Para Paul Silbert, aquilo que é evidente não chama nossa atenção. A tese de que o Direito é um conjunto de normas (e não um conjunto de Direitos subjetivosou um conjunto de deveres ou um conjunto de conceitos) se tornou tão dominante que às vezes é difícil mensurar a relevância da contribuição do normativismo para a nossa compreensão do Direito.
A definição simplificada do Direito como mostrar o iminente autor esconde um fervoroso discurso sobre a ordem jurídica e seu pressuposto de validade. Nosso sistema jurídico-normativo foi desenhado, debatido e postulado por gigantes do qual figura Kans Kensel e Niklas Luhmann. Nesse sentido, tratamos de forma resumida a ideia subjacente sobre o Direito na concepção desses autores.
i. Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito)
Inicialmente, segundo Kelsen, a finalidade da ciência do Direito não é regular a sociedade, mas de descrever e estudar as normas e as relações humanas nelas contidas, a conduta humana apenas interessa como objeto de leis. (KENSEL, 2006, p.96). Com isso, o autor procura dar uma perspectiva realista de Direito positivo, abstendo-se a sua teoria do estudo de interações sociais, focando sua análise na estruturação da ordem jurídica.
Para Kelsen, “ordem” é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem (KELSEN, 2006, pág. 21-22).
Na medida em que a ordem jurídica é uma ordem social, ela somente regula, de uma maneira positiva, a conduta de um indivíduo enquanto esta se refere - imediata e mediatamente - a um outro indivíduo. É a conduta de um indivíduo em face de um, vários ou todos os outros indivíduos, a conduta recíproca dos indivíduos, que constitui o objeto desta regulamentação (KELSEN, 2006, pág. 22).
Kelsen entende que o Direito é uma ordem coativa, não no sentido de que ele - ou, mais rigorosamente, a sua representação - produz coação psíquica; mas, no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos. Pressuposto deste gênero é em primeira linha - mas não exclusivamente, uma determinada conduta humana que, pelo fato de ser tornada pressuposto de um ato coercitivo que é dirigido contra a pessoa que assim se conduz, se transforma em conduta proibida, contrária ao Direito e que, por isso, deve ser impedida, devendo a conduta oposta - socialmente útil, desejada, conforme ao Direito - ser fomentada (KELSEN, 2006, pág. 23-24).
Sendo assim, o Direito é uma ordem coativa não significa - como às vezes se afirma - que pertença à essência do Direito “forçar” a conduta conforme ao Direito, prescrita pela ordem jurídica. Esta conduta não é conseguida à força através da efetivação do ato coativo, pois o ato de coação deve precisamente ser efetivado quando se verifique, não a conduta prescrita, mas a conduta proibida, a conduta que é contrária ao Direito. Precisamente para este caso é que é estatuído o ato coativo, que funciona como sanção
Kelsen reforça a ordem coativa do Direito, não no sentido de que ele - ou, mais rigorosamente, a sua representação - produz coação psíquica; mas, no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos
O indivíduo a quem a ordem jurídica atribui poder para aplicar a coação pode ser considerado como órgão da ordem jurídica, ou - o que é o mesmo - da comunidade constituída pela ordem jurídica, pode a execução de atos de coerção, realizada por este indivíduo, ser imputada à comunidade constituída pela ordem jurídica (KELSEN, 2006, pág. 25).
Por fim, Kelsen conclui que estamos perante um monopólio da coação por parte da comunidade jurídica. Este monopólio da coação está descentralizado quando os indivíduos que têm competência para a execução dos atos coativos estatuídos pela ordem jurídica não têm o caráter de órgãos especiais, funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, mas é aos indivíduos que se consideram lesados por uma conduta antijurídica de outros indivíduos que a ordem jurídica atribui o poder de utilizar a força contra os violadores do Direito - ou seja, quando ainda perdura o princípio da autodefesa (KELSEN, 2006, pág. 25).
ii. O Direito como generalização congruente (Sociologia do Direito)
Percursor da Teoria Geral dos Sistemas Sociais, o elemento central da Teoria de Nicklas Luhmann é a comunicação, que tem o papel de regular as relações entre o sistema e o ambiente. Segundo Luhmann, a sociedade é composta por vários sistemas sociais comunicativos e parte do pressuposto de que a sociedade moderna é um sistema mundial de grande complexidade com diversos sistemas que geram condições para si próprios e para os outros ao seu redor, por exemplo, sistema social, política, religioso etc.
Nesse contexto, o Direito nasce com o objetivo de resolver conflitos e se reinventa a partir de um processo de autopoiese, ou seja, a partir de suas próprias estruturas o Direito se reproduz e se desenvolve, mas em hipótese alguma poderá suprimir a si mesmo.
Sendo assim, Direito e sociedade mantêm constante e recíproca relações (acoplamento estrutural). O Direito é uma estrutura social e constitui parte da sociedade, sua função essencial é reduzir a complexidade desestruturada da sociedade como também fazer com que esta se torne mais alta e estrutura. Portanto, Direito “é uma construção de alta complexidade estruturada”, sem o qual não se pode orientar as condutas das pessoas no meio social. (LUHMANN, 1983, pág. 109).
Para Luhmann, o comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de reduções que possibilitam expectativas comportamentais recíprocas e são orientadas a partir das expectativas sobre tais expectativas (LUHMANN, 1983, pág. 109).
Essas estruturas de expectativas na dimensão temporal podem ser estabilizadas contra frustrações por meio de normatização. Na dimensão social podem ser institucionalizadas, ou seja, podem ser apoiadas a partir de terceiros. Na dimensão prática podem ser fixadas externamente através de um sentido idêntico, compondo uma interrelação de confirmações e interações recíprocas (LUHMANN, 1983, pág. 109-110).
Luhmann concebe o Direito com estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente das expectativas comportamentais normativas, quer dizer, que impede que as expectativas comportamentais normativas entrem em conflito umas com as outras. Para estabilizar-se, as expectativas precisam passar por generalização temporal, social e prática. Ocorre que as três modalidades de generalização se limitam reciprocamente, delimitando o campo de expectativas que podem ser bem-sucedidas em todas elas. Isso não quer dizer que exista um conjunto fixo de expectativas normativas comportamentais que são as únicas capazes de tripla generalização (o que implicaria num Direito único e imutável), mas sim que o campo de expectativas comportamentais normativas que podem tornar-se Direito não é, em cada caso, indefinidamente amplo e variável (LUHMANN, 1983, pág. 110-117).
A validade do Direito é resultado da manutenção da unidade do sistema e decorre do próprio fechamento operativo por interação dentro do próprio sistema. Isso que significa que o direto se autovalida, portanto, não pode ser tratado como norma, pois não gera expectativas. A norma é apenas um símbolo atrelado às operações do sistema e sua validade é aferida em relação a um determinado observador que está em constante modificação com o resto do sistema.
O fechamento operativo funciona como um filtro para separar a entrada de informações no sistema, tem a função de reduzir a complexidade das informações decorrentes da abertura cognitiva como também de afastar as informações irrelevantes, tudo isso a partir de observações ocorridas de dentro deste sistema.
Segundo Luhmann, a generalização temporal por meio de normalização exige a adoção de mecanismos de processamento, dos quais nem todos são igualmente passíveis de generalização social e prática. De todos os meios possíveis de processamento, a sanção foi o mais bem-sucedido. Da mesma forma, a generalização social exige alguma das formas de institucionalização, das quais nem todas suportam uma generalização temporal e prática (LUHMANN, 1983, pág. 117-118).
A forma de institucionalização que foi mais bem-sucedida foi o processo (judicial ou legislativo). Finalmente, de todos os níveis de generalização prática, o mais bem-sucedido em suportar generalização temporal e social foram os programas. Sanção, processo e programas são, pois, não tanto características definidoras do Direito, mas sim conquistas evolutivas do Direito no exercício de sua função social (a generalização congruente). Todas as sociedades têm Direito, mas somente em algumas a generalização congruente se tornou tão complexa a ponto de instituir sanção, processos e programas (LUHMANN, 1983, pág.118-123).
iii. Análise crítica
Para Kensel, o Direito se reveste de uma ordem normativa de coação, mas não se pode atribuir a todo o sistema jurídico essa noção, uma vez que ao se falar em ordem deve-se ter a preocupação com um sistema que deve ser um todo unitário e coerente, sem que existam lacunas ou brechas.
Ao contrário de Kelsen, Luhmann pensa na adequabilidade social do Direito e, com isso, acaba por reforçar o próprio sistema do Direito. Essa teoria, portanto, deixa aberto o sistema do Direito para interações sociais, ao contrário da Teoria Pura do Direito, que trouxe um fechamento sintático-semântico do sistema pela norma fundamental.
O fundamento de validade das normas é visto de forma diferente, para Kelsen a validade das normas inseridas em uma ordem jurídica decorre da obediência de norma hipotética fundamental, que objetiva estruturar o sistema jurídico normativo.
Luhmann defende que o fundamento de validade do Direito, e não das normas porque estas não geram expectativas, decorre do fechamento operativo do sistema jurídico, sendo que o Direito se autovalida para manter a unidade do sistema.
A ideia de generalização congruente é de aceitação, um suposto consenso. Dessa forma, os indivíduos não precisam aceitar concretamente a ordem, mas ter uma noção mínima do que é lícito ou ilícito. Com isso, pressupõe-se que o outro irá respeitar a ordem normativa. Não é aceitação, mas quem age contrariamente ao sistema normativo já espera uma reação contrária.
Por fim, para Kelsen, o indivíduo a quem a ordem jurídica atribui poder para aplicar a coação pode ser considerado como órgão da ordem jurídica, ou mesmo, da comunidade constituída pela ordem jurídica. Diferentemente, para Luhmann, todas as sociedades têm Direito, mas somente em algumas a generalização congruente se tornou tão complexa a ponto de instituir sanção, processos e programas.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 33-40 (cap. I.6.a-b.α-β).
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, pp. 109-123”.
LUHMANN, Niklas. Sociedade y sistema: laambición de lateoría, pp. 47, 60 e ss; IDEM.Teoría política enel Estado de Bienestar, pp. 69 e ss.
SILBERT, Paul. Trialetic theory of morals. Ontario: Highlander, 1986.