O poema contado pelo personagem Ivan ao seu irmão Aliocha faz parte do romance “Os Irmãos Karamazov” de Fiódor Dostoiévski. A história se passa na época da Inquisição, na cidade de Sevilha, Espanha, local onde Cristo retorna e opera curas e milagres. Ao perceber o tumulto causado por Cristo, um velho cardeal de noventa e poucos anos, o Grande Inquisidor, manda prendê-lo por heresia. Na prisão, Cristo é acusado e ameaçado pelo Inquisidor.

Segundo o Grande Inquisidor, Jesus é acusado por ter proporcionado liberdade aos seres humanos, que são vistos como seres fracos e incapazes de lidar com esta responsabilidade:

Tinha sede [Jesus] de um amor livre, querias que o homem te seguisse livremente seduzido por Ti. Em vez de se apoiar na antiga lei rigorosa, o homem deveria, doravante, com o coração livre, escolher o que era o bem e o mal, tendo apenas a Tua imagem para se guiar. Mas não pensaste que ele acabaria repelindo a Tua imagem e a Tua verdade, esmagado por esse fardo terrível que é a liberdade de escolher?

Para Dostoiévski, o Reino de Cristo está alicerçado na liberdade. Em contrapartida, o reino do Inquisidor se estabelece por meio do pão, do milagre/mistério e do poder/autoridade rejeitados por Cristo no episódio da tentação do deserto (cf. Mt 4. 1-11). Por meio do pão rejeitado por Cristo, o Inquisidor atrairia a multidão faminta; por meio do milagre dos anjos, o Inquisidor alcançaria a multidão desejosa de milagres, e por meio da autoridade e do poder concedida pelo que ele chama de espírito inteligente ou Satanás, o Inquisidor teria domínio sobre as consciências humanas.

Entretanto, a figura do Inquisidor é um pouco mais complexa do que apenas uma figura de autoridade que anseia domínio e poder, ela representa também a desilusão religiosa, assim como a realidade caótica da consciência humana. E isso se evidencia durante todo o monólogo do Inquisidor com Cristo.

Não desceste porque mais uma vez não quiseste escravizar o homem pelo milagre e ansiavas pela fé livre e não pela miraculosa. Ansiavas pelo amor livre e não pelo enlevo servil do escravo diante do poderio que o aterrorizara de uma vez por todas. Mas até nisto tu fizeste dos homens um juízo excessivamente elevado, pois, é claro, eles são escravos ainda que tenham sido criados rebeldes. Observa e julga, pois se passaram quinze séculos, vai e olha para eles: quem elevaste à tua altura? Juro, o homem é mais fraco e foi feito mais vil do que pensavas sobre ele!

O Inquisidor critica a liberdade e a fé livre de Cristo, já que julga os seres humanos como fracos e incapazes (pelo menos, em sua maioria) de alcançar um nível de consciência tão elevado quanto o de Cristo para viverem em harmonia com suas liberdades sem que isto os levasse ao caos. Pelo caminho de Cristo, poucos seriam salvos, em detrimento dos milhões de pessoas incapazes de suportar um caminhada cega em direção à fé; estando esses milhões fadados à encontrar apenas dor e sofrimento em um caminho que apenas os levaria à morte e nada mais.

Pois bem, a intranquilidade, a desordem e a infelicidade – eis o que hoje constitui a sina dos homens depois que tu sofreste tanto por sua liberdade! Teu grande profeta diz, em suas visões e parábolas, que viu todos os participantes da primeira ressurreição e que eles eram doze mil por geração.[23]  Mas se eram tantos, não eram propriamente gente, mas deuses. Eles suportaram tua cruz, suportaram dezenas de anos de deserto faminto e escalvado, alimentando-se de gafanhotos e raízes – e tu, é claro, podes apontar com orgulho esses filhos da liberdade, do amor livre, do sacrifício livre e magnífico em teu nome. Lembra-te, porém, de que eles eram apenas alguns milhares, e ainda por cima deuses; mas, e os restantes? E que culpa têm os outros, os restante, os fracos, por não terem podido suportar aquilo que suportaram os fortes? Que culpa tem a alma fraca de não ter condições de reunir tão terríveis dons? Será que vieste mesmo destinado apenas aos eleitos e só para os eleitos? E se é assim, então aí existe um mistério e não conseguimos entende-lo. Mas se é um mistério, então nós também estaríamos no direito de pregar o mistério e ensinar àquelas pessoas que o importante não é a livre decisão de seus corações nem o amor, mas o mistério, ao qual elas deveriam obedecer cegamente, inclusive contrariando suas consciências. Foi o que fizemos. Corrigimos tua façanha e lhe demos por fundamento o milagre, o mistério e a autoridade.

