Autores: Adriano Augusto Araújo Magalhães, Carlos Alberto Rabelo Aguiar, Guilherme Domingos dos Reis, Jhonas de Sousa Santos, Raíck Junio dos Santos Silva e Rebeca Cristina Pereira Araújo.

Segundo Ralph Keyes, a pós-verdade se refere a um contexto sociopolítico no qual há um maior engajamento na proliferação de inverdades, em detrimento do compromisso com a veracidade e a honestidade [1]. Para o autor, a pós-verdade é uma das categorias mais empregadas no séc. XXI — especialmente no contexto das complexas relações humanas — e pode ser caracterizada principalmente pela: i) perda do estigma associado ao ato de mentir; ii) aceitação generalizada da mentira e de sua posterior impunidade [2].

Em razão disto, o desenvolvimento tecnológico alcançado nas últimas décadas proporcionou a maximização dos efeitos do fenômeno da pós-verdade. Ou seja, o aperfeiçoamento da tecnologia não só aprimorou os métodos de “contar mentiras”, como também passou a ser utilizada, ela própria, como principal instrumento de disseminação de desinformação. Anteriormente, o ato de proferir mentiras exigia que elas fossem transmitidas pessoal e fisicamente; agora, isso pode ser feito à distância, sem que haja o eventual constrangimento de ter que lidar presencialmente com as consequências dos nossos atos.

Portanto, a internet “se tornou a a estufa de germinação de mudas de pós-veracidade” [3], tornando-se comum a utilização de algoritmos com o intuito de filtrar e personalizar o acesso do internauta ao ambiente virtual e, consequentemente, expandindo-se o raio de proliferação de pós-verdades nas múltiplas plataformas relacionadas à tecnologia da informação. Logo, essa categoria tem a aptidão de, coletivamente, atuar “como forma de manipulação que coloca o usuário mal informado sobretudo a serviços de interesses públicos escusos” [4].

Em decorrência de sua popularidade, o termo “pós-verdade” foi escolhido como a palavra de maior utilização internacional em 2016 pelo Dicionário de Oxford, principalmente em razão dos acontecimentos políticos daquele ano, os quais estiveram envolvidos em um conjunto imenso de propagação de notícias falsas, relacionadas, dentre outros: ao processo de eleição de Donald Trump à presidência dos EUA e à realização de plebiscito para a proposta de saída do Brexit pelo Reino Unido.

No cenário nacional, há vários exemplos fáticos de utilização da tecnologia como meio de promoção de interesses espúrios. Em 2018, ano das eleições presidenciais, foram utilizados robôs para possibilitar o disparo em massa de mensagens, com intuito de espalhar notícias falsas e deturpadas a favor do deputado federal Jair Bolsonaro – principal candidato da corrida eleitoral [5].

Mais à frente, no atual contexto de pandemia, é constantemente discutida a eficácia das vacinas para imunização coletiva do vírus da Covid-19, ou a utilidade das medidas de contenção divulgadas pelas autoridades sanitárias e impostas pelos governos estaduais e municipais. Em outras palavras, percebe-se que com o avanço da tecnologia e a popularização dos meios de informação, somos levados a acreditar na nossa capacidade de produzir e interferir no processo de construção da verdade, principalmente da “verdade científica”.

Apesar de aparentar ser um avanço em termos de democracia representativa , esse contexto de excesso de certezas (ou pós-verdades) pode ser um espaço fértil para o resgate de narrativas metafísicas de resgate à ordem natural do mundo (“ao resgate dos bons costumes”, dos “valores da família tradicional”) [6]. Contudo, é preciso cuidado ao utilizar tal categoria para traduzir as relações sociais da contemporaneidade, pois a pós-verdade também pressupõe a existência de um conceito absoluto de verdade.

Mesmo assim, a própria verdade, no contexto das ciências e da própria filosofia, é uma categoria em construção. É necessário que devemos, nas palavras de Rorty, um ironista liberal, considerar nossas categorias de decisão como contingentes, não esgotadas e contextuais [7].

Em complemento, outra categoria de extrema importância na sociedade contemporânea é aquela intitulada como "sociedade do cansaço", considerando-se que a hegemonia supramencionada das tecnologias de comunicação em todas as esferas da sociedade contemporânea provém de um processo revolucionário e silencioso.

