Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Não parece haver dúvidas de que a pandemia causada pela nova forma de coronavírus, denominada Sars-CoV-2, representa um marco na sociedade contemporânea. Há quem defenda que estamos diante de um tempo de profundas transformações. A toda poderosa Ciência se viu acuada por aqueles que lhe cobravam a imediata cura ou vacina diante da inédita doença.

Uma das razões para tamanha cobrança decorre de uma medida tida por alguns como arcaica, o confinamento social. Ademais, expõe-se uma inaceitável fragilidade do avanço científico e tecnológico, onde a lógica do desenvolvimento parece não aceitar a existência de doenças incuráveis. É como “se estivéssemos num mundo, ao menos nos países ricos e desenvolvidos, onde a ciência é milagrosa, quase divina, e que parece uma contradição haver doenças incuráveis1”.

A disseminação da doença fez com que governantes tomassem medidas impensadas para a maioria das pessoas. Fecharam-se o comércio de rua, as escolas, os shoppings e feiras populares. Houve notícias de cidades pelo mundo que decretaram lockdown. Os rostos careciam ser cobertos por máscaras, cena cada vez mais comum diversas partes do mundo. Jamais se ouvira com tanta frequência a expressão distanciamento social.

No Brasil, não foi diferente. Diversos foram os chefes do Executivo, local ou estadual, que optaram por medidas de distanciamento ou de isolamento social, mesmo em um país acusado de negacionismo2 e, como apontou o Financial Times, “a country without a plan3. O fato é que as medidas escolhidas provocaram intensos debates acerca dos limites da liberdade individual durante esse momento de pandemia. Haveria o direito individual de não usar máscara?

Contra a prefeitura de Santos um advogado obteve na Justiça medida liminar para não utilizar máscara nas ruas, praças e outros logradouros, bem como durante seu transporte privado4. Nos termos do Decreto Municipal n.º 8.898/2020, o uso de máscara facial não profissional durante o deslocamento de pessoas pelos bens públicos do Município, como ruas, avenidas e praças, foi considerado obrigatório. Para o magistrado que prolatou a referida decisão, não cabe ao Judiciário o papel de “mero assistente-de-pedra das ações implementadas pela administração pública, como se as medidas adotadas pelo administrador fossem assemelhadas a dogmas de fé, emanadas de sactum sanctorum, intangível pelos órgãos da Justiça”. Na visão do juiz, muitos municípios recomendaram, mas não obrigaram, que a população utilize as máscaras.

Caso de grande repercussão no país, abarcando o suposto direito de não utilização de máscaras durante a pandemia, envolveu um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Conforme reportagem da TV Tribuna5, após ser abordado pela guarda municipal de Santos, o magistrado, que se recusou a usar máscara em passeio pela orla, rasgou o documento de autuação e chamou o agente público que lhe interpelou de analfabeto, perguntando-lhe se ele sabia com quem estava falando.

Para o antropólogo e Professor titular do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, Roberto Da Matta, a recusa em usar máscara pode ser considerada uma reação violenta a condição de igualdade, elemento básico nas democracias. Da Matta afirma que obedecer pode ser visto como sinal de inferioridade, o que teria ficado claro no caso do desembargador de São Paulo que se julgou superior ao guarda municipal6.

Nos parece que essas pessoas que recusam o uso de máscaras, ainda que de forma inconsciente, rementem-se à teoria de Hobbes, marcada pela precedência natural do indivíduo sobre a comunidade política, sendo a pessoa entendida como um organismo livre e autônomo, como bem explicou Alexandre Costa7. Contudo, nenhum desses indivíduos vive em um mundo isolado, devendo, portanto, haver a prevalência das medidas de saúde pública sobre os direitos individuais.

De acordo com a filósofa Claire Marin, não tomamos consciência do que é o corpo social, isso é um paradigma que perdemos. Ela acredita que seja algo muito ligado à lógica individualista do capitalismo.

Por outro lado, a própria Claire Marin destaca que talvez sejamos muito menos individualistas do que pensávamos. Segundo a filósofa, também descobrimos nossa dependência material, vital, inclusive as pessoas que se achavam muito autônomas e independentes. A quarentena imposta pela pandemia nos fez enfrentar nossa capacidade de vivermos sozinhos, com o mínimo de contato social possível. Esse distanciamento fez com que muitas pessoas se redescobrissem e desenvolvessem novas capacidades que não imaginavam que possuíam.

Entretanto, em outras pessoas, os efeitos não foram tão benéficos. A pandemia aumentou o nível de estresse na maior parte da população, de modo que muitas pessoas não conseguiram lidar com as inseguranças que ela provocou, sejam elas relativas à economia ou ao próprio futuro. Outras pessoas desenvolveram, ainda, uma fobia ao vírus. A consequência foi uma legião de pessoas que manifestaram, em diferentes níveis, algum distúrbio psicológico.