Tendo essa visão do caminho de cristo, o Inquisidor toma para si os ensinamentos do "Espírito Inteligente" ou Satanás e os resume em 3 medidas (milagre = pão/alimento; mistério = fé; e autoridade = poder/"espada de césar") para sujeitar o homem à um domínio único e trazer para maioria incapaz e triste o alento de uma felicidade e necessidade, de certa forma, ilusória.

Oh, nós os persuadiremos de que eles só se tornarão livres quando nos cederem sua liberdade e se colocarem sob nossa sujeição. E então, estaremos com a razão ou mentindo? Eles mesmos se convencerão de que estamos com a razão, porque se lembrarão a que horrores da escravidão e da desordem tua liberdade os levou. A liberdade, a inteligência livre e a ciência os porão em tais labirintos e os colocarão perante tamanhos milagres e mistérios insolúveis que alguns deles, insubmissos e furiosos, exterminarão a si mesmos; outros, insubmissos porém fracos, exterminarão uns aos outros, e os restantes, fracos e infelizes, rastejarão até nossos pés e nos bradarão: ‘Sim, os senhores estavam com a razão, os senhores são os únicos, só os senhores detinham o mistério d’Ele, estamos de volta para os senhores, salvem-nos de nós mesmos’.

Do monólogo do Inquisidor com Cristo podemos identificar o Inquisidor como uma figura autoritária que usa sua desilusão com a fé em Cristo para justificar um domínio sobre a maioria incapaz. Entretanto, ao fim do monólogo, o narrador Ivan pausa o conto para ouvir as críticas de seu irmão inconformado com as falas e atitude do personagem do Grande Inquisidor criado pelo seu irmão, e então mostra uma possível perspectiva do Inquisidor que mais se aproxima de Cristo do que do Diabo:

Eu te pergunto precisamente por que teus jesuítas inquisidores teriam se unido visando unicamente a deploráveis bens materiais. Por que entre eles não poderia aparecer nenhum sofredor, atormentado pela grande tristeza, e que amasse a humanidade? Supõe que entre esses que só desejam bens materiais e sórdidos tenham aparecido ao menos um – ao menos um como meu velho inquisidor, que comeu pessoalmente raízes no deserto e desatinou tentando vencer a própria carne para se tornar livre e perfeito, mas, não obstante, depois de passar a vida inteira amando a humanidade, de repente lhe deu o estalo e ele percebeu que é bem reles o deleite moral de atingir apenas a perfeição da vontade para certificar-se ao mesmo de que os milhões de outras criaturas de Deus sobrou apenas o escárnio, de que estas nunca terão condições de dar conta de sua liberdade, de que míseros rebeldes nunca virarão gigantes para concluir a torre, de que não foi para esses espertalhões que o grande idealista sonhou sua harmonia. Após compreender tudo isso ele voltou e juntou-se… aos homens inteligentes. Será que isso não podia acontecer?

Daí Ivan apresenta uma imagem de um Inquisidor que ama a humanidade e que entende que a harmonia desejada por Cristo não será alcançada pela maioria, e seguindo os ensinamentos de Satanás guarda esse “segredo” e sujeita essa maioria à sua autoridade, para conferir aos cegos e incapazes o sabor de uma felicidade momentânea, enquanto o Inquisidor e os outros “homens inteligentes” que governam essa realidade absorvem a carga dos pecados e de eterna tristeza e desilusão da morte e da destruição que aguardam a maioria ao fim da vida.

