Uma das grandes inovações do pensamento moderno foi a mudança de foco para o indivíduo. Não se trata de uma mudança apenas conceitual, limitando-se ao âmbito acadêmico, mas sim de uma mudança com implicações drásticas na sociedade. Em tempos anteriores o foco era no monarca - exemplificado pela máxima: “the king can do no wrong”. Entretanto, com a reforma protestante, e posteriormente com a revolução francesa, cada vez mais, o foco passa a ser no indivíduo, com a exigência por eles de liberdades negativas, ou seja, exigindo a não interferência estatal em sua esfera privada.

A exigência dos particulares perante o poder estatal era crescente, e após determinado período, exige-se do Estado não mais um não-fazer, mas um fazer concreto, de prestações positivas: educação, saúde, segurança tomam o cenário das demandas sociais. Desse modo, o foco gradativamente migra do Estado para o indivíduo. Uma vez sendo agora o foco no indivíduo, a autonomia ocupa papel fundamental no pensamento moderno (COSTA, 2020). No Direito, os códigos centralizam no indivíduo; as pautas sociais são por maior liberdade individual; a internet tornou os indivíduos atores ativos, produtores de conteúdo… inúmeros são os exemplos e as consequências desse papel de destaque da autonomia.

Se por um lado, é vantajoso que o indivíduo não seja mais formalmente dependente de um sistema autoritário e impositivo, por outro, o sistema capitalista de modo geral se aproveitou desse movimento, e agora parece amarrar o indivíduo na própria autonomia.

Os níveis de produtividade nunca foram tão altos, bem como o nível de exigência do indivíduo com ele mesmo. A facilidade e praticidade que o avanço tecnológico proporcionou ao indivíduo, elevou os patamares de exigência de produção. Os smartphones permitem que qualquer informação esteja ao alcance de qualquer um a qualquer momento. Analisando o pensamento do filósofo Byung-Chul Han, Kussler e Leeuven (2021) atribuem o excesso de exigência de produtividade como causa de uma sociedade cada vez mais depressiva e ansiosa.

Parafraseando Jean-Baptiste Alphonse Karr na sua frase "plus ça change, plus c'est la même chose" (quanto mais mudança, mais continua o mesmo), ainda que com as mudanças bastante radicais do mundo de trabalho, liderados por movimentos que usam a tecnologia para alavancar novas formas de prestação de serviços, como o Uber, questões bastante elementares, principalmente da composição das classes sociais e a relação de submissão, saem ainda mais fortalecidas.

Assim como ocorreu na formação dos estados modernos, com o advento de um poder centralizado, muitas vezes o que impulsiona as transformações são uma necessidade de mudança por castas específicas da sociedade, com a intenção exata de permanecer ou melhorar a posição social em que se encontram. A criação do estado moderno tem como pano de fundo a necessidade de criação de uma coesão social que substitua a coesão promovida pela homogeneidade religiosa, que por sua vez teve sua base abalada com o advento do movimento protestante. Esse conflito religioso, que pode ser representado pela guerra dos 30 anos, tem 2 pontos que podem ser destacados para a abordagem da temática, e que podem ser relacionados com o atual processo de uberização.

O primeiro ponto é que a paz alcançada no final foi obtida com o enfraquecimento de um tipo de força unificadora (a católica) para substituir por uma outra (a do estado central), mas não há uma alteração nas relações básicas de submissão ou dos atores que constituem cada classe social. O segundo ponto é a retórica usada de que houve um “contrato social” para que os cidadãos parassem de se matar, abdicando sua liberdade em favor a um soberano, aludindo as teorias de Hobbes. Esses dois pontos representam bem as revoluções e mudanças que foram observadas ao longo da história, e no caso da uberização pode se encontrar pontos em comum dessa estrutura.

No primeiro ponto, fica claro de que não há exatamente uma mudança de relação de submissão, ou as pessoas que compõem tais classes. Ao longo da revolução digital, muitas das estruturas mantidas por relações tradicionais de trabalho, tais como a de táxi, não encontravam mais respaldo produtivo que justificasse sua permanência. Era necessário uma mudança, mas para essa mudança foi preciso um acordo entre o poder anterior (o Estado) por um posterior (o empresariado), de uma maneira que não prejudicasse nenhum dos dois. O capital privado, conjuntamente com o Estado, passou a figurar como o poder central das relações de trabalho do transporte privado. A parte submissa, os taxistas, foram substituídos pelos motoristas do Uber, com rendimentos menores em muitos casos, maior dependência, e, paradoxalmente com o discurso proferido, menos autônomos do que a força de trabalho anterior. É a mudança que aprofundou ainda mais a relação tradicional de submissão. Mas grande parte desse movimento já vinha sendo realizado pelos próprios taxistas através de cooperativas que sufocaram a atuação autônoma e forçaram a criação de espécies de “máfias” dentro do próprio serviço de taxis, que também exigiam daqueles que apenas locavam as licenças (concedidas em pouco número pelo estado) trabalho exaustivo para que houvesse lucro além do necessário para o pagamento pelo direito de dirigir um táxi.

No segundo ponto é a questão da retórica utilizada, a mitologia usada para dar uma roupagem mais legítima para as mudanças. O Uber veio com a promessa de autonomia, da liberdade de poder trabalhar quando quiser, de poder dar a opção das pessoas serem empresários particulares. Ele também veio com a promessa de uma revolução na forma de fornecimento de serviço de transporte particular, numa escala e velocidade nunca anteriormente vistas. De fato, é inegável que o serviço promovido pelo Uber alterou profundamente a indústria de transporte particular, e não só esta, servindo de exemplo para diversos outros setores no sentido de criar uma nova forma de prestação de serviços em ambientes estagnados . Contudo, do outro lado, é inegável também que o Uber trouxe na realidade uma nova relação trabalhista bastante problemática, bem distante da imagem de liberdade que a empresa promove. O mito da liberdade é usado para justificar e mistificar a realidade mais sombria das relações de trabalho, que só intensificou uma relação de submissão, escondendo e legitimando a realidade de uma mudança que não mudou.

Mas esta questão levanta mais um ponto que deve ser tratado, qual é o papel do estado numa situação como a atual? A autonomia individual deve ser assegurada pela iniciativa privada, ou uma atuação estatal que garanta uma renda mínima para a sobrevivência dos indivíduos acima da linha da pobreza poderia fornecer uma alternativa a muitos dos que hoje recorrem a condições que podem ser até subumanas de trabalho? Se acabarmos com serviços como a Uber, ao forçar neles a relação trabalhista clássica da nossa CLT, no Brasil, ou de outras legislações nos diversos países, esses indivíduos que hoje ainda encontram alguma fonte de renda na prestação desses serviços terão qual alternativa?

É claro que essa argumentação não vem para justificar as condições atuais ou para defender a manutenção do status quo, senão nada a diferenciaria daqueles que defendiam a manutenção da escravidão no Brasil, por exemplo, sob a justificativa de que esta dava moradia e alimento aos negros que, sem os seus senhores, não teriam como sobreviver. A questão que se põe é que os novos desafios enfrentados pela economia exigem mais do que a implantação de sistemas e legislações que não se adequam mais às relações modernas, e mais do que a completa liberalização e distanciamento do estado. Esses novos desafios exigem soluções inovadoras que possam garantir uma atuação do estado com foco na subsistência de todos os seus cidadãos, e que alternativas como as que surgiram com a Uber não se imponham àqueles que não têm condições de sobrevivência e exijam deles serviços em situações subumanas. Uma atuação do estado nesse sentido sem dúvida forçaria empresas que atuam nessas novas áreas a reverem o modelo de serviços atual, e oferecerem condições mais dignas para atraírem prestadores de serviços, sem os quais as próprias empresas deixam de lucrar.

A autonomia não é o problema em si, a questão que fica é: qual é esta autonomia? A partir do momento em que a sociedade define como degradantes situações vivenciadas por parte de seus cidadãos, como fez à época do fim da escravidão, e parece estar fazendo hoje quanto à uberização, essa situação deixa de ser considerada ruto de um acordo de vontades gerado pela autonomia individual, e passa a ser considerada exploração. Mas cabe a essa sociedade não apenas vedar que situações degradantes continuem, pela alforria, ou pela ampliação de uma legislação trabalhista que não abarca novas tecnologias, mas também de garantir que as vítimas dessas situações sejam assistidas pelo estado, seja através de transferências de renda, seja através de programas que propiciem trabalho digno para prover o próprio sustento.

Referências

Costa, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020.KUSSLER, Leonardo

Marques; VAN LEEUVEN, Leonardo Guilherme. Da alienação em Marx à sociedade do cansaço em Han: fantasia e realidade dos trabalhadores precarizados. Revista Cantareira, n. 34, 2021.