Em verdade, devido à condição de distanciamento social que estamos vivendo, não são poucos os exemplos de mudanças na sociedade para se adaptar à nova condição. A tecnologia tem ajudado bastante nessa adaptação. Um dos exemplos é a mudança repentina imposta às instituições de ensino. A maioria delas desenvolviam o ensino de forma presencial, mas, rapidamente, precisaram adaptar seus planos de ensino para uma plataforma virtual, como a que estamos utilizando na presente disciplina.

Outro exemplo é o teletrabalho que já vinha sendo adotado aos poucos por muitas empresas e instituições públicas, mesmo antes da pandemia. Entretanto, esse movimento precisou ser bastante acelerado com o advento da pandemia e, provavelmente, mudará bastante as relações de trabalho no futuro próximo. As vantagens do trabalho remoto ficou bastante evidente sob vários aspectos, inclusive econômicos.

As referidas influências positivas da adoção do modelo de trabalho remoto puderam ser observada inclusive nos órgãos estatais, tomando como exemplo o Superior Tribunal de Justiça, que foi capaz de manter a produtividade ao mesmo tempo em que promoveu a racionalização de recursos públicos em despesas como energia elétrica, água e papel, segundo balanço feito pela área de gestão socioambiental da corte. "Os dados coletados com referência aos primeiros quatro meses do ano registraram uma economia de R$ 815 mil, em comparação ao mesmo período de 2019"8, informa o site de notícias do Tribunal.

Claire Marin, logo no início da entrevista que inspira esse escrito, tem de responder à indagação "o mundo estava preparado para uma pandemia?" e a sua resposta não poderia, de fato, ser outra além de "inimaginável". Sob nenhum aspecto seria possível prever que algo minimamente semelhante à atual pandemia pudesse ocorrer e, tampouco, seria possível preparar-se para algo de tamanho impacto global.

Ainda sob esse aspecto, a filósofa ressalta a relação frustrante criada entre o fechamento e o isolamento impostos pela pandemia e a concepção de liberdade de cada indivíduo. Também, juntamente a essa concepção de liberdade, há a confiança contraditória de que, graças à ciência e à medicina, não pode haver doenças incuráveis e problemas insolucionáveis.

Não restam dúvidas, portanto, de que a pandemia resultante da Covid-19 fez cair por terra essa confiança desmedida em um mundo totalmente protegido e blindado por um ideal de ciência e tecnologia infalíveis. Claire traz, em sua abordagem, o confinamento como uma ruptura que "marca a nossa existência e nos transforma". O confinamento social foi, sem dúvidas, um dos maiores desafios impostos pela pandemia e, segundo a filósofa, é devido a esse confinamento que é possível a reflexão acerca de "até que ponto somos seres sociais, animais políticos que precisam se relacionar com outros".

Para Aristóteles, é da natureza do homem viver em sociedade, sendo a partilha social essencial para a espécie humana9 e a felicidade intimamente ligada à convivência com outros indivíduos. A relação estabelecida entre homem e sociedade, portanto, é indissociável e, para o filósofo, o homem é, por natureza, um animal político.

Dessa forma, ser um animal político implica precisar de uma vida comunitária, precisar da coletividade e precisar - segundo Aristóteles - partilhar a vida na polis. E abrir mão dessa vivência coletiva foi exatamente o que a pandemia do Covid-19 a todos impôs, gerando impactos ainda desconhecidos a longo prazo.

Compreender que a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro nunca foi tão imperativo. Ao mesmo tempo em que o ser humano se deu conta de que é totalmente impossível sobreviver sem o convívio com os outros, foram incontáveis os casos de desrespeito à quarentena, ao uso de máscara e às medidas básicas de prevenção - pessoal e coletiva.

Ou seja, escancarou-se a relação contraditória que permeia as interações sociais: ao mesmo tempo em que um indivíduo precisa, incontestavelmente, do outro, esse mesmo indivíduo não deixa de abrir mão do que julga ser "seu direito à liberdade" em prol do bem coletivo e do que seria necessário para proteger o seu semelhante.

Estamos acostumados a uma ideia de liberdade relativa a “possibilidade de fazer o que se quer e ser o que se deseja”10 e, considerando que a evolução deste raciocínio está calcado em um passado escravocrata, este pensamento é extremamente plausível. Contudo, quando nos colocamos em uma situação em que a liberdade individual deve ser relativizada em prol de um bem comunitário, em razão de uma doença desconhecida e altamente letal, tal concepção passa também a uma necessidade de ser relativizada, o que por diversas vezes causa estranhamento e, consequentemente, uma dificuldade de assimilação em muitos indivíduos.

