Entre os séculos XIX e XX, as características de uma sociedade moderna começam a aparecer causando mudanças relevantes na forma do indivíduo atuar no mundo e é nesse contexto em que surge o individualismo moderno. Sendo uma das principais características da modernidade, o individualismo privilegia a existência individual do homem em detrimento de sua inserção comunitária, além de reconhecer o valor da autonomia individual, com o objetivo de satisfazer características inatas de um indivíduo e fomentar a busca pela sua liberdade.

Segundo a concepção de Weber, o individualismo e a racionalização de condutas são tendências da sociedade moderna. Assim, há o desenvolvimento e predominância da personalidade individual e, consequentemente, o poder de coerção da sociedade sobre o indivíduo enfraquece e este se torna mais livre e autônomo. Nesse sentido, Bauman (2001) corrobora que o surgimento de membros como indivíduos se torna marca de uma sociedade moderna. Dessa forma, segundo o autor, é possível analisar a modernidade como sendo a época em que a vida social passa a ter como centro a existência do individualismo, além de ser uma fase marcada por uma expansiva autonomia do homem em relação à vida social (BAUMAN, 2001).

Dessa forma, segundo Dumont (1992), essas propriedades e qualidades inerentes no homem, considerado como um ser autônomo, independentemente de todo e qualquer vínculo social ou político, devem servir de base para a formulação dos princípios fundamentais da constituição do Estado e da sociedade.

O homem moderno ideal tem como característica querer negar toda ligação de subordinação com as instituições sociais, abdicando assim as crenças, regras e valores impostas por elas, guiando-se na sua visão pessoal. Apesar dessa concepção ter um viés impraticável concretamente pelos indivíduos, tendo em vista que a sociedade moderna continuou profundamente ligada a seus valores religiosos e tradicionais, a perspectiva da ruptura da subordinação com as instituições sociais possibilita a dissociação entre indivíduo e sociedade, ou seja, o individualismo baseado na igualdade e liberdade é capaz de se apresentar concretamente, seguindo o viés do liberalismo, que prega o igualitarismo e a individualidade como forma de se libertar da dominação das instituições sociais para o indivíduo poder tomar suas decisões conforme as suas vontades.

Além disso, na concepção moderna, os indivíduos são percebidos como sujeitos de direitos naturais, isto é, detentores de igualdade, liberdade, autonomia e dignidade humana. Assim, a igualdade e a liberdade não são apresentadas como simples aspirações políticas, mas como direitos de cada um dos homens (COSTA, 2020b).

A partir desse discurso social e jurídico da modernidade, os sujeitos são capazes de estabelecer vínculos contratuais tácitos e, para isso, devem ser vistos de forma igual, visto que essa igualdade é um pressuposto necessário para a validade jurídica dos contratos (COSTA, 2020a). Entretanto, segundo essa visão, a submissão voluntária nas relações sociais seria reconhecida como legítima, pois teria como base o consentimento e a garantia da liberdade individual.

Nesse sentido, Marx defende que a mudança de status das pessoas (tratadas como livres e iguais) promovida pelo liberalismo gera, na prática, uma mercantilização do trabalho e, em última instância, das pessoas. Desse modo, quando a força de trabalho humana se torna uma mercadoria, torna-se justificável que cada um pague por ela tão pouco quanto possível. Assim, o mercado tende a conferir a certos trabalhos um valor inferior às necessidades humanas de subsistência digna, o que fatalmente conduziria a um momento no qual uma parcela substancial da sociedade não teria acesso a uma vida digna (COSTA, 2020a).

Nessa perspectiva, é possível constatar que essas concepções de Marx se mantêm presentes na sociedade contemporânea, a qual convive com a uberização das relações de trabalho, em que a liberdade individual de contratar conduz a uma submissão e superexploração do trabalho. A uberização do trabalho é, na verdade, a modernização das relações de trabalho, a qual está inserida em um contexto de grande aumento na utilização de tecnologia, Internet, automação e inteligência artificial. Isso fez com que aumentasse a demanda por um novo tipo de trabalho, em que o próprio indivíduo quer ter uma nova rotina, com autonomia nas tarefas e com a possibilidade de optar por quando quer trabalhar. Contudo, esse modelo conduz a uma precarização do trabalho, pois é o próprio trabalhador que arca com todos os riscos da atividade profissional e se mantém em um contexto de incertezas.

Nesse sentido, conforme atesta o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2017) no livro “A sociedade do cansaço”, o modo operatório do capitalismo contemporâneo faz com que o indivíduo se cobre cada vez mais para apresentar resultados, estando inserido em uma “sociedade do desempenho”. Além disso, a sociedade é marcada por um excesso de positividade, o qual é expressado com o constante uso de expressões como “eu consigo”, “Just do it” – slogan utilizado pela Nike – e “Yes, we can” – slogan utilizado pelo presidente estadunidense Barack Obama. A presença dessas concepções em todas as esferas da contemporaneidade estimula as pessoas a se submeterem a trabalhar mais e a receberem menos, o que tem gerado um aumento significativo de doenças como depressão, transtornos de personalidade, síndromes como hiperatividade e burnout.

Portanto, o aspecto central da análise de Byung-Chul Han (2017) reside na falsa liberdade e no processo destrutivo contido nesta transformação contemporânea que impõe aos indivíduos o imperativo da realização, da mobilidade, da velocidade e da superação constantes. Alçado à condição de “empresário de si mesmo”, na visão de Han, o sujeito atual não tem mais como máximas a obediência ao outro, o cumprimento da lei e do dever, mas o sentimento de liberdade e de autonomia, a partir do qual deve fazer operarem criatividade, desempenho, inovação, eficiência, boa vontade, iniciativa individual e flexibilidade.

No que concerne à uberização, vê-se que tal discurso empreendedor conduz ao obscurecimento das relações entre capital e trabalho, na medida em que trabalhadores aparecem como “chefes de si mesmos”, ou seja, desaparece a relação de subordinação e aparece uma multidão de empreendedores de si próprios. Nesse sentido, de acordo com os autores Laval e Dardot (2016), é possível compreender que o empreendedorismo de si é um novo modo de subjetivação fabricado por uma racionalidade neoliberal que culmina na formação do que os autores denominam “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou, simplesmente, “neossujeito”. Para os autores, trata-se de novas formas de conduta, nas quais o sujeito se conduz “realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (LAVAL e DARDOT, 2016, p. 328). Nesse sentido:

Há uma substituição do contrato salarial por uma relação contratual entre "empresas de si mesmo". Desse ponto de vista, o uso da palavra "empresa" não é uma simples metáfora, porque toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu. Além disso, a noção de "empresa de si mesmo" supõe uma integração da vida pessoal e profissional. (LAVAL e DARDOT, 2016, p. 335)

Nessa perspectiva, conforme alega Bauman (2001), o indivíduo contemporâneo ocupa um mundo pautado pelo “agora”, que promete satisfações imediatas e ridiculariza todos os atrasos e esforços a longo prazo. Em um mundo composto de “agoras”, de momentos e episódios breves, não há espaço para a preocupação com “futuro”. Nesse contexto, de acordo com o autor, não há pós-modernidade (no sentido de ruptura ou superação), mas sim uma continuação da modernidade (o núcleo capitalista se mantém) com uma lógica diferente – a fixidez da época anterior é substituída pela volatilidade, sob o domínio do imediato, do individualismo e do consumo.

Além disso, experimenta-se na contemporaneidade o tempo de trabalho total, em que a própria pausa estaria implícita no tempo de trabalho, servindo apenas para o indivíduo se recuperar do trabalho com a finalidade de poder continuar exercendo o seu dever. Nesse sentido, Crary (2016) evidencia que há uma presença constante de estímulos que tendem a impedir o desligamento do sujeito, o qual dorme em “sleep mode”. O uso dessa expressão é recorrente e inspirado nas máquinas, dando a ideia de que o indivíduo está em “modo de consumo reduzido”, à disposição, superando a lógica “desligado/ligado”, de maneira que nada está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso (CRARY, 2016).

Assim, na cultura ocidental contemporânea, há a depreciação do sono com a estimação positiva de conceitos e valores como produtividade, racionalidade, consciência, vontade, objetividade, ação, desempenho, imperando o regime de trabalho “non-stop”. O autor traz à tona, inclusive, inacreditáveis projetos científicos, tecnológicos e laboratoriais cujo objetivo consiste em reduzir ou eliminar o sono para satisfazer essa cultura contemporânea (CRARY, 2016).

Desse modo, nota-se que há a valorização da necessidade de ser produtivo o tempo todo, o que leva o indivíduo a explorar a si mesmo com a ideia de que todas as metas são alcançáveis, porém isso reflete em uma incessante violência psíquica e corporal do ser humano, além da presença frequente de sentimentos de carência e culpa (CORBANEZI, 2018). O sujeito de desempenho pós-moderno tem como percepção a ideia de que é livre e não está submisso a ninguém, salvo a ele próprio, devendo se superar constantemente por ser seu próprio obstáculo. Entretanto, essa concepção conduz a uma alienação do sujeito disfarçada de liberdade, autonomia e autorrealização.

Logo, evidencia-se que a visão de Marx permanece atual, no sentido de que a liberdade irrestrita de negociação da força de trabalho legitima uma multiplicidade de relações de intensa exploração de trabalho pelo capitalismo, justificadas como o exercício da autonomia individual (COSTA, 2020a). Entretanto, na sociedade capitalista contemporânea, no lugar da sujeição ao outro, predomina a autoexploração do indivíduo.

Portanto, é possível caracterizar a sociedade contemporânea como altamente significada pelo trabalho, a qual estimula a competitividade em níveis radicais e associa a realização pessoal a esse processo de autoexploração, criando um sentido de sacrifício e recompensa. Dessa forma, a exploração das jornadas excessivas de serviço não é só naturalizada, mas também heroificada como um feito somente dos corajosos e não acomodados. O esforço e dedicação passa a ser mérito somente dos “vencedores”. Isso gera a angústia e o desconforto, mas também uma sensação de liberdade, no sentido de que o indivíduo tem a responsabilidade total dos seus atos, porém, ao mesmo tempo em que possui liberdade, também convive com a insegurança. Nesse sentido, é preciso pararmos para refletir sobre quem somos e qual caminho estamos seguindo, a fim de que seja possível amenizar os problemas que estamos enfrentamos na atual sociedade.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

CORBANEZI, Elton. Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tempo Social, v. 30, n. 3, p. 335-342, 13 dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702018000300335. Acesso em: 17/08/2020.

COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020a.

COSTA, Alexandre. O senso comum teórico dos juristas modernos. Arcos, 2020b.

CRARY, Jonathan. Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.

DUMONT, Louis. Ensaios sobre o Individualismo: Uma perspectiva antropológica sobre a ideologia moderna. Dom Quixote, 1992.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Giachini, Enio Paulo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

LAVAL, C., DARDOT, P. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.