Nessa caracterização do Inquisidor ao longo do poema não é de se espantar que alguns paralelos podem ser feitos com a realidade das relações contemporâneas, um exemplo disso é o trecho citado abaixo:

Eles se tornarão tímidos, e passarão a olhar para nós e a grudar-se a nós por medo, como pintinhos à galinha choca. Hão de surpreender-se e horrorizar-se conosco, e orgulhar-se de que somos tão poderosos e tão inteligentes que somos capazes de apaziguar um rebanho tão violento de milhares de milhões. Hão de tremer sem forças diante de nossa ira, suas inteligências ficarão intimidades e seus olhos se encherão de lágrimas como os das crianças e mulheres, mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade à distração e ao sorriso, a uma alegria radiosa e ao cantar feliz da infância. Sim, nós os faremos trabalhar, mas nas horas livres do trabalho organizaremos sua vida como um jogo de crianças, com canções infantis, coro e danças inocentes. Oh, nós lhes permitiremos também o pecado, eles são fracos e impotentes e nos amarão como crianças pelo fato de lhes permitirmos pecar. Nós lhes diremos que todo pecado será expiado se for cometido com nossa permissão; permitiremos que pequem, porque os amamos, e assumiremos o castigo por tais pecados; que seja. Nós o assumiremos e eles nos adorarão como benfeitores que assumiram seus pecados diante de Deus. E não haverá para eles nenhum segredo de nossa parte. Permitiremos ou proibiremos que vivam com suas mulheres e suas amantes, que tenham ou não tenham filhos – tudo a julgar por sua obediência –, e eles nos obedecerão felizes e contentes. Os mais angustiantes mistérios de sua consciência – tudo, tudo, eles trarão a nós e permitiremos tudo, e eles acreditarão em nossa decisão com alegria por ela os livrará também da grande preocupação e dos terríveis tormentos atuais de uma decisão pessoal e livre. E todos serão felizes, todos os milhões de seres, exceto as centenas de milhares que os governam. Porque só nós, nós que guardamos o mistério, só nós seremos infelizes. Haverá milhares de milhões de crianças felizes e cem mil sofredores, que tomaram a si a maldição do conhecimento do bem e do mal.

Nesse trecho fica bem caracterizado a proximidade da figura do Inquisidor com algumas relações contemporâneas como: governo x governado, Constituição (sistema de normas) x povo, liberdade x autolimitação e até mesmo questões como a laicidade do Estado, e o impacto moral da religião nas tradições sociais.

Sem dúvidas toda descrição do Inquisidor de como organizaria a vida humana sob seu domínio remete a um sistema de governo. A questão principal da liberdade concedida por Cristo e a submissão conquistada pelo Inquisidor pode ser comparada com nossas constituições e sistemas de normas, já que para vivermos em sociedade abdicamos, em parte, da nossa liberdade para viver aos moldes daquilo que está positivado em lei. A falta de, ou o controle sobre a consciência do que é “o bem e o mal” pode ser relacionada à moral e tradições religiosas, a possibilidade do Inquisidor “permitir ou proibir” certas condutas (a depender da obediência dos governados) caracteriza essa moral (e sua evolução).

A temática da laicidade do Estado também não foge aos paralelos evidenciados. Ivan afirma que seu Inquisidor é ateu, e o próprio Inquisidor afirma que não crê mais em Cristo, entretanto faz uso da fé cristã para governar e ao final do poema se sente tocado pelo beijo que Cristo lhe deu, apesar de manter seus ideais inabalados. Por mais que a religião não esteja totalmente atrelada ao governo, depreende-se da fala do Inquisidor que ela é necessária (mistério) para manter o povo cego e sua consciência entregue.

Outras relações podem ser observadas nas entrelinhas desse monólogo, mas fato é que a capacidade de escolher entre o reino do Inquisidor ou o reino de Cristo está nas mãos do ser humano, essencialmente livre.

Referências Bibliográficas:

Dostoievski, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov.