Autores: Bruno Oliveira Sales e Creso Tatiano Lima
O ano de 2020 veio trazendo a pandemia do vírus denominado COVID-19. Um fenômeno inesperado e que causaria uma verdadeira crise sanitária com milhares de pessoas mortas pelo mundo. O vírus, que tem como característica a fácil e rápida contaminação, alastrou-se rapidamente por todos os países, que não estariam preparados para lidar com algo tão desconhecido e com poucos precedentes. Outras pandemias, como da Peste Bubônica, Gripe Espanhola e Gripe Suína, serviram como um norte para certas medidas serem tomadas com intuito de conter ou resolver a presente pandemia.
Os impactos da pandemia são inegáveis e afetam tudo ao redor, trazendo o denominado popularmente como o “novo normal”. Uma vez que a contaminação do vírus se dá pelo contato com alguém já infectado, para evitar a transmissão as medidas mais usadas foram o lockdown ou o isolamento social e o uso de máscaras e luvas. Da estratégia de isolamento vem o novo normal, fazendo com que todo o mundo precise manter-se dentro de suas residências, passem a estudar e trabalhar dentro de suas casas, saindo somente para o necessário.
Entretanto, o que se observa é que, apesar das constatações científicas de que o isolamento social e o uso de máscaras seriam métodos eficazes de minimizar a propagação do vírus até a confecção de uma vacina, houve muitos questionamentos quanto às medidas de contenção do vírus. As hesitações iniciais são da real eficácia do isolamento, que compele a todos se manterem dentro de casa e limita o direito à liberdade de ir e vir, direito este assegurado pela Constituição Federal. Com a eventual flexibilização da medida de isolamento, observou-se o aumento de infeções pelo COVID-19, o que levou a vários estados e municípios brasileiros a adotarem o lockdown, medida mais severa de isolamento social que de modo imperativo impõe aos cidadãos a permanência em suas casas, sob pena de multa. O atrito desta medida está entre o direito à liberdade de ir e vir e o direito à saúde.
Tom Nichols (2017), acadêmico especialista em assuntos internacionais, apresenta em seus estudos o conceito de “a morte da expertise”, que expressa como que não há mais uma valorização das vozes e opiniões de especialistas em sua área de conhecimento. São exemplos disso os questionamentos acerca do isolamento social e o real descumprimento dele, em que, apesar de ter a certificação de ser um método essencial para a contenção do vírus, muitas pessoas leigas vão contra essas evidências e ainda propagam uma postura negacionista, contribuindo com a incompreensão do que realmente está acontecendo.
Quando ocorre essa colisão de direitos fundamentais, aplica-se comumente o princípio da proporcionalidade para pesar a restrição dos direitos fundamentais colidentes. Muitos fatores (caso concreto, contexto, partes, etc.) influenciam na tomada de decisão para restringir direitos fundamentais. Diante das diversas problemáticas que a pandemia do COVID-19 causou, as tentativas de harmonização dos dois direitos vai muito além do que os juízes, legisladores ou administradores públicos vão decidir, mas da compreensão por parte da população da importância que essas medidas possuem para o enfrentamento da COVID-19.
Por outro lado, assevera Friedman (2014), permanece a necessidade de atuação do Estado para o equacionamento de direitos fundamentais em conflito, o que resulta na impossibilidade da liberdade absoluta. “Por mais atraente que pareça a anarquia como filosofia, ela é impossível em um mundo de pessoas imperfeitas. A liberdade das pessoas pode gerar conflitos e, quando isso ocorre, a liberdade de umas deve ser limitada para preservar a de outras — como disse, certa vez, um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos: ‘Minha liberdade de movimentar o punho deve ser limitada pela proximidade do seu queixo’.”
Reale (2002) destaca que em países onde domina a concepção individualista, tudo se fará no sentido de interpretar a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo e de sua vontade em toda a sua plenitude. Se, ao contrário, predominar em uma sociedade a concepção coletivista, que der ao todo absoluta primazia sobre as partes, a tendência na interpretação das normas jurídicas será sempre no sentido da limitação da liberdade em favor do coletivo. Em uma terceira corrente não se estabeleceria a priori uma tese no sentido do predomínio do indivíduo ou do predomínio do todo, mas se coloca numa atitude aderente à realidade histórica, para saber, em cada circunstância, na concreção e fisionomia de cada caso, o que deve ser posto e resolvido em harmonia com a ordem social e o bem de cada indivíduo.
A filósofa Claire Mairin (2020), em uma entrevista para o jornal espanhol El País, afirma que ainda não houve uma tomada de consciência do que é o corpo social, tomando o individualismo como primazia para as nossas relações.
Diante da fala da filósofa, é de suma importância notarmos a co-dependência que a pandemia trouxe para a vida em sociedade, não sendo mais possível neste momento ter a crença firmada na autonomia individual e de que é possível não ser afetado pela pandemia apenas com medidas individuais. A morte de mais de 250.00 mil brasileiros, até o início de março de 2021, causa perplexidade, portanto é de extrema necessidade a ponderação acerca do impacto de atitudes individuais na proteção do bem coletivo.
É imprescindível a ponderação por parte da população acerca das necessidades atuais devido ao fenômeno extraordinário que foi acometido. Ainda que seja essencial a luta por todos os direitos assegurados, há momentos em que é necessário a restrição, em determinadas medidas, para que possa ocorrer o bem coletivo da sociedade, como o do presente momento, em que a restrição do direito à liberdade de ir vir, e que consequentemente retira parcialmente a autonomia individual, tem por finalidade o direito imediato que se pensa quando configura-se o combate à pandemia, que é o direito à saúde.
As medidas de combate à propagação do vírus visam não só evitar uma maior infecção e disseminação do vírus, mas também de assistir os que já estão contaminados pelo vírus. No momento delicado em que vivemos, é necessário priorizar e elevar atitudes e reflexões que nos conduzirão ao fim crise atual, se segurando ao rigor científico fundamental ao enfrentamento da pandemia, refletindo como o coletivo é potencialmente afetado pelas atitudes individuais de cada cidadão.
Referências Bibliográficas
AYSO, Silvia. Claire Marin: “Talvez sejamos muito menos individuais do que pensávamos”. El País, 02 set 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-02/claire-marin-o-confinamento-nos-mostrou-ate-que-ponto-somos-seres-sociais.html>. Acesso em 18 mar 2021.
NICHOLS, Thomas M. The death of expertise: the campaign against established knowledge and why it matters. Oxford: Oxford University Press, 2017.
Reale, Miguel, Filosofia do direito / Miguel Reale. — 20. ed.— São Paulo : Saraiva, 2002.
Friedman, Milton,.Capitalismo e liberdade / Milton Friedman, com ajuda de Rose D. Friedman ; tradução Afonso Celso da Cunha Serra. - 1. ed. - Rio de Janeiro : LTC, 2014
[1] LIMA, Bruna; CARDIM, Maria Eduarda. Flexibilização do isolamento multiplica as infecções por coronavírus. Correio Braziliense, 28 mar 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/06/28/interna-brasil,867470/flexibilizacao-do-isolamento-multiplica-as-infeccoes-por-coronavirus.shtml>. Acesso em 18 mar 2021.
[2]Friedman, Milton,.Capitalismo e liberdade / Milton Friedman, com ajuda de Rose D. Friedman ; tradução Afonso Celso da Cunha Serra. - 1. ed. - Rio de Janeiro : LTC, 2014
[3] Reale, Miguel, Filosofia do direito / Miguel Reale. — 20. ed.— São Paulo : Saraiva, 2002.
[4] G1. Brasil tem 1.954 mortes em 24 horas, maior número desde início da pandemia; média móvel também é recorde. G1, 09 mar 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/03/09/brasil-tem-1954-mortes-em-24-horas-maior-numero-desde-inicio-da-pandemia-media-movel-tambem-e-recorde.ghtml>. Acesso em 18 mar 2021.