1. Introdução:

Alexandre Costa disserta que o maior paradoxo do Constitucionalismo é a soberania da constituição e a soberania do povo, pois já que se o povo tem que respeitar os postulados na constituição e na legislação então que soberania popular seria esta?

"Tal combinação de constituição soberana e povo soberano é paradoxal, na medida em que se reivindica para cada um desses elementos um atributo que desde Bodin é entendido como constitutivo da própria noção de soberania: a ausência de limites (1992: 8). A incompatibilidade entre esses dois elementos tem sido evidenciada por pensadores contemporâneos tanto da política quanto do direito. Essa é a tensão que Michelman chamou em 1999 de paradoxo da democracia constitucional (Chueri e Godoy 2010: 159), que Chantal Mouffe identificou como o paradoxo democrático (2000: 3) e que Loughlin e Walker identificaram como o paradoxo do constitucionalismo"  (2007: 1). (COSTA, Alexandre. 2011).

Nesse sentido, de fato a soberania popular não é ilimitada e tampouco direta, até porque o povo dispõe de sua soberania direta ao eleger os seus representantes políticos para criarem as leis.

Destarte, o povo tem o poder de legitimar o exercício da soberania por parte dos seus representantes, estes sim exercem diretamente a soberania, mas mesmo esta soberania é limitada pela constituição e, por conseguinte, pelos demais poderes da República, como o poder judiciário. Daí dizer que “o próprio direito positivo supraestatal limita o poder legislativo” (COSTA, Alexandre. 2011).

A lógica do checks and balances, ou mecanismo de freios e contrapesos, aplicada à democracia constitucional brasileira, deixa cristalino que a soberania do poder legislativo não é ilimitada, uma vez que os demais poderes da república têm o papel de impor limites entre sí, o que significa dizer que mesmo a soberania popular, que se perfaz no “ato de abdicar de sua soberania, atribuindo poder constituinte a um grupo de representantes responsável por instituir um governo de poderes limitados” (COSTA, Alexandre. 2011) encontra balizas nos demais poderes da República.

  1. Assembleia constituinte e as suas limitações

A soberania popular, seguindo esses preceitos, seria mais bem apontada no período de uma assembleia constituinte, mas ainda neste momento seria limitada pela representação do povo através de pessoas eleitas para comporem esta assembleia. O momento de elaboração de um texto constitucional seria um breve momento em que uma das limitações anteriormente apontadas, a limitação da constituição à forma de apresentação e validação da soberania popular, seria enfraquecida, e o povo, através dos seus representantes, poderia reescrever os instrumentos pelos quais deseja ser governado, e quais seriam os limites desses instrumentos, das instituições, e quais desses limites não poderiam ser alterados por elas, por sua manifestação de vontades, como as cláusulas pétreas da constituição brasileira de 1988.

Acontece que, ainda neste momento, um outro ponto, não mencionado anteriormente, tem limitado a soberania popular na modernidade: o direito internacional. O poder de uma assembleia constituinte era, de certa forma, tido como poder absoluto, mas agora apresenta limites de ordem externa, especialmente pelo direito jus cogens no direito internacional e o chamado constitucionalismo global, como bem apontado por Ilana Ribeiro, em referência ao trabalho de Vital Moreira em “O futuro da Constituição”, a Convenção de Viena (1969) sobre os direitos dos tratados trouxe a aplicação da ideia de norma jus cogens no direito internacional, que vincula os estados ainda que estes não tenham feito adesão formal ao tratado que assim é reconhecido, e essa formulação, que já vinha se fortalecendo há anos no âmbito internacional, impactou o constitucionalismo pós II Guerra Mundial, ao trazer elementos mínimos que deveriam estar presentes em um constitucionalismo democrático, principalmente em elementos de direitos fundamentais e liberdades fundamentais, amparadas em normas internacionais.

