aos aspectos das discussões retóricas e dialéticas que tanto exercitaram em debates na Ágora ateniense com os discípulos de Sócrates e de Pitágoras. Além de críticos argutos do direito positivo e primeiros articuladores das teorias gregas de direito natural, de origem divina, cósmica e humana, lançaram os fundamentos do anarquismo político, do internacionalismo, do pacifismo e do humanismo, embora encontremos nesse movimento idéias dialeticamente opostas a tais concepções, como servem os exemplos de Tucídides e Cálicles." (SOUZA FILHO, 2004, p. 43).

Interessante observar que várias concepções dos sofistas vieram a ter relevância após numerosos séculos de progresso filosófico e científico, indicando o progresso deste grupo ao discutir assuntos cinco séculos antes de Cristo, que só seriam retomados posteriormente.

É inegável a importância que vem adquirindo o pensamento sofista nos últimos anos, e a retomada e entendimento de seus estudos agregam sempre no pensamento filosófico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BONNARD, A. Civilização grega. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

Costa, Alexandre. A filosofia grega. Arcos, 2020.

Costa, Alexandre. A ética grega. Arcos, 2020.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Volume 1. São Paulo Ed. Companhia das Letras. 2006.

KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. Tradução de Margarida Oliva; EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2003.

GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Trad. de João Resende Costa. São Paulo. Paulus, 1995.

LANDORMY, P. Sócrates. Lisboa: Inquérito Limitada, Cadernos Culturais, 1985.

NUSSBAUM, M. Aristophanes and Socrates on Learning Practical Wisdow (Aristophanes: Essays in Interpretation – Yale Classical Studies 26). Published in the United States of America by Cambridge University Press, New York, 1980.

SOUZA FILHO, Oscar d'Alva e. Ensaios de filosofia do direito. Fortaleza. Ed. ABC, 2004.