A autonomia privada, apesar de ser um imperativo constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, requer, em determinadas situações, que seja relativizada. Não há dúvidas que no caso como o da pandemia causada pela Covid-19, há uma situação concreta que gera um impacto coletivo muito grave, ainda mais considerando que, segundo se sabe até o momento, apenas uma pessoa infectada pode vir a espalhar o vírus para mais de dez outros indivíduos. Assim, observa-se que a liberdade individual culmina em uma lesão à coletividade e, portanto, deve sofrer restrições.

A liberdade, na modernidade, passou ser entendida como um direito de cada um dos homens, de forma que o discurso social desse período passou a ser um discurso jurídico, pautado pela definição de cada indivíduo como sujeito de direito11. No caso da COVID-19, há uma parcela da população que deturpa tal entendimento e busca a justificativa para sua falta de coletividade justamente na impossibilidade de restrição da liberdade individual, desconsiderando que a sua liberdade individual impacta diretamente na vida de um terceiro.

Uma eventual dicotomia entre o exercício das liberdades individuais e o respeito às medidas de isolamento em prol da saúde coletiva só pode assim ser interpretada nos casos em que os indivíduos não enxergam as prerrogativas de liberdades individuais enquanto mecanismos de se atingir um estado de segurança, em termos sanitários. Aqueles que compreendem suas próprias ações enquanto responsáveis por um "bem coletivo" não enfrentam tamanha dualidade.

Ao analisar a situação sob a teoria de Hobbes, segundo a qual a segurança funciona como interesse humano central, percebemos que está justamente aí o ponto de inflexão: aqueles que acatam as medidas impostas pelo Estado, importando em suposta supressão de liberdades individuais, estão de acordo com esse sistema de "concessão" em virtude da garantia da segurança - nesse caso traduzida em direito à saúde.

Por outro lado, grande parcela da população não é capaz de compreender - ou até mesmo apenas concordar - em que medida a imposição de medidas como distanciamento social, utilização de máscaras, restrições comerciais, dentre outros, seriam capazes de assegurar a segurança almejada.

Argumentos nesse sentido são comumente aduzidos pela parcela da população que não compõe o grupo de risco do Covid-19, visto que, quando acometidos pela doença, na generalidade, apresentam sintomas muito mais brandos - quando os apresentam -, tendendo a enxergar a doença como apenas uma "gripezinha". Tamanha alteração em seus modos de viver e interagir em sociedade não seria, portanto, proporcional ao risco por eles enfrentado.

Outro grupo da sociedade que apresentou duras críticas às medidas decorrentes da pandemia do coronavírus foi o de comerciantes. Muitas foram as discussões girando em torno da falência de empresas como consequência das restrições impostas ao comércio.

Ambos os exemplos citados giram em torno de uma ponderação do custo-benefício de acatamento às medidas governamentais, valendo-se de uma lógica utilitarista para tanto. Não temos, portanto, um consenso a respeito do que seja "segurança" no caso concreto, fruto de tamanha discórdia social entre os defensores da quarentena e aqueles que não a respeitam.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    MARIN, Claire. “Talvez sejamos muito menos individuais do que pensávamos”. Silvia Ayuso. EL PAÍS. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-02/claire-marin-o-confinamento-nos-mostrou-ate-que-ponto-somos-seres-sociais.html. Acesso em: set. 2020.

[2]    Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-20/um-governo-negacionista-e-doente-de-covid-19.html. Acesso em: set. 2020.

[3]    Disponível em: https://www.ft.com/content/5c1f6824-f082-4003-8eb0-0c18d21e5f9c. Acesso em: set. 2020.

[4]    Processo n.º: 1007171-56.2020.8.26.0562. Decisão de 27.04.2020. 2ª Vara da Fazenda Pública - Foro de Santos - TJSP.

[5]    Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/07/19/desembargador-humilha-guarda-apos-multa-por-nao-usar-mascara-em-sp-analfabeto.ghtml. Acesso: set. 2020.

[6]    Disponível em: https://www.ovale.com.br/_conteudo/brasil/2020/07/109518--para-o-brasileiro--obedecer-e-sinal-de-inferioridade---diz-roberto-da-matta-sobre-reacoes-a-fiscais-que-cobram-uso-da-mascara-e-distanciamento.html. Acesso em: set. 2020.

[7]    COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020a.

[8]    Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/STJ-tem-reducao-de-gastos-com-trabalho-remoto.aspx. Acesso em: set. 2020.

[9]    Disponível em: https://www.culturagenial.com/o-homem-e-um-animal-politico/. Acesso em: set. 2020.

[10]    COSTA, Alexandre. Op. cit. 2020a.

[11]    COSTA, Alexandre. O senso comum teórico dos juristas modernos. Arcos, 2020b.