Autores: Guilherme Domingos dos Reis, Raíck Junio dos Santos Silva, Rebeca Cristina Pereira Araújo, Jhonas de Sousa Santos, Carlos Alberto Rabelo Aguiar e Adriano Augusto Araújo Magalhães

​ O positivismo, sendo uma teoria surgida no século XIX, adotava uma visão hierarquizante e teleológica dos saberes humanos. Inicialmente, elegia o conhecimento científico como superior aos metafísicos filosóficos e aos religiosos. E, em relação às ditas ciências, Auguste Comte punha em um patamar mais alto áreas como a Física, a Química e a Biologia.

​ Nesse contexto, o Direito, assim como a Filosofia, não recebeu bem a crítica humeana. Conforme expôs o filósofo escocês, a razão humana não tem como definir os valores em si, uma vez que estes são apenas fruto da consolidação sociocultural de sentimentos morais compartilhados por determinado grupo (COSTA, 2020d, págs. 1-2).

​ A seara jurídica, então, passou a buscar meios de se afirmar enquanto um saber tão científico quanto os demais. A influência desse pensamento pode ser sentida muitas décadas depois de Kelsen publicar A Teoria Pura do Direito, uma vez que as provas do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), principalmente na primeira fase, privilegiam o saber objetivo. A memorização enciclopédica de conceitos normativos e de precedentes judiciais demonstra como a pretensão racionalizante e lógica ainda persiste no âmbito jurídico.

​ Entretanto, a noção do Direito enquanto ciência encontra algumas dificuldades. A primeira é a de que a linguagem jurídica, ao contrário da utilizada pelas ciências exatas, é prescritiva, e não descritiva. Dessa forma, o discurso do Direito é argumentativo, o que o torna um instrumento de modificação da percepção sobre a realidade. Conforme a teoria habermasiana, a razão comunicativa, sendo pautada no diálogo e na construção de uma esfera pública minimamente consensual, exige uma fundamentação discursiva capaz de gerar identidade entre entes diversos (SILVA, 2001, págs. 6-7). Nesse contexto, o saber jurídico serve mais como um meio de construção de narrativas do que como um saber empírico e objetivo sobre o mundo.

​ A segunda dificuldade é a inexistência de um método comprovadamente eficaz para a validação dos ditames jurídicos. Diferentemente do método científico desenvolvido por Francis Bacon, a validação das normas jurídicas não tem uma base comum. Ao longo da História, tal base já foi o poder divino dos reis, o direito natural, a soberania popular e a norma fundamental. Assim, o elemento justificador do Direito é incerto até para os próprios juristas, o que dificulta uma universalização dos princípios e das regras por ele elencados.

​ Outrossim, a proposta jurídica de coerção social do Direito almejou, pela unificação do poder e a codificação das leis, ter o controle das inúmeras hipóteses de transformação da realidade, razão pela qual o monopólio da violência legítima mostrou-se como uma das medidas mais eficazes para unificar e desenvolver o Estado moderno (COSTA, 2020a). Por conseguinte, a incerteza a respeito da universalização de regras e princípios tem como característica a necessidade de correspondência “científica” entre os conceitos jurídicos e a realidade concreta para prescrever modelos de comportamentos.

​ Assim, a experiência humana da linguagem — costumeiramente dialógica —, é traduzida no Direito pela restrição e categorização, em busca de uma suposta essência das coisas. Verifica-se, pois, a tentativa angustiante de reduzir a complexidade da realidade, permitindo o domínio sobre os objetos de estudos (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 28-29). Há o direito penal, o direito administrativo, o direito civil, o direito comercial etc., cada uma destas subáreas sendo responsável por estabelecer padrões de validade e legitimidade acerca de seus campos de atuação.

​ Ou seja, diferente das ciências naturais, que têm como base a experiência aplicada ao método, o positivismo jurídico é construído por meio de um juízo abstrato-normativo, que não é obrigado a manter-se próximo dos interesses da sociedade, a depender de como o poder político é exercido. As experiências totalitárias e antidemocráticas revelam, sobretudo, que a ótica de universalizar o mundo pode ser incompatível e prejudicial à ordem jurídica quando se desprezam as individualidades.

​ Como justificar a perseguição política de indivíduos de determinada raça, crença ou origem étnica para defender os interesses jurídicos de uma nação? Quando saber se a universalização jurídica distorce inteiramente a própria visão de mundo de uma geração? Qual é o conceito de uma guerra justa e quando abrir mão de milhares de vidas se torna juridicamente aceitável?

​ Esse contexto injustificável constitui uma crise no qual a solução não é um sistema ideal, perfeito e universal devendo a política estar atrelada aos interesses sociais reais, sem ignorar as individualidades presentes em um cenário macro (HAMADA, 2016 apud FILHO 2019). David Hume, em consonância com os pensamentos de Maquiavel, faz alusão a necessidade de boas leis para se alcançar a estabilidade política. Contudo, as instituições que atuam de forma distorcida ante as deficiências sociais alimentam um agrupamento estatal corrompido com respaldo legal.

​ Toda essa sistemática acaba gerando uma problemática cíclica baseada em uma justificação inalcançável que, se em determinado momento parece lógica, na verdade padece de aplicação na realidade. Por isso a importância de estudar os vícios e os desvios políticos não só apenas em governos tirânicos e violentos ou em período de risco institucional ou desorganização política, visto que no sistema, a fecundidade do mal se processa na prática de suas próprias instituições (HUME 1963 apud FILHO 2019).

