Basta estudar um pouco da história do Brasil para perceber que a nossa democracia nunca foi sólida. Ao longo dos aproximadamente 130 anos desde a Proclamação da República, vivemos períodos de estabilidade alternados com períodos de incertezas, nos quais as vontades do povo são deixadas de lado quando confrontadas com os interesses daqueles no poder.

Acontece que os poderosos no país, ao contrário do que muitos pensam, não são apenas os políticos e integrantes do Legislativo e do Executivo. Aqui, o poder sempre esteve nas mãos de integrantes das classes dos empresários, de juristas, de parte das igrejas, dos militares, etc. Desta forma, os golpes que foram dados ao longo dos anos sempre vestiram uma capa de “vontade do povo”, se colocando como atuações legítimas no sistema democrático.

A mais recente crise, se é que é uma nova, e não apenas remanescente de todas as anteriores, teve seu início nos protestos de 2013, nos quais o povo, em todo seu direito, foi às ruas para reivindicar um sem-número de demandas. Nas eleições de 2014, no entanto, a crise se agravou. Acontece que a então presidente Dilma Rousseff, mesmo frente à crise de popularidade, foi reeleita, o que foi de encontro com os interesses dos poderosos mencionados acima, que começaram a agir para, mais uma vez, colocar em xeque a credibilidade da nossa democracia.

De início, esses grupos trabalharam para questionar e desacreditar o resultado das urnas. No entanto, quando perceberam que este movimento não resultaria no cancelamento das eleições, como parece ter sido pretendido, voltaram seus esforços para articular o impeachment da presidente. Desde então, a população tem vivido em constante insegurança, tentando encontrar culpados para os problemas que vivemos.

Um sistema político como a democracia não se sustenta se não houver apoio da população a quem ele serve. Acontece que, no Brasil, a população tem uma resistência, uma desconfiança histórica das instituições e daqueles que dão rosto a todos estes problemas que enfrentamos – os políticos. Esta ideia de que os políticos são os únicos responsáveis pelas nossas agruras, além da ideia de que são “todos farinha do mesmo saco”, contribuem para o entendimento coletivo de que a política por si só é um problema, e que os políticos jamais trabalharão para nada que não sejam seus próprios interesses.

O ódio pela política dá espaço para que aqueles que se vendem como os mais “antipolíticos” ganhem espaço nas urnas – como Trump nos EUA, Dória em São Paulo e o atual presidente do Brasil que embora se apresente como o não-político, passou 28 anos com mandato e sem apresentar nenhuma proposta minimamente relevante -, o que é extremamente interessante para aqueles grupos verdadeiramente poderosos mencionados anteriormente.

A alta desconfiança frente ao governo que se tem hoje em dia se relaciona, e muito, com o ceticismo trazido por Carl Schmitt na sua obra “Sobre a diferença entre sistema parlamentar e democracia”. Neste, o teórico político concentra a sua crítica, principalmente, nas instituições liberal-parlamentaristas, que, ao seu ver, eram completamente corrompidas pelas vontades egoísticas dos políticos integrantes.

Condenava-se os Parlamentos por eles se fundamentarem nos princípios do debate e da publicidade das questões públicas, mas não dar a estes real aplicabilidade, e somente aparência de funcionalidade. No fundo, na visão de Schmitt, as instituições parlamentares eram verdadeiras negociatas, onde os participantes se coligavam com um único e exclusivo fim: o proveito próprio.

Dessa maneira, desaprovava-se a falta de identidade do tão dito instituto democrático – o Parlamento – com o seu povo. Schmitt defendia que a moderna democracia de massas traz em si compatibilidade entre o governante e os governados, fenômeno este que não ocorria na democracia liberal-parlamentarista da época. As decisões tomadas no meio parlamentar não condiziam com a vontade popular, ou melhor, com o bem comum. As discussões em portas fechadas e inacessíveis à população, impossibilitavam a aferição da validade das conclusões ali tomadas.

Todavia, cabe esclarecer que a argumentação schmittiana, apesar de crítica às negociações políticas, não realiza chamamento pela ética. Assim, a preocupação do filósofo não se baseava na forma ou nos valores por detrás das decisões tomadas, mas que estas fossem de fato tomadas a partir de balanceamento de discussões. O primordial é o discurso e o contra discurso, é a efetivação da condição de algo público. É sob essa perspectiva que Schmitt defende uma democracia baseada na homogeneidade e a existência de uma concepção de verdade absoluta.

Assim, tem-se clara relação entre as concepções schmittianas e o forte ceticismo contemporâneo da população brasileira. A descrença frente às instituições do Congresso Nacional e aos seus integrantes tende a seguir a mesma lógica schmittiana, ou seja, que os eventos ali desenvolvidos não passam de negociatas. Preocupante parcela da população não se identifica com os seus representantes mais, tampouco com as suas decisões, o que remete
novamente à definição de Schmitt de democracia, na qual é imprescindível identidade entre os governantes e os governados.

É alarmante a contemporaneidade do discurso schmittiano e como que as suas ideias mais radicais – como a figura de uma democracia homogênea e a existência de uma verdade inquestionável – também estão conquistando espaço nos debates políticos atuais. Tal fato demonstra a necessidade de reavaliação do sistema político brasileiro como um todo, não somente pela população, mas também pelos representantes. Uma crise política não pode ganhar tal proporção que nos cegue da nossa ética e nos afaste de uma vida em comunidade mais harmônica e íntegra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bueno, Roberto (2012). Carl Schmitt e a crítica à democracia liberal. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 16, n. 24.

Bueno, Roberto. Democracia ou oligarquia? O controle invisível da política. Tempo soc. [online]. 2017, vol.29, n.1 [cited 2021-04-20], pp.305-325.

Bueno, Roberto. A representação em Carl Schmitt: O catolicismo romano e o caso da política. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 29, n. 47, p. 455-479, maio/ago. 2017.

Schmitt, Carl. Political Theology. Vide Z-Library.

Schmitt, Carl. A crise da democracia parlamentar. Vide Z-Library.