1. Superando o jusnaturalismo

A modernidade é sempre estudada como um período de grande ruptura, ruptura essa que permeou as mais diversas, se não todas, áreas do conhecimento humano e das relações sociais. Desse modo, o Direito não se manteve inerte à essa transformação, em um momento em que construções tradicionais milenares, como a religião, deixavam de se impor como as bases que estruturavam os mecanismos de dominação, foi preciso formular um novo elemento para fornecer legitimidade aos Estados que se formavam e àqueles que precisavam se renovar.

“Chegou um tempo em que não era mais possível dizer simplesmente: obedeça aos costumes antigos porque eles são costumes e são antigos. Mas era evidente que não se podia simplesmente abandonar as velhas tradições, pois era preciso organizar a vida social, mesmo que segundo novos padrões, mais adequados ao tipo de subjetividade que estava em formação. As sociedades que emergiam do período de guerras civis religiosas não podiam mais se estruturar em torno do mito da unidade religiosa, de um exercício da monarquia baseado na providência divina”(COSTA, 2020)

A ideia de um Direito natural pode ser vista como uma formulação com pretensões universalistas e idealistas. Assim sendo, ao justificar a obediência a determinado dispositivo legal por meio de uma característica humana que supostamente seria impositiva e absoluta, estaria sendo formulada uma resposta que não mais atenderia a um momento de negação à tradição essencialista. O contratualismo esteve fortemente ligado à defesa do jusnaturalismo, ao consagrar o indivíduo como uma construção moderna que é dotada de liberdade e pauta-se pelo uso de sua racionalidade, a sujeição a determinado governo estaria baseada em uma escolha puramente lógica e livre. Nesse ínterim, o cientificismo se insere como um impulso moderno de validação que substituiria toda e qualquer produção baseada em fundamentos que não respeitassem um processo empírico. O racionalismo jusnaturalista se apresentava de maneira abstrata e condicional, suas fundamentações não se afastavam só sistema de crenças que até então vigorava, por outro lado criava-se uma nova roupagem que buscava mascarar esse mesmo sentimento na forma de uma característica humana necessária e incontestável.

“O direito natural é uma invenção de pessoas que têm uma mentalidade religiosa e que somente sabiam fundamentar a validade das normas em algum ponto sagrado. Porém, a modernidade é laica, e essa perspectiva demandou a elaboração de uma teoria laica do direito, que buscou suas raízes no discurso científico “(COSTA, 2020)
“A racionalidade trata apenas de fatos e não de valores. A razão calcula probabilidades, faz deduções lógicas, mas é incapaz de fundar uma moral porque ela não estabelece fins, apenas esclarece os meios.  Embora Hume considere que a razão é ao homem, isso não significa que há normas e valores inatos. Essa é uma ideia revolucionária dentro da própria modernidade, pois colocou em xeque uma noção muito cara ao pensamento da época: que havia valores tão evidentemente morais que nenhuma pessoa racional colocaria em dúvida o seu valor objetivo.” (COSTA, 2020)

Em um século em que “certezas” foram abaladas foi preciso apresentar novos pilares de estabilidade. Essa dinâmica é comum à condição humana, o sentimento de insegurança representa um incômodo aos cidadãos, do mesmo modo, os indivíduos que controlam os mecanismos do poder estão sempre em busca de disseminar seus interesses na forma de verdades que supostamente seriam defendidas pelos próprios dominados. Assim sendo, o Direito precisava passar por uma modificação em sua validez. As grandes inovações científicas que alteraram significativamente a condição humana, produzindo novos mecanismos e produtos capazes de amplificar drasticamente as riquezas disponíveis, foram vistos como uma exaltação da grande capacidade que o ser humano possuía quando se utilizava de instrumentos científicos de estudo e criação. Dessa maneira, incorporar o Direito à esfera da ciência não era apenas uma forma de fornecer uma nova justificativa, mas sim de prover uma justificativa técnica e eficientista, e que, ao mesmo tempo, não poderia ser desconstruída mediante uma nova teoria não validada. O individualismo permite que todos produzam suas próprias verdades, todavia, o indivíduo moderno não iria mais se conformar com as antigas revelações sacras e incontestáveis, era preciso dar nova roupagem ao fundamento legal.