​ É válido salientar que todo governo, desvinculado de seus ideais, possui como base a opinião popular identificada por duas espécies definidas por Hume: a opinião de interesse, quando há um sentimento geral de que os governantes favorecem os interesses do povo; e a opinião de direito, quando há uma convicção generalizada de que os governantes têm direito de exercer o poder. Interessante ressaltar que ambos se encontram atualmente positivados juntamente com princípios complementares que regem e resguardam a atividade governamental alheia aos interesses sociais (FILHO, 2019, p. 14). Com isso, sendo a base política estatal sustentada de forma positiva e interligada com a opinião pública, o óbice que se institui à universalização é muito amplo, além de ser impreciso, ante as deficiências identificadas.

​ No mais, como supramencionado, apesar de ter sido formalmente abandonado pela cultura jurídica a partir do século XX, através do intitulado giro linguístico hermenêutico, o discurso positivista cientificista continua vivo no pensamento jurídico contemporâneo - como uma espécie de jusnaturalismo silencioso (COSTA, 2020).

​ No Brasil, esse projeto positivista naturalista sempre esteve presente no senso comum dos juristas, principalmente após a transmutação do modelo constitucionalista de raízes liberais no século XIX. Nesse contexto, a comunidade jurídica criou uma espécie de consenso acerca das bases do direito contemporâneo, que deveria ser respeitada a todo custo (COSTA, 2020). Categorias como “democracia representativa”, “soberania popular” e “judicial review” eram entoadas – e ainda são – como mantras sagrados da cultura jurídica brasileira. Esse se tornou o verdadeiro mega mapa do direito moderno brasileiro (COSTA, 2020).

​ Esse discurso jurídico influenciou sobremaneira o modo dos juristas de lidarem com o direito. O ensino e a prática jurídica passam a ser voltados a repetir esse conjunto de mantras do constitucionalismo liberal. Esse mesmo comando se dirigiu a hermenêutica jurídica, que, a partir de um método indutivo (próprio das ciências naturais), se volta apenas a descrever o significado das categorias jurídicas postas nos “pergaminhos” constitucionais – como se fossem Deuses Ex Machina (LEVINSON, 2011).Afinal de contas, esse consenso da comunidade jurídica deveria ser tratado como uma moldura abstrata e estática do direito.

​ É esse modelo que reproduzimos nos dias de hoje e que guia o modo de atuação dos juristas e acadêmicos sobre o direito. Esse é o nosso novo modelo jurídico positivista.

​ Mas temos que nos fazer duas perguntas: i) será que o fenômeno jurídico somente pode ser compreendido a partir de uma noção unitária do direito, e não de uma perspectiva pluralista, como propõe Roberto Lyra? (COSTA; INOCÊNCIO, 2017); ii) será que nosso modelo constitucional de bases liberais não é uma falsa necessidade de nossa cultura jurídica?

​ Nesse sentido, trazer a história do pensamento criminológico pode nos oferecer aportes para exemplificar os limites que o contexto histórico e político imprimem aos juristas ao fazerem o direito. Compreendermos o direito enquanto fenômeno histórico (COSTA, 2020, pág. 87) nos permite observar com atenção o positivismo e o período de insurgência da República no Brasil. Mais precisamente a criminologia da escola de Nina Rodrigues. O positivismo criminológico foi uma estratégia de poder-saber para a compreensão da questão criminal ascendente, como bem aponta Vera Batista (2016, pág. 300):

“Na virada do XIX para o XX (transição da escravidão e da República) o positivismo se torna o saber/poder hegemônico da compreensão da complexa questão criminal. Nessa conjuntura o positivismo criminológico ajudava a neutralizar a potência dos desejos de nação “mestiços” e “degenerados”. A autopatologização aprofundava os fossos construídos entre os homens brancos e proprietários e o resto do nosso povo.”

​ A citada autora reitera que o positivismo criminológico tem especificidades frente ao positivismo como um todo. O positivismo na sua origem europeia, contemporânea aos medos pós-revolucionários, desqualificava utopias da igualdade, ao demonstrar uma hierarquia de raças que legitimava o colonialismo em curso (BATISTA, 2016, pág. 299). Nas sociedades colonizadas, como a brasileira, temos figuras como a de Nina Rodrigues, que buscava legitimar pelo uso indiscriminado de técnicas “criminológicas”, contemporâneas ao surgimento da antropologia e da medicina legal, saberes médicos imbricados a discursos jurídicos na direção de um higienismo contraditório e paradoxal (BATISTA, 2016 pág. 300).

​  Vera Batista afirma, nesse sentido, um positivismo como “cultura”, que não só produziu uma instrumentalidade de pensar a questão criminal, mas como passou a senti-la enquanto “afetividades punitivas que naturalizam a truculência e cultuam a pena como solução mágica e restauradora de todos os conflitos'' (BATISTA, 2016, pág. 299). Tal tese pode nos ajudar a responder os limites do fenômeno histórico do direito em meio a uma crise ecológica mundial. Os juristas estão cientes do caráter político do seu fazer o direito?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS