Do desencantamento a pureza

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O processo de afastamento das ciências sociais de explicações baseados na religião ou em regras tradicionalmente aceitas foi um fenômeno bastante proeminente no período da modernidade. Ao descrever esse fenômeno Weber cunhou o termo  “desencantamento”[1] do mundo.

Esse fenômeno constitui a busca por uma análise calcada em um método de construção do conhecimento, que pudesse ser estudado e construído de maneira sistemática e representa, como poucos, as ideias vigentes em uma época de rápida transformação econômica e social.

Esse desencantamento conduziu um processo de racionalização do conhecimento, que pode ser compreendido como a busca de uma unificação sistemática produzindo uma separação entre ciência, estética e valores morais com cada uma das áreas apresentando lógica interna própria. Racionalização pode ser compreendida como a tentativa de encontrar sentido e orientação em uma realidade que é fragmentada e desconexa[2]. Nesse contexto se inserem as teorias puras da filosofia moral de Kant e do direito de Kelsen.

Kant, ao reconhecer que uma análise indutiva dos fatos seria incapaz de conduzir a uma compreensão adequada da realidade propõe a utilização da racionalidade como parâmetro a essa compreensão e para a construção do conhecimento. Para Costa: “Trata-se de um conhecimento direto da razão humana sobre si mesma, e esse é um tipo de conhecimento puro, ou seja, purificado de todas as incertezas que provém da empiria”[3].

A Teoria Pura do Direito busca sistematizar e compreender o direito sob a mesma premissa de Kant ao desconsiderar os elementos que contaminam a prática e analisar o conhecimento a partir da racionalização de seus próprios elementos, pretendendo “libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”[4] e a motivação é a busca pelo estabelecimento de metodologias que sejam próprias ao direito, evitando as limitações que a prática contaminada por outros elementos poderia encobrir, nas palavras de Kelsen[4]:

“Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.”

Direito e Norma

Esquematização simplificada da Teoria Pura do Direito. Disponível em: https://www.slideserve.com/ariane/revis-o-teoria-geral-do-direito

Kelsen define o direito para a Teoria pura como: “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.”[4]. Com esse sistema de normas representando o objeto de estudo da ciência do Direito.

Sob o paradigma jurídico atual a definição desse objeto pode parecer óbvia, ou mesmo desnecessária. Cabe ressaltar, no entanto, que o Direito foi e é fortemente influenciado pela cultura, religião e política e os limites de início e fim do objeto não são claros hoje e muito menos eram à época do desenvolvimento da Teoria Pura do Direito. A familiaridade da norma como objeto advém, pelo menos em parte, da capacidade das proposições da Teoria de Kelsen de influenciar o discurso e a construção do conhecimento jurídico relacionado.

Se o Direito é um sistema de normas, a pergunta seguinte a compreensão do Direito a partir da Teoria Pura é o que é norma? Norma não é um texto, ou um signo específico (tal qual uma placa de trânsito), mas uma prescrição dirigida a conduta humana, podendo ser representada por uma lei, por uma decisão judicial ou até mesmo pela tal placa. Nas palavras do autor: “Com o termo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem.”[4]. Constitui um ato humano, não um texto, direcionado a conduta igualmente humana, que pode prescrever uma conduta, permiti-la, ou mais importante, conferir a alguém o poder de normatizá-la[4].

As normas apresentam formas diversas, podendo possuir um caráter abrangente e abstrato ou mesmo ser representada por uma prescrição de conduta individualizada, no entanto se o objeto da Teoria Pura é o sistema normativo e o objetivo é sistematizá-lo e compreendê-lo, é preciso compreender de que forma as normas se interrelacionam e conferem validade umas as outras.

