A ideia de soberania é um desenvolvimento muito antigo, com definições tão diversas quanto os autores. Se as condições agrícolas e ecológicas parecem ser a grande causa do pensamento de soberania estatal na antiguidade segundo Costa (2020), a teoria política moderna nos mostrou que as a maioria das teorias se assenta na autonomia do indivíduo perante as suas comunidades de maneira definitiva. Em relação ao poder de soberania no território brasileiro em tempos de pandemia do novo Coronavírus, configura-se necessário a análise das várias teorias da soberania e sua comparação com o atual caso brasileiro.

Em um primeiro momento, deve-se ressaltar três entes políticos proeminentes no exercício do poder político e soberano da atualidade, capazes de vincular-se uns aos outros nas decisões de suas esferas individuais. O primeiro deles, obviamente, é o poder central unificado. O segundo, por outro lado, é o cidadão em sua autonomia individual no contexto pandêmico de sobrevivência. E o terceiro, menos comum mas não menos importante na atualidade, é o poder judiciário, que se caracteriza pela sua força em vincular as outras partes em