A tarefa de comparar a percepção de poder soberano de quatro e três séculos atrás com a organização política atual é instigante. Primeiro devido à realidade de cada tempo. Apesar de relativamente próximos com a atualidade (quando comparado aos gregos, por exemplo), as dinâmicas político-sociais da Idade Moderna eram bastante diferentes. As premissas e os problemas que os grandes pensadores da época possuíam não são as mesmas das nossas, embora vários temas continuam atuais, como a discussão milenar sobre direitos naturais e ordem natural. Cada realidade possui uma complexidade diferente, cuja análise deve ser feita sempre contextualizando o momento histórico. Segundo é a semântica do termo “soberania” ou “poder soberano”. Esta expressão teve, ao longo do tempo, seu rol de significação ampliado, sendo assim necessário interpretar conforme o contexto. Logo, será exposto o sentido utilizado à época para assim trazê-lo aos dias de hoje e instrumentalizar uma crítica quanto aos dilemas atuais relativos à soberania.  

Conceito de poder soberano da Idade Média ao Estado Liberal em contraposição com ambientes democráticos atuais

A ideia de poder soberano foi tendo seus alicerces construídos a partir do final da Idade Média. O movimento de concentração de poderes nos monarcas, antes dispersos em diversos clãs de nobres, incorreu não só no advento da denominação “soberano”, mas também e principalmente na necessidade de justificação de tal centralização.

E, neste contexto, várias foram as teses justificadoras desta soberania. No século XVI, Jean Bodin defendeu que a “sovereignty is that absolute and perpetual power vested in a commonwealth” (BODIN, 1955). Este poder não estaria vinculado à autorização popular e sim a uma característica inerente às repúblicas, logo não poderia ser contestado em hipótese nenhuma. Embora houvesse a obrigação ao monarca de obedecer aos direitos naturais, às leis de Deus e às tradições fundantes do reino, sua transgressão não poderia ser causa de destituição, pois sua soberania fazia parte de uma ordem natural (COSTA, 2020).

Outro defensor dessa soberania foi Thomas Hobbes. Contudo o fez transferindo a autoridade intrínseca do poder soberano do monarca para os indivíduos, tornando-se assim o primeiro dos pensadores contratualistas. Esta ruptura filosófica, além de significativa à época, foi fundamental para concentrar no indivíduo e na sua autonomia a legitimidade do poder soberano. Os homens voluntariamente se reuniriam e se submeteriam a um soberano com a expectativa de estar protegido de uma guerra de todos contra todos. Isto retirou, da ordem natural, a organização social da sociedade e a colocou como um agrupamento artificial de pessoas autônomas. Todavia, após este pacto, o soberano tinha plena autonomia e não poderia ser destituído, pois a autonomia individual tinha sido totalmente renunciada (COSTA, 2020). Segundo Hobbes:

“pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e as ações que pode praticar, sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade” (HOBBES, 1651).

Quando este conceito de soberano é posto na atualidade, no âmbito das democracias contemporâneas, observa-se um evidente desacordo para a sua conformação: o poder soberano teria sido limitado por um direito positivo supraestatal. Hoje os homens se reúnem não para se submeter a um soberano, mas sim a um texto soberano, em que são delimitadas as regras gerais da sociedade, e é chamado de constituição. Mas um poder dito como soberano poderia ser limitado?

O poder soberano defendido por Bodin e Hobbes possui um caráter absoluto intrínseco. Por isso as monarquias da época foram chamadas de absolutistas. Os únicos limites possíveis, cuja violação não concedia o direito à destituição, eram leis naturais e nunca leis positivadas. A maior prioridade era a estabilidade política do governo. Esta percepção se deu, pois ambos viveram em períodos de alta instabilidade política (COSTA, 2020).

Inclusive é devido a esta realidade que não acreditavam no sucesso de oligarquias ou governos populares, dado que seriam governos muito instáveis. A ausência de uma unidade causaria sempre disputas internas pela busca da totalidade do poder (COSTA, 2020). E neste ponto, observa-se outra divergência relacionada à contemporaneidade. Hoje o exercício do poder foi dividido e as atribuições de cada ente são diferentes, porém interligadas. Tal arranjo de organização é justamente para delimitar as formas de disputa interna e mitigar a possibilidade da concentração completa do poder.

Nota-se, deste modo, incongruências na aplicação do conceito de poder soberano nas sociedades contemporâneas relativas tanto à distribuição interna do poder político quanto ao paradoxo da existência de uma lei suprema concomitante com um poder soberano. Trataremos deste paradoxo, pois sua causa se fez presente desde o surgimento do estado liberal democrático.

Locke, teórico contratualista liberal do século XVII, verificou a necessidade da limitação do poder político dos governantes. O caráter absoluto defendido pelos monarcas não se mostrava adequado. Defensor do predomínio do poder legislativo, considerou, de forma similar aos seus contemporâneos, que apenas a lei natural (e não positivada) limitaria o poder estatal. Entretanto Locke acreditava na possibilidade de destituição dos governantes quando estes violassem tal direito natural, mitigando o caráter absoluto de poder. Apesar disto, a soberania estatal permanecia, pois a atividade de estabelecer leis continuava com o legislativo e não exercida diretamente pelos indivíduos (COSTA, 2011).

Já Rousseau, outro contratualista, considerava somente soberano o poder legislativo praticado diretamente por todos os indivíduos, transferindo ao povo a soberania antes estatal. O caráter absoluto desta soberania persistia, tendo em vista que os responsáveis por exercer o governo tinham poderes limitados. A atividade legislativa popular, por sua vez, exercida de forma direta era irrestrita, não podendo ser limitada por nada ou ninguém. (COSTA, 2011)

Estas teses contratualistas, mesmo distinguindo governo de Estado e Estado de povo, continuaram concedendo à soberania (estatal ou popular) um poder absoluto. Contudo, no século XVIII, o constitucionalismo alterou completamente tal percepção. Esta teoria manteve como absoluta a soberania popular, mas esta legitima a criação de uma norma suprema praticamente imutável. Ou seja, o governo seria limitado por uma lei supraestatal instituída pelo poder soberano do povo. E aqui reside o paradoxo da adequação do “poder soberano” ao nosso constitucionalismo atual. As leis supremas garantem a soberania popular, entretanto, ao serem promulgadas, tornam-se soberanas e esgotam esta autoridade popular. Logo, quem seria o verdadeiro soberano: o povo ou a lei? (COSTA, 2011)

A construção do constitucionalismo permite afirmar que a origem da soberania é popular, entretanto, na prática, ela é transmitida a um texto supremo, cujos dispositivos não podem ser modificados. É interessante observar que se esvazia a autoridade popular, mas restringe também a atuação das autoridades políticas, dificultando tentativas de mudar drasticamente, de forma constitucional, a norma supraestatal. (COSTA, 2011)

Respaldos da soberania sob as novas projeções democráticas

As ponderações desenvolvidas até o momento levam a pressupor que o poder político apenas seria legítimo a partir do acatamento de um conjunto de normas ético-políticas que dão respaldo à atuação estatal, e dependeria da determinação de relações políticas institucionalizadas por mecanismos democráticos. A autoridade do Soberano como Estado, através dos valores inclusos no texto constitucional, torna-se a legitimação do poder em detrimento da realização do acordo político. Apesar disso, estudiosos têm destacado que a estrutura que serve de base jurídica-institucional idealizada na modernidade e a tese política de explicar a atuação do Estado, que institui também base teórica e política para o exercício de poder, agora não bastam para definir os papéis estatais mirando os interesses sociais.

A reflexão em torno da limitação da atuação do Estado e de seu poder político para assim tornar eficazes a autoridade normativa definida por seu sistema jurídico deve-se do encobrimento do desempenho do domínio político por outros fatores não estatais, que mesmo não sendo atribuído de soberania política, tem poder análogo ao poder estatal, tendo suas deliberações envolvidas no âmbito social. Assim, a proposição para o funcionamento do poder soberano e para o desempenho do Estado, amparando a democracia vêm sendo indagadas.

O teórico contemporâneo Ulrich Beck, por exemplo, acredita que o exercício da soberania precisa ser fidedigno a uma democracia onde se dialogam governantes e governo (BECK 1998). Ainda assim, esta interação deve ser desenvolvida qualitativamente como base para o funcionamento democrático além do cabimento territorial, ou uma questão formal. A democracia, na atualidade, carece de novos parâmetros para viabilizar seu processo nos espaços além do Estado, estabelecendo uma relação recíproca de resolução conflituosa entre governantes e governados. Analisando o conceito de Habermas (FERNANDÉZ, 2000), a soberania popular se materializa no sistema deliberativo e nas decisões feitas racionalmente. Assim torna-se preciso a comunicação que concede ao povo o exercer da soberania . Nesse sentido:

“As discussões públicas informais, e a opinião assim gerada, só contribuirão para a formação de um poder político, e afirmarão a soberania do povo, se a sua influência afetar as deliberações das instituições com estrutura democrática e assim conduzir a resoluções autorizadas.” (FERNANDÉZ, 2000, p. 86)

Outro fato que deve ser levantado ao se referir a soberania é o reconhecimento de fontes paralelas de poder, nacionais e internacionais, que devem ser consideradas e respeitadas. Atualmente, podemos dizer que a existência de Estado soberano pende para o reconhecimento do pluralismo de ordenamentos, de outros poderes políticos. Assim, o autor Straus se refere a conexão e integração internacional com o aprimoramento de instituições supranacionais.

“verdadeira condição de sobrevivência da Soberania, frente a um poder econômico cada vez mais forte, ilimitado e internacionalizado, que caracteriza a face nefasta do atual processo de globalização, principalmente para os povos de países em desenvolvimento, ou ‘emergentes’, como os latino-americanos”. (STRAUS, 2002, p.XV)

Diante o exposto, reflete-se sobre o conceito da ordem política e soberana em que novos agentes se mostram presentes e assumem papéis sociais. O autor Beck (1998), nesse sentido, se refere a uma concepção de uma soberania inclusiva, dando incontinuidade a um sistema monista, em que estruturas de poder e soberania são unitárias.

Dessa forma, conclui-se que a conceituação de soberania na contemporaneidade deve ser repensado e ressignificado, considerando a intercessão e novos moldes que surgem com o  exercício da democracia. Fatores como integração política  entre Estados e uma crescente concepção de cidadania.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECK, Ulrich. ¿Qué es la globalización?: Falacia del globalismo, respuestas a la globalización. Barcelona: Paidós, 1998.

BLANCO, Domingo Fernandéz. Princípios de filosofia política. Madrid: Síntesis, 2000.

BODIN, Jean. Six Books on the Commonwealth. Trad. M. J. Tooley. Oxford: Basil Blackwell Oxford, 1955. Disponibilizado no endereço eletrônico: https://constitution.org/2-Authors/bodin/bodin.txt, acessado em 26/03/2021

COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

COSTA, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.

HOBBES, Thomas. Leviatã. 1651

STRAUS, Flávio Augusto Saraiva. Soberania e integração latino-americana: uma perspectiva constitucional do MERCOSUL. Rio de Janeiro: Forense, 2002.