2. Ciência como certeza ou como inovação?

Ao pensarmos na ciência como uma vertente do conhecimento humano que busca analisar e alterar o mundo de maneira imparcial e livre de interferências irracionais e emocionais, podemos chegar à conclusão de que as produções científicas são verdades absolutas. Todavia, essa não é a realidade que permeia os estudos e as elaborações dos mais variados cientistas ao redor do mundo, o elemento diferencial entre a ciência e a crença é que a primeira admite a mudança enquanto a segunda está sempre negando, com ímpeto, todo e qualquer movimento contrário aos seus valores e ditames. Dessa maneira, podemos afirmar que a ciência muda, teorias que antes se mostravam sólidas e adequadas muitas vezes sofrem contestações radicais que alteram o modo como a natureza e o universo vinham sendo compreendidos.

Em contrapartida, é preciso ressaltar que a mudança científica é, ou pelo menos deveria ser, um acontecimento que pressupõe a melhora. Quando novas equações são formuladas, novas teorias são validadas perante o método científico, entende-se que foram produzidas respostas mais adequadas responsáveis por ampliar ou transformar aquilo que antes era utilizado como fonte de conhecimento.

Fonte: https://novaescola.org.br/plano-de-aula/2485/do-que-e-composto-o-atomo

Nesse ínterim, caso a ciência do Direito se imponha como um dos braços de um sistema de elaboração racionalista e empirista cujo objeto de estudo e de geração sejam as normas referentes à conduta humana, é preciso considerar que, com o passar dos tempos, as novas leis seriam necessariamente melhores, ou que passariam por um processo de avaliação que assim as considerasse. Contudo, essa não é a realidade do Direito. Em um sistema republicano e democrático sabemos que os dispositivos legais, constantemente em fabricação, são frutos do embate entre diferentes opiniões e interesses sobrepostos de maneira igualmente participativa e que geram enunciados que contém concessões e reclamações que atendam ao bem comum. As constituições podem ser vistas como limitadores da atividade legislativa, por meio da criação de regras e procedimentos específicos que limitam a sua reforma e a partir da enumeração de princípios fundamentais que não podem ser lesados no momento da cominação legal. Dessa maneira, a validação das leis não segue o rito de um método científico altamente centrado na análise de sua veracidade e adequação, o poder constituinte, do qual o povo é titular, é ilimitado e, portanto, capaz de negar todo o ordenamento jurídico anterior.

“O Poder Constituinte forma a estrutura estatal, com autonomia e sem condicionamentos. As emendas fluem do direito positivo, enquanto o Poder Constituinte é a sua fonte, sem se submeter a regras anteriores. É axiomático afirmar que, se todo poder emana do povo, a atividade constituinte é que lhe confere expressão, revelando a raiz da legitimidade.” (FAORO, 2007)

O Direito como produção participativa e democrática permite que todo indivíduo possa compor os órgãos responsáveis pela criação e votação de novas leis, assim sendo, por mais que muitos consultores legislativos como bagagem técnica estejam envolvidos na confecção do texto normativo, a palavra final sobre a aprovação e alteração legal ainda é de responsabilidade do legislador eleito.

Conclui-se que o Direito está sujeito à mudança, não obstante essa mudança ocorre de maneira muito mais frequente quando comparada com o ritmo de transformação do mundo científico. Contudo, os procedimentos que envolvem essa constante renovação e o modo pelo qual são validados os postulados jurídico-normativos difere da maneira como as inovações acadêmicas e empíricas. Em um Estado Democrático de Direito novas leis são válidas se respeitam o processo legislativo, em adição, estão sujeitas ao controle jurisdicional e à revogação futura. Entretanto, não são feitos testes e nem estudos para avaliar a veracidade de uma lei, as estatísticas podem servir de argumentos para defender ou atacar determinado enunciado, porém a argumentação e a retórica definem a sua manutenção ou a sua derrocada. A política cria, altera e extingue o Direito.