A Teoria Pura parte de uma norma hipotética fundamental responsável por conferir validade ao ordenamento jurídico e a partir dessa norma, são elaboradas normas secundárias com validade concedida pela norma fundamental, as normas secundárias servem de fundamento de validade para outras normas e assim por diante, em um processo de validade em cascata. Como expõe Costa[5]:

“De acordo com a concepção kelseniana, cada norma superior atribui a uma determinada autoridade o direito de produzir uma norma inferior. Assim, a norma superior não determina completamente o conteúdo das normas inferiores, mas atribui competência legislativa a um determinado agente, que deve complementar o direito, mas sem extrapolar os limites de forma e conteúdo definidos pelas normas superiores.”

Desse modo o processo de validação em cascata estabelece uma moldura sobre o qual a norma inferior poderá estabelecer uma prescrição de conduta, a norma superior não estabelece todas as hipóteses, mas um conjunto delas, um limite de atuação ou uma moldura, em que as prescrições da norma inferior devem se inserir. Cabe esclarecer que esse limite é sempre incompleto, visto que por mais pormenorizada que seja a norma não será capaz de abarcar todas as hipóteses de incidência. Como esclarece Costa[6]:

“Nessa medida, as autoridades constituídas pelo ordenamento jurídico positivo realizam uma atividade simultaneamente executiva (porque a criação das normas inferiores é uma espécie de execução das superiores) e produtiva (pois, dentro da moldura, a norma superior não determina o conteúdo da inferior).”

Nesse contexto a decisão judicial representa também uma norma, na medida em que prescreve uma situação esperada aos afetados pela decisão, se insere dentro de um sistema normativo e tem seu fundamento de validade prescrito pelo ordenamento, para Costa “Kelsen rompe a distinção tradicional entre atividade legislativa e atividade judicial, pois ele trata essas duas atividades como espécie do mesmo gênero”[5]. A decisão judicial é, portanto, limitada pelas normas que conferem validade a ela, essa limitação pode ser compreendida como de tal maneira estrita que a vincule a uma única decisão possível?

A Interpretação na Teoria Pura do Direito

Disponível em: https://www.google.com/imgres?imgurl=https%3A%2F%2Fthumbs.jusbr.com%2Fimgs.jusbr.com%2Fpublications%2Fimages%2F9566d9bef61b53d193210559d28ef84b&imgrefurl=https%3A%2F%2Fthiagonvieira.jusbrasil.com.br%2Fartigos%2F739682567%2Fsaiu-a-sentenca-do-meu-processo-como-posso-entende-la&tbnid=GQa4CANapBMHRM&vet=12ahUKEwi7rJ2TsYbwAhVntJUCHRiMDJcQMygBegUIARCmAQ..i&docid=igVkWFtvd6_DnM&w=1080&h=560&q=senten%C3%A7a%20judicial&ved=2ahUKEwi7rJ2TsYbwAhVntJUCHRiMDJcQMygBegUIARCmAQ

A teoria pura é positivista e busca entender o direito a partir de um processo de racionalização, de eliminação de influências externas, pensando-o a partir de um modelo de proposições que relacionam prescrição e seus resultados, ou seja, relaciona o “dever-ser” normativo com os resultados esperados, de maneira que permita uma análise lógica das normas.

No capítulo direito e ciência o autor a compara com as ciências naturais, nas quais é possível a partir das proposições e da análise deduzir resultados esperados de eventos da natureza e por meio da experiência empírica confirmar a assertividade dessas proposições, realizando até mesmo cálculos matemáticos capazes de predizer com clareza quais são os resultados esperados.

Seria possível supor que a teoria busque o mesmo nível de certeza das ciências naturais em relação a intepretação realizada pelos órgãos judiciais, relegando a essa interpretação um papel meramente mecanicista, em que de acordo com o sistema jurídico o intérprete pudesse apresentar uma única solução ao caso concreto. O que de fato é compreendido por muitos como uma decorrência da Teoria de Kelsen.

No entanto, o sistema de validade em cascata concebido pela Teoria Pura compreende a norma superior como um elemento de limitação parcial da norma inferior, sem lhe esvaziar a razão de existir: prescrever conduta. A decisão judicial, na qualidade de norma, também deve ser capaz de realizar a função normativa, caso contrário perde seu sentido. Para Kelsen[6]:

“A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. (...)Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.”

