Nesta publicação pretendemos nos debruçar sobre a provocação acerca do papel do jusnaturalismo ou direito natural na prática jurídica. É ele, de fato, silencioso, decorativo e pouco significativo? Uma estranha xícara sem uso que nos espia do aparador?

Paulo Nader (2020) reconhece nos direitos naturais os atributos da fixidez e generalidade. Eles seriam eternos, imutáveis e universais. Conquanto o Jus Naturae não possua caráter normativo, ele se apresenta em grandes princípios, cuja fonte é a ordem natural das coisas, tal qual o direito à vida, à liberdade, à igualdade de oportunidades. Trata-se, pois, de direitos a-históricos que se impõem incondicionalmente.

Nader também reconhece que as mudanças na sociedade reclamam adequada renovação nos instrumentos legais, importando em reformulação na ordem jurídica que devem, por sua vez, realizar-se em consonância com a vontade popular e respeitando sempre os princípios informados pelo Direito Natural.

Não há incompatibilidade entre o Direito Natural e o processo histórico ou dialético. O substrato é fixo; as aplicações, variáveis. Como princípio, é inquestionável. A extensão de seu exercício, porém, é cambiável em função das condições históricas. A regulamentação positiva do Direito exige o concurso da razão e a presença do valor justiça, a fim de que as fórmulas de adaptação preservem a sua essência. (NADER, 2020)

Nader ensina ainda que, considerado objetivamente, o Direito Natural é um conjunto orgânico de princípios que deve orientar o Estado em sua tarefa de organizar a sociedade, tomando-se por referência a natureza humana. Do ponto de vista subjetivo, o Direito Natural identifica-se com o poder de viver e desfrutar de liberdade, sob a garantia de igual oportunidade.

Costa afirma que as pessoas, em geral, acreditam na existência de um conjunto de direitos decorrentes da natureza das coisas, portanto estariam se orientando pelo jusnaturalismo. No mesmo sentido, Nader assinala que o homem médio da sociedade orienta-se socialmente pelo chamado conhecimento vulgar do Direito e pelos princípios do Direito Natural.

Não obstante a simples experiência de vida induzir as pessoas, em geral, a perceberem os princípios fundamentais do jusnaturalismo,Costa afirma que o Direito Natural é irrelevante na prática jurídica e, em épocas de normalidade institucional, permanecem em silêncio, apenas vindo à tona “os mitos fundantes em momentos de crise, em que a própria ordem é questionada”.

Por sua vez, Nader destaca o relevante papel de iluminação do jusnaturalismo na atividade legiferante do Estado. Para este justifilósofo, o legislador deve fundamentar-se em princípios do Direito Natural na elaboração dos textos legais, moldando o ordenamento jurídico e tecendo os modelos legais.

Enquanto as leis positivas ordenam a sociedade, o Direito Natural influencia as fontes geradoras de normas jurídicas, que devem ser receptivas àqueles princípios maiores. Importante, todavia, é que o papel do Direito Natural não se esgota em sua função indicativa. É opinião prevalente na Filosofia do Direito que o sistema de legalidade, por si só, não é suficiente, pois pressupõe ainda legitimidade e entre as fontes de legitimidade encontra-se o Direito Natural.

Nader destaca ainda que, no âmbito da prática judicial, a função ordenadora do Direito Natural se manifesta quando se identificam os princípios gerais de Direito, quando se autoriza o magistrado a decidir com equidade, quando se registram diferentes formas de resistência ao direito ilegítimo.

Nesse último aspecto, o STF já debateu acerca do Direito Natural de fuga de custodiados pelo sistema prisional no julgamento do Habeas Corpus RHC 84851 / BA em que o Ministro Marco Aurélio argumentou que há o direito natural de fuga de um ato que entenda ilegal, pois é algo natural, inato ao homem.

PRISÃO PREVENTIVA - EXCESSO DE PRAZO - FUGA DO ACUSADO. O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo. (STF, RHC 84851 / BA, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 01/03/2005, Publicação: 20/05/2005, Órgão julgador: Primeira Turma) (grifei)

O Professor Frederico Augusto Bonaldo Silva realizou estudo em que argumenta a favor da hipótese de que “o direito natural não é um tema vetusto nem etéreo, mas uma realidade cujos indícios podem ser aferidos no raciocínio jurídico e na atividade cotidiana dos juristas contemporâneos.”

Silva realizou uma análise da decisão monocrática do Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki na Ação Cautelar 4.070, confirmada unanimemente  pelo pleno do STF, concluindo que nesta decisão há indícios da vigência do direito natural correspondente com a Teoria do Jusnaturalismo Clássico.

Em síntese, a Ação Cautelar 4070 se tratava de pedido do Procurador-Geral da República para que o STF decidisse liminarmente pelo afastamento do Deputado Eduardo Cunha, tanto do cargo de deputado federal como da função de Presidente da Câmara dos Deputados, sob a alegação de que este se aproveitava do poder de influência que estes dois postos lhe conferiam para obstruir o andamento das ações penais em que era réu, das investigações correlatas em curso e do processo disciplinar de que era alvo no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.

Tendo em vista não haver nenhum dispositivo no ordenamento jurídico brasileiro que trate da suspensão dos mandatos parlamentares e dos ocupantes da Presidência das casas legislativas federais, Teori Zavascki formulou uma regra de acordo com os seguintes parâmetros decisórios, conforme concluiu Silva.

1. “O Min. Zavascki sustenta que o modo adequado de interpretação da Constituição é ler os seus textos em cotejo com a realidade presente. Isto coincide com a tese do jusnaturalismo clássico de que a positivação permanente de dispositivos jurídicos nunca é completa e que não exaure o significado deles, que só pode ser apreendido mais amplamente na natureza humana e das coisas que configuram a parcela de realidade que vai subsumir-se na generalidade desses dispositivos; “

2. Teori Zavascki argumenta que a suspensão de Eduardo Cunha tem respaldo em princípios jurídicos do sistema constitucional brasileiro, dos quais se pode extrair uma regra.

3. “O Min. Zavascki lamenta-se de que não haja na CR 88 uma regra que ordene a suspensão funcional imediata dos ocupantes dos cargos de liderança máxima do Congresso Nacional contra os quais se instaure uma ação penal, pois essa regra seria muito conveniente para evitar os danos institucionais que decorriam da atuação de Eduardo Cunha. No mesmo sentido, o jusnaturalismo clássico afirma que a maioria das exigências naturais de justiça devem ser positivadas quando detectadas;”

4. (...) “Este modo de conceber a interpretação dos princípios constitucionais vai ao encontro da convicção recente de adeptos do jusnaturalismo clássico de que a enunciação e até mesmo a positivação de princípios constitucionais não esgota o debate acerca do conteúdo e da dimensão deles, que só podem ser hauridos nas exigências naturais de justiça surgidas do cotejo desses princípios com as peculiaridades do caso sub iudice;”

5.Teori Zavascki argumenta que a possibilidade do então Presidente da Câmara dos Deputados vir a ser Presidente da República, ainda que temporariamente, impõe riscos à credibilidade das principais instituições políticas do Brasil. Esta não parece ser uma razão jurídica primordialmente positiva, mas uma exigência de justiça derivada primariamente da condição ou natureza humana.

6. “Nas páginas finais da sua decisão, Teori Zavascki afirma que o afastamento temporário de Cunha é ordenado pela Constituição da República na medida em que esta prevê os princípios da probidade e da moralidade como guias do comportamento dos agentes políticos. Ora, a força deôntica dos princípios constitucionais não pode provir da sua simples inclusão no Direito vigente – porque configuraria uma passagem logicamente equivocada de um fato social a um dever humano –, nem dos procedimentos metódico-cognitivos a que juízes que contemple o caso em questão, ainda que estejam inicialmente implícitos e que, quando revelados, exibam um conteúdo altamente amplo. Este modo de pensar é consoante com a noção de equidade romana clássica, obra dos jurisconsultos do período de apogeu do Direito romano, que são um dos grandes artífices da teoria do direito natural clássico”.

Assim, diante da provocação em epígrafe, podemos assinalar que o Direito Natural tem seu espaço de fala na prática jurídica, seja na atividade legiferante do Estado, seja na aplicação do direito pelos órgãos judiciais, servindo ainda de base fulgurosa para a argumentação jurídica, informando parâmetros de justiça derivado da natureza humana e da natureza das coisas que rodeiam os seres humanos e ainda moldando a ordem jurídica que rege a sociedade, tornando-a continuamente mais justa possível.

REFERÊNCIAS

NADER. Paulo. Filosofia do Direito. 27. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

COSTA, Alexandre. O jusnaturalismo decorativo. Arcos, 2020.

SILVA, Frederico Augusto Bonaldo. Correspondências entre o jusnaturalismo clássico e a decisão monocrática na Ação Cautelar 4.070, confirmada pelo pleno do STF. Um indício da vigência do Direito Natural. Caderno do Programa de Pós Graduação em Direito PPGDir/UFRGS. Edição Digital, Volume XII, Número 1, Porto Alegre, 2018, p. 79-106.

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