3. Direito e ciência segundo a Teoria Pura do Direito

O debate acerca da possibilidade de conceber um status de ciência ao Direito esteve presente na principal obra de um dos, se não o maior, jurista do movimento positivista do século XX. A dificuldade de atribuir tal conotação a uma esfera normativa que deriva de construções políticas encontrou uma alternativa formulada pelo austríaco ao propor uma divisão entre ciência do Direito e Direito como atividade prática. Desse modo, distinguindo as chamadas teoria estática e teoria dinâmica do Direito o autor afirma:

“As proposições ou enunciados nos quais a ciência jurídica descreve estas relações devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e de serem observadas pelos destinatários do Direito. Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica - nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições e pressupostos fixados por esse ordenamento devem intervir certas consequências pelo mesmo ordenamento determinadas.” (KELSEN, 2019)

Destarte, separar o Direito, entre produção normativa de uma autoridade legítima e o seu estudo, possibilitaria a formação de uma ciência do Direito desvinculada do caráter político que envolve a formação de uma norma, uma vez que mesmo que o objeto de estudo seja fruto da vontade humana nada impede que uma análise científica a respeito de seu conteúdo seja feita:

“A ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim dizer – o Direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento. Os órgãos jurídicos têm - como autoridade jurídica - antes de tudo por missão produzir o Direito para que possa então ser conhecido e descrito pela ciência jurídica” (KELSEN, 2019)

A ciência do Direito não teria um caráter impositivo, ou seja, sua preocupação estaria centrada em uma função descritiva e não normativa. O indivíduo, inserido em uma sociedade democrática, confia a seus representantes eleitos o papel de deliberação e decisão acerca do conteúdo e a aplicação das leis, desse modo, o único juízo de valor que poderia ser atribuído a determinada norma seria referente a sua validade. Por outro lado, as produções de um cientista jurídico seriam avaliadas conforme a sua veracidade, na medida em que não impõem nenhuma ação, omissão ou permissão, mas apenas expõem reflexos a respeito de seu objeto: o Direito. O cientista quando realiza uma série de experimentos e estudos, capazes de comprovar a capacidade imunológica de uma vacina aplicada a um ser humano, apresenta uma descrição indutiva de um fenômeno da natureza. Nesse ínterim, ele não ordena que todos os cidadãos devam ser obrigados a tomar a vacina, esse papel cabe às autoridades de um Estado por meio de seu poder normativo e sancionador.

Conclui-se que a defesa de Kelsen, e de muitos outros positivistas contemporâneos, é capaz de conferir uma identidade científica ao Direito, todavia, na medida em que estuda descreve um fenômeno humano e não natural, caracteriza-se como uma ciência social.

4.Direito e ciência: interdisciplinaridade como a chave da produção de conhecimento

A resposta formulada por Hans Kelsen me parece ser parcialmente adequada ao dilema enfrentado por diversos juristas. O Direito como ciência só pode ser sustentado caso seja removido o elemento político que lhe constitui, tal façanha é alcançada quando estruturamos uma ciência jurídica com uma função exclusivamente descritiva e não normativa. Contudo, como verificar a veracidade das proposições jurídicas a que Kelsen se referia? O autor afirma que as proposições jurídicas estão sujeitas à relação do dever-ser e não à causalidade, presente nas ciências naturais. Todavia, o que constituiria o dever-ser? Caso a resposta estivesse na natureza humana, a pretensão científica que tanto criticava o jusnaturalismo entraria em profunda contradição.

“Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que quando A é, B é, mas que quando A é, B deve ser, mesmo quando B, porventura, efetivamente não seja. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica, diferente do da ligação na lei natural, resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma estabelecida pela autoridade jurídica - através de um acto de vontade, portanto – enquanto que a ligação de causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer afirmação desta espécie.” (KELSEN, 2019)

A ciência do Direito, portanto, por mais que realizasse uma função descritiva, ainda sim estaria estruturada sobre a premissa de um dever-ser fruto da vontade humana. Dessa maneira, o estudo do Direito, como pensava Kelsen, não poderia ser considerado uma ciência, mesmo que uma ciência social. O Sociólogo, como um pesquisador da sociedade, tem por objeto as relações e comportamentos humanos que se desenvolvem e se perpetuam diariamente, assim sendo, busca expor suas teorias para explicar os seus motivos criadores. Todavia, não é possível afirmar que determinada teoria é falsa ou verdadeira, haja posto que o comportamento humano não se constitui da mesma forma que o movimento dos corpos etéreos e das vidas irracionais. Uma ciência do Direito na qual se busca justificar suas premissas com base em um ato volitivo não representa um saber científico, somente por meio da interdisciplinaridade o estudo do Direito pode encontrar uma base capaz de produzir um conhecimento mais próximo do método científico.

A limitação à ordem jurídica vigente, representada nas formulações de Kelsen, impede uma postura crítica fundamental a um cientista. Essa postura crítica não diz respeito à um juízo de valor, o jurista que reduz suas proposições a um conteúdo normativo e descritivo, em conformidade com um ato de vontade constitutivo do ordenamento jurídico, não permite a entrada de outros fenômenos diversos em seus estudos. Ao considerar uma conduta prescrita como inadequada, o jurista não estaria se valendo, necessariamente, de sua carga emocional, mas sim apresentando elementos, fora da ordem jurídica vigente, aptos a promover uma justificativa de sua posição. Essa ampliação do escopo de atuação do cientista jurídico pode promover uma superação ao pensamento restritivo de Kelsen:

“Na medida em que a ciência jurídica em geral tem de dar resposta à questão de saber se uma conduta é conforme ou é contrária ao Direito, a sua resposta apenas pode ser uma afirmação sobre se essa conduta é prescrita ou proibida, cabe ou não na competência de que a realiza é ou não é permitida, independentemente do facto de o autor da afirmação considerar tal conduta boa ou má moralmente, independentemente de ela merecer sua aprovação ou sua desaprovação” (4)

É contra essa posição que Ronald Dworkin, importante jurista crítico do positivismo clássico, afirma:

"Portanto, as interdependências entre as diversas partes de uma teoria geral do direito são complexas. Além disso, nesse sentido, uma teoria gral do direito terá muitas ligações com outras áreas da filosofia. A teoria normativa irá assentar-se em uma teoria moral e política mais geral, que poderá, por sua vez, depender de teorias filosóficas sobre a natureza humana ou a objetividade da moral. A parte conceitual fará uso da filosofia da linguagem e, portanto, também da lógica e da metafísica. Por exemplo, a questão do significado das proposições do direito e de sua verdade ou falsidade tem ligações imediatas com questões muito difíceis e controvertidas da lógica filosófica. Por essa razão uma teoria geral do direito deve constantemente adotar uma ou outra das posições em disputa a respeito de problemas de filosofia que não são especificamente jurídicos.” (DWORKIN, 2010)

Dworkin defendia uma participação da filosofia como parte integrante de uma teoria do direito, o que, a partir de um ponto de vista metafísico, iria contra a possibilidade de conferir um status científico ao saber jurídico. Todavia, seu posicionamento foi importante para desconstruir a restrição e a falta de crítica presentes no positivismo liberal clássico. Dessa maneira, a economia, a história, a sociologia e até mesmo os estudos das ciências naturais poderiam contribuir para o trabalho de um cientista do Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COSTA, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020.

FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade resgatada. ln:_______. A República inacabada (org. Fábio Konder Comparato). São Paulo: Globo, 2007.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. Portugal: Almedina, 2019.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério.3ª Ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2010.