A Teoria de Kelsen tem por objetivo sistematizar e compreender a ordem normativa, que dentre outros elementos é composto pelas decisões judiciais, portanto parece inadequado estabelecer a priori qual decisão é compatível ou não com o sistema, na medida em que a interpretação judicial é parte do ordenamento. Para Kelsen[7] a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução correta, mas possivelmente a várias soluções que têm igual valor.

Não se deve confundir a Teoria Pura do Direito com uma teoria da interpretação judicial pura ou da acepção textual única. A escolha realizada pelo órgão julgador frequentemente se baseia em elementos alheios a teoria pura e sobre os quais a teoria busca se afastar. Nas palavras do autor[6]:

“A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer - segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas.”

A partir dessa visão instrumental do Direito parece mais correto afirmar que os requisitos para que uma decisão seja considerada correta se vinculam a competência legalmente estabelecida ao órgão decisor e a fundamentação calcada em um dispositivo legal vigente.

A amplitude da moldura estabelecida a interpretação é especialmente extensa em relação a norma fundadora de um determinado ordenamento jurídico, em que o grau de abstração e abrangência da norma deixa grande margem de escolha ao órgão responsável por interpretá-la.

Para exemplificar a perspectiva hermenêutica jurídica da Teoria Pura do Direito cabe analisar a decisão firmada pelo STF acerca da constitucionalidade da união homoafetiva[15] ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, a corte realizou uma interpretação que compatibilizou o disposto no art. 226 §3º com o contido, no art. 3º inciso IV, da Constituição Federal.

É possível encontrar textos jurídicos justificando, sob a perspectiva de Kelsen, a impossibilidade do reconhecimento do pedido pelo STF a partir da visão de que a Teoria Pura é formalista e legalista[8]. No entanto uma leitura mais atenta sobre as afirmações do autor acerca da interpretação judicial permite afirmar que a opção realizada pelo STF é plenamente compatível com essa teoria, visto que ele afirma que “O que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido”[6][9].

A Teoria Pura do Direito reconhece ainda a capacidade de criação do Direito a partir da hermenêutica dos órgão judiciais, não guardando qualquer relação com a defesa da aplicação literal das leis, ou com a ideia de um órgão judicial como boca da lei, visto que “a interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito”[19].

Bibliografia

[1] Em alemão “Entzauberung” refere-se ao afastamento das explicações encantadas ou mágicas. CHUA, Eu Jin. Enciclopédia Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/disenchantment-sociology

[2] Em THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Max Weber: o processo de racionalização e o desencantamento do trabalho nas organizações contemporâneas. Rev. Adm. Pública vol.43 no.4 Rio de Janeiro July/Aug. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122009000400007#:~:text=Weber%20trata%20da%20racionalidade%20principalmente,I%20de%20Economia%20e%20sociedade.&text=A%20segunda%20distin%C3%A7%C3%A3o%2C%20entre%20as,de%20maior%20ou%20menor%20racionalidade.

[3] Costa, Alexandre. O jusnaturalismo racionalista de Immanuel Kant. Arcos, 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/kant/

[4] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed. I - DIREITO E NATUREZA

[5] Costa, Alexandre. Hermenêutica Jurídica, Cap. V (Neopositivismo), item 2: Teoria Pura do Direito. Arcos, 2020.

[6] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed. VIII - A INTERPRETAÇÃO

[7] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed. VIII - A INTERPRETAÇÃO. Pg. 247

[8] Soares, Mariana Maria da Costa; Souza, Filipi Alencar Soares de. A união homoafetiva e as perspectivas do Direito. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-107/a-uniao-homoafetiva-e-as-perspectivas-do-direito/

[9] Melo, Alexandre Gustavo. Constitucionalidade e relevância da decisão sobre união homoafetiva: o STF como instituição contramajoritária no reconhecimento de uma concepção plural de família.