Sobre o constitucionalismo global, Ribeiro aponta que:

“As limitações à soberania constituinte mostraram-se latentes ao ponto de se afirmar que hoje a ideia de um constitucionalismo nacional absolutamente soberano está sendo extinta, nascendo então à era de um constitucionalismo global, que limita a soberania constituinte. Entretanto, o que se determina constitucionalismo global não veio para minimizar ou extinguir o constitucionalismo interno e sim para limita-lo. E limita-lo em alguns aspectos ou assuntos, mas principalmente no que diz respeito à pessoa humana, seus direitos e liberdades fundamentais.” (Ribeiro, 2012, p. 6071)

Vemos então que a modernidade expandiu as limitações à soberania, ou ao menos as reformulou. O que antes Locke apontava como direito natural sobre o qual o poder absoluto do legislativo não poderia dispor, sob pena do povo, soberano, remover os legisladores e substituí-los, hoje pode ser apontado como conjunto de normas de reconhecimento internacional, as quais nenhum estado pode limitar ou interferir de forma legítima, não há legitimidade para ferir essas normas, esses direitos, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos.

A soberania popular conhece então um novo limite, ou novo nome para um limite já existente, o do constitucionalismo global, que se junta à democracia representativa e ao texto constitucional como limitadores da livre expressão da soberania do povo.

  1. O povo é o autor direto da constituição?

O processo de elaboração da Constituição brasileira de 1988 não se limitou à Assembleia Constituinte de 1987-1988, mas data de muito antes. Segundo Leonardo Barbosa, em sede de tese de doutorado que virou livro, intitulada “Mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964”, já em 1967 era possível visualizar ações que promoviam a criação de uma nova constituinte capaz de romper com o regime autoritário da época. Por exemplo, o “VI Congresso Nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB), realizado clandestinamente em dezembro de 1967, aprovou entre suas teses “a abolição das leis de exceção implantadas pelos militares que tomaram o poder em 1964, o estabelecimento das liberdades democráticas, a realização de eleições, a adoção de uma Constituição democrática e a anistia aos presos políticos”[1]. Além disso, em julho de 1971, formalizou-se, por intermédio da “Carta do Recife, documento aprovado em reunião do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) realizada naquela cidade[2]”, a convocação de uma Assembleia Constituinte.

Entrementes, em que pese o povo tenha tido imprescindível papel no rompimento do regime autoritário militar brasileiro , ele não participou diretamente da elaboração da Constituinte de 1988, de modo que esse delegou para a assembleia constituinte a tarefa de elaboração da constituição.

Portanto, o povo não é autor direto da constituição, mas sim a assembleia constituinte - conjunto de pessoas que representaram o povo na elaboração do texto constitucional.

Mister ressaltar que mesmo o poder constituinte originário, que se perfaz, no caso em tela, na assembleia constituinte de 1988, malgrado não tenha vinculação jurídica-positiva a qualquer outro tipo de poder, encontra balizas no próprio direito natural, “não podendo, portanto, ser considerado arbitrário, absoluto, que não conheça qualquer limitação” (TEIXEIRA, 1991, p.213). Nesse espeque, mesmo o poder constituinte originário não possui soberania absoluta, pois encontra balizas nas regras internas não escritas da própria sociedade, o famigerado direito natural.

  1. Considerações finais:

Ante o exposto, chega-se à conclusão de que o povo não é soberano, já que ele a delega para os seus representantes.

Por outro giro, mesmo os representantes políticos do povo não detêm soberania absoluta, pois pelo mecanismo de freios e contrapesos têm seus poderes limitados pelas demais esferas.

Além disso, o exercício da soberania pela assembleia constituinte também não é ilimitado, tendo em vista que encontra balizas nas normas jus cogens de direito internacional e até mesmo no direito natural.


Referências:

BARBOSA, Leonardo A. A. Mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília, 2009. P.150.

BARBOSA, Leonardo A. A. Mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília, 2009. P.149.

Costa, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

KINZO, Maria D’Alva G. A democratização brasileira: um balanço do processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 15, nº 4, 2001, p. 3-12.

MOREIRA, Vital – O futuro da Constituição – in Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, obra organizada por Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, 2001: Editora Malheiros.

RIBEIRO, Ilana Aló Cardoso. As Limitações Da Soberania Constituinte E O Constitucionalismo Global. 1ed.: , 2012, v. , p. 6062-6079.

TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991.