Evidencia-se que a explosão das comunicações em nível individual e praticamente sem barreiras teve influência direta na constituição das formas de pensar, comunicar, trabalhar, entreter e se relacionar com a sociedade contemporânea. Nessa senda, o conceito de sociedade do desempenho ou sociedade do cansaço, proposto por Byung-Chul Han [8], surge como meio de análise dos impactos positivos e deletérios aos indivíduos na vivência em uma rede digital e globalizada.

Primeiramente, é importante pontuar que a concepção surge em crítica direta à sociedade disciplinar de Michel Foucault. A também chamada “sociedade das micropenalidades” caracteriza o contexto de mudanças sociopolíticas e econômicas acarretadas pelo capitalismo internacional e pela projeção global do modelo de vida ocidental que circundaram o ano de 1945, marco inicial do período pós 2ª Guerra Mundial. Nesse cenário, a extrema polarização do globo teve forte gerência na constituição da sociedade moderna, contagiada por ideais imunológicos.

A imunologia consiste na aversão ao “outro”, no assentamento de uma noção generalizada de existência inevitável e constante de um inimigo igualmente importante e potente ao “eu” e que, por isso, precisa ser combatido. O “perigo do externo”, que se materializa perfeitamente no advento da Guerra Fria, propagou a presença do “negativo”, da negação do alheio, na sociedade moderna.

A concepção de Foucault para a sociedade moderna é, ainda, caracterizada pela forte gerência das instituições disciplinares em todas as esferas sociais, sendo elas escolas, hospitais, exércitos e manicômios, por exemplo.  Como autoridades externas aos indivíduos, as entidades impõem deveres e regras rígidas em um regime de obediência absoluta e de total passividade, levando-os a desenvolver tarefas únicas e que demandam atenção profunda. Esse cenário surge como um suporte ao tédio, que cria no indivíduo uma capacidade de negação ao estilo externo, como controle à natureza animalesca do humano.

A sociedade do desempenho surge, então, a partir de um processo de transição iniciado nos anos 1970, com as mudanças ocorridas no campo das tecnologias digitais, como a comunicação, a microeletrônica e a computação, o pontapé inicial da formação da sociedade em rede e da globalização.

Com esses adventos, concebeu-se uma nova percepção humana da realidade, uma “aceleração do tempo” marcada pelo surgimento de atividades diversas, autônomas, livres e complexas, demandantes de uma atenção rasa, rápida e superficial, agora, sem a aceitação do tédio como uma etapa da produção. Com as chamadas “hiperatividade” e “hiperatenção”, a negatividade exacerbada que marcou as relações interpessoais da sociedade disciplinar de Foucault também sofreu transformações, criando-se uma noção generalizada de aceitação quase obrigatória do “outro”, materializada na autoafirmação, num enxame de positividade, na supervalorização do desempenho individual.

Frente a um processo universal de renovações sociais, Byung-Chul Han [9] assenta o ano de 2001 como marco inaugural da sociedade do cansaço. Com a chegada do século XXI, as relações sociais já se encontravam em configurações diametralmente opostas às do século anterior em virtude da ascensão da sociedade em rede e da positividade exacerbada. Nesse contexto, a afirmação quase narcisista do “eu” implicou em uma sociedade marcada, também, pela autogestão e pelo empreendedorismo individual, imprimindo um caráter competitivo aos novos vínculos interpessoais.

O autor, então, entende que a autogestão concede um poder ilimitado para a ação do indivíduo, o qual é chamado incessantemente à multitarefa, ou seja, à ação, produção e afirmação da sua positividade e existência. Como consequência certa ao atarefamento exacerbado, resta ao indivíduo a exaustão, um cansaço crônico e contínuo que aflige a própria constituição do ser e que o isola em sua própria afirmação, em um regime de penalização interna, constituída psicologicamente na culpa.

Logo, Han [10] categoriza as consequências práticas da vivência na sociedade do cansaço à saúde humana como “patologias neuronais”. As chamadas enfermidades fundamentais do século XXI são a depressão, a ansiedade, a Síndrome de Burnout, a dependência digital, os pensamentos suicidas, o abuso de drogas lícitas e ilícitas, dentre outros.

Diante da ampla conceituação de Byung-Chul Han [11], resta indubitável a aplicabilidade dos pensamentos do filósofo para uma melhor compreensão do mundo atual, vez que as doenças neuronais se fazem notadamente presentes, crescentes e largamente preocupantes, refletindo os impactos à saúde dos indivíduos tanto de contextos mais amplos da vida humana atual, como a percepção da “internetização” de todos os âmbitos da vida sociopolítica e econômica humana, quanto de recortes mais específicos, como o cenário da pandemia de Covid-19 que assola o globo desde 2020.

Partindo para estatísticas no que tange o objeto principal dos pensamentos de Byung-Chul Han, o cansaço, dados demonstram que 98% dos brasileiro se sentem cansados mental e fisicamente, sendo os jovens de 20 a 29 a maior fatia dos exaustos [12] (IBOPE, 2013). Segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU, 2015) e da Organização mundial da Saúde [13] (OMS, 2015), entre os anos de 2005 e 2015, percebeu-se um aumento de 15% no número de pessoas ansiosas no globo, bem como uma ampliação de 18,4% no total de indivíduos depressivos nos últimos 10 anos, o que equivale a 4,4% da população mundial. No recorte brasileiro de dados, a conjuntura é ainda mais alarmante. No país, 14,1 milhões de brasileiros afirmavam  possuir algum transtorno ou sofrimento mental.

No contexto da pandemia da Covid-19, por conseguinte, dados revelam os impactos do esgotamento físico extremo à saúde dos trabalhadores de serviços essenciais. Em outubro de 2020, eram 47,3% os trabalhadores com sintomas de ansiedade e depressão no Brasil e na Espanha. Além disso, 44,3% dos profissionais alegaram abuso de bebidas alcoólicas nesse contexto, o que se soma aos 42,9% que afirmam mudanças nos hábitos de sono [14] (FIOCRUZ, 2020).

Diante de dados tão alarmantes, resta inquestionável que os entendimentos de Byung-Chul Han para o cansaço e às doenças neuronais são de suma importância para a compreensão do mundo atual. As enfermidades e a exaustão propagada revelam que o mal do século XXI provém da hiperatividade, da ocupação exacerbada do indivíduo com suas atividades,  bem como da intensa necessidade de interações digitais que marca o contexto social que vivemos e que bem se traduz no pensamento do filósofo em pauta:


As pessoas têm um desejo quase pornográfico de exibir sua privacidade. Elas expõem seus pensamentos, seus momentos privados, seus sentimentos e tudo o que são, ou fingem ser, através das redes sociais. Todo mundo faz isso 'voluntariamente'. O poder não precisa mais interferir ou se infiltrar nos segredos de ninguém, pois essas pessoas oferecem tudo isso de forma espontânea. (HAN, 2015)

Por fim, resta o questionamento: se a sociedade do cansaço é eivada pelas consequências de um regime de penalização interna, constituída psicologicamente na culpa, na solidão e no indivíduo embebido na sua autoafirmação, seria de alcance individual a solução para os problemas psicológicos e sociais que assolam a sociedade contemporânea? Ou seria de alçada coletiva o remédio à tamanha problemática (o que traz à tona os entendimentos de coletividade social de Michel Foucault)?

NOTAS DE RODAPÉ

[1] KEYES, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. New York: St. Martin's Press, 2004. n.p.

[2] Idem, n.p.

[3] Idem, n.p.

[4] SANTAELLA, Lucia. A Pós Verdade é verdadeira ou falsa?. (recurso eletrônico): organizado por Fabio Cypriano- Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2018, n.p.

[5] MILITÃO, Eduardo; REBELLO, Aiuri. Rede de fake news com robôs pró-Bolsonaro mantém 80% das contas ativas. Blog Oul. Disponível em:https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/09/19/fake-news-pro-bolsonaro-whatsapp-eleicoes-robos-disparo-em-massa.htm Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

[6] COSTA, Alexandre Araujo. A filosofia e os paradoxos da linguagem. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/a-filosofia-e-os-paradoxos-da-linguagem-2/ Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

[7] DAGIOS, M. (2009). A verdade e seu contexto: uma abordagem a partir de Habermas e Rorty. Cadernos De Ética E Filosofia Política, 1(14), 25-46. Recuperado de: https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/82983

[8] HAN, Byung-Chu Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] SINTONIA COM A SOCIEDADE. Sociedade do Cansaço. Globo Gente, 2020. Disponivel em: https://gente.globo.com/sociedade-do-cansaco/. Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.

[13] Ibidem.

[14] FIOCRUZ. Pesquisa analisa o impacto da pandemia na saúde mental de trabalhadores essenciais. Fiocruz, 2020. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-na-saude-mental-de-trabalhadores-essenciais#:~:text=Compartilhar%3A,e%20depress%C3%A3o%20ao%20mesmo%20tempo. Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.