A história brasileira é marcada por uma ruptura institucional e governamental sem precedentes outrora vistos. Ainda que se tratasse de uma Ditadura Militar, na tentativa de normalizar o ato (in)constitucional, a todo tempo houve uma enorme preocupação em dar  ares de legalidade à instauração do Regime. Neste período, os militares mantiveram aberto o Congresso Nacional, mesmo que de maneira meramente formal; e o Poder Judiciário, principalmente figura do Supremo Tribunal Federal, além de criar duas constituições, ainda que sem respeitar os trâmites legais para sua promulgação. Resta claro que estes fatores tentavam demonstrar a legitimidade do regime dando a ele uma falsa caracterização legal e sobretudo a necessidade de reafirmar que o ato partia da “vontade do povo”.

           Polarização do sistema político, crise de autoridade nas Forças Armadas, intensos conflitos ideológicos, modo escrachado do governo de João Goulart, polarização política e a Guerra Fria foram fatores históricos decisivos para a ruptura do regime democrático e para a instauração da ditadura militar em abril de 1964 no Brasil (PEIXOTO, 2015).

           O dia que durou 21 anos (2012) foi iniciado pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964, que adotou o discurso da soberania popular para impor legitimidade, ainda que meramente formal, a si mesmo, já prevendo que esta seria questionada. Em suas palavras:

           A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. (grifo nosso)

           A autonomeação de “revolução”, a constante referência ao Poder Constituinte, exercido pelos Chefes em nome do Povo, e a manutenção do Congresso Nacional e do Poder Judiciário foram elementos que certamente influenciaram Elio Gaspari a denominar o período período inicial do governo militar como “ditadura envergonhada”. Nesse sentido, nota-se uma preocupação em fomentar um discurso que legitime o exercício do poder autoritário a partir da ideia (ou falácia) de representação da vontade do povo, que é definido como titular do Poder Constituinte.

           A preocupação em manter o Congresso Nacional no período, ainda que com algumas mudanças estruturais em relação aos poderes do Presidente da República, dialoga intimamente com o denominado “presidencialismo de coalizão” do sistema político brasileiro. Diversos são os exemplos de presidentes que foram destituídos dos seus cargos principalmente por não conseguirem negociar com o Poder Legislativo, vide Jânio Quadros em 1961, Fernando Collor de Mello em 1992 e Dilma Rousseff em 2016, isso porque o apoio do Congresso Nacional garante um menor controle dos atos, ainda que eles sejam centralizadores (PEIXOTO, 2015).


           Já quanto à garantia de um caráter legítimo ao golpe civil-militar - este vinculado ao consentimento do Povo, titular do Poder Constituinte -, é importante destacar que nem sempre houve essa preocupação na história de formação e transformação dos governos. Durante o Regime Absolutista, o monarca, como verdadeiro soberano, não era mero representante do povo, mas o soberano legítimo, verdadeiro, exercendo poder em nome próprio, independentemente do aval dos súditos. Assim, o rei não era nem constituído, nem destituído pelo povo (COSTA, 2021).

           Em contrapartida a essa noção de poder soberano dos reis, nota-se que a noção de soberania proferida pelo no AI nº I é construída por meio da legitimidade dada pelo povo, aproximando-se, portanto, ainda que formalmente, do conceito de soberania popular de Jean Jacques Rousseau (1996), qual seja, “o exercício vontade geral”, que se contrapõe aos interesses individuais e seria responsável por garantir uma ordem mais igualitária à toda a Nação.

           Rousseau (1996) aponta duas características da soberania: a) a soberania é inalienável; b) a soberania é indivisível. A primeira diz respeito ao fato de que somente a vontade geral está em conformidade com o bem ou interesse comum, base pela qual a sociedade deve ser governada. Assim, sendo a soberania o exercício da vontade geral, o soberano nunca pode ser representado por outrem, mas apenas por si mesmo (apesar de conseguir transportar o poder, não consegue fazer o mesmo com a vontade). Já a segunda característica afirma que a vontade geral não é a soma das vontades particulares, mas a unicidade da vontade do povo.

           O AI nº I se aproxima do primeiro ponto na medida em que afirma que a “revolução” não exprime a vontade de um grupo, mas sim o interesse e o bem da Nação. Para tal, o governo afirma ter a missão de restaurar a ordem econômica, financeira, política e moral, o prestígio internacional, combater a corrupção e minar a “ameaça comunista”, que aparentemente corrompeu o governo.

           Por outro lado, o discurso de “bem da Nação” se contradiz a partir das intensas violações aos direitos humanos e às garantias individuais ocorridas no mesmo período através da tortura, prisões arbitrárias, desaparecimento de corpos dos opositores ao regime, censura dos meios de comunicação e vedação do livre pensamento aos opositores do governo. Ao analisar o contexto geral marcado pela intensa polarização política e conflitos ideológicos suscita-se a seguinte questão: sendo o Povo titular do Poder Constituinte, onde está a legitimidade ao observar que este regime beneficia apenas seus apoiadores, restringe direitos e faz uso da violência para repressão dos opositores? Ainda, se o Povo é titular do Poder Constituinte, mas são os Chefes do golpe que estão exercendo esse poder, onde está a legitimidade dessa representação?

           Conforme discorre Ferreira Filho (2014), a problemática da titularidade do Poder Constituinte é, em grande parte, ideológica, porque está ligada à concepção política predominante em um determinado momento. Além disso, Luís Roberto Barroso (2015) acentua que a noção de titularidade, partindo da ideia de um Poder Constituinte, pressupõe, como todo poder efetivo, a manifestação de vontade por parte de quem o exerce, restando a outrem o consentimento ou sujeição por quem a ele se sujeito. Afirma ainda, que todo o exercício de autoridade necessita de uma justificação.

           No Regime Militar, a justificação utilizada para tal ato é a legitimação da “revolução”, na medida em que, para eles, sendo a “revolução” a expressão mais forte do Poder Constituinte, que também pode se manifestar pelo voto, ela se legitima por si mesma, destituindo o governo anterior e constituindo um novo. Novamente, Rousseau discute esse aspecto na obra Do Contrato Social (1996):

Deve-se compreender, nesse sentido, que o que generaliza a vontade é menos o número de votos que o interesse comum que os une (...).

           No entanto, esta revolução que se legitima por si mesma, mostrou ser extremamente autoritária. Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirmou que o “reconhecimento dos direitos naturais do homem, porém, não basta por si só para assegurar o seu respeito. Este precisa ser garantido contra a tendência ao abuso que tão frequentemente se apossa dos governantes” (FERREIRA FILHO, 1975, p. 78). Portanto, há um notória controvérsia entre o AI - 1 e subsequentes, que prezava o bem da nação ao mesmo tempo que demonstrou desproteção ou usurpação dos direitos e garantias individuais.

           Nesse contexto, Hannah Arendt (2009), entendendo o poder como a capacidade de agir em concreto e como “um fim em si mesmo”, afirma que a violência, a qual possui um caráter instrumental e um objetivo explícito, mina o poder, visto que impossibilita a construção das regras de forma autônoma e coletiva, não garantindo, portanto, legitimidade. Assim, se na visão da autora o regime totalitário, baseado no terror, não possui poder, o Regime Militar não possui poder, nem legitimidade.

           Desta forma, podemos perceber que, por mais que houvesse a constante tentativa de legitimar o Ato, na realidade o Regime Militar foi um verdadeiro atropelo à democracia em sua forma mais escrachada. Trazendo para a contemporaneidade, muito assusta presenciar falas e reivindicações de jovens e adultos suscitando a ideia de uma intervenção militar tal qual ocorrida em 1964.

           Os rumores atuais de que tal intervenção no contexto atual possa significar melhorias nas condições político-econômica no país surgem a partir de um contexto histórico no mínimo semelhante aos anos anteriores a 1964: crise econômica que se arrasta desde o segundo governo Dilma, a figura da “ameaça comunista” representada pelos 13 anos de governo dos Partidos Trabalhadores, o discurso anticorrupção provocado pelos escândalos do Mensalão e da Lava Jato.

           No contexto atual, os discursos de constante descrédito e baixo compromisso com as regras do jogo democrático são difundidos por parcela significativa da população nos meios de comunicação, principalmente nas mídias sociais. Os direitos constitucionais se tornam mais ameaças do que garantias ao Povo, na medida em que sobre eles são depositadas as culpas de fracassos naturais do jogo político, causando alardes e incertezas na população e pondo a prova todo o regime democrático. Essa situação é vislumbrada na relação entre o Presidente da República e o Supremo Tribunal Federal, em que o Chefe de Estado costuma afirmar que o órgão máximo do Poder Judiciário o impede de governar.

           Isto posto, se por um lado parece razoável afirmar que a legitimidade material do Poder Constituinte é garantido não apenas pela representação, mas pela participação efetiva da população nas mudanças estruturais e institucionais, por outro lado, considerando as desigualdades políticas e sociais, tal participação dificilmente será garantida sem um governo forte para pôr fim ao status quo, em um país alicerçado no poder oligárquico. Estamos, portanto, num imenso paradoxo da democracia.

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

BARROSO, Luís R. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2015

COSTA, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira; emenda constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. São Paulo: Saraiva, v. 3, 1975

FERREIRA FILHO, Manoel G. O Poder Constituinte. 6ª Edição São Paulo: Editora

Saraiva, 2014

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

O DIA QUE DUROU 21 ANOS. Direção: Camillo Galli Tavares. Brasil: PEQUI FILMES, 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4ajnWz4d1P4>. Acesso em mar 2021.

PEIXOTO, João Paulo. Presidencialismo no Brasil: história, organização e funcionamento. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Equipes Técnicas, 2015.

PEREIRA, João Marcos Duarte. Ditadura Militar brasileira: A tentativa de normalização constitucional da ruptura institucional produzida em abril de 1964 e uma breve análise acerca do impeachment de Dilma Rousseff. Disponível em: <http://repositorio.ufla.br/bitstream/1/30747/1/Jo%C3%A3o%20Duarte%20-%20TCC.pdf>. Acesso em mar 2021.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

VERONESI, João Vinicius da Costa. Poder Constituinte na história do ordenamento jurídico brasileiro: usurpação no golpe militar de 1964 e retorno a soberania popular em 1988. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/30409892.pdf>. Acessado em mar 2021.

VIVAS, Fernanda; FALCÃO, Márcio. STF contesta Bolsonaro e diz em nota que nunca proibiu governo federal de atuar contra pandemia. G1, 18 de jan de 2021.Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/18/decisoes-do-stf-nao-proibem-atuacao-do-governo-federal-para-combater-a-pandemia-diz-tribunal.ghtml>. Acesso em: 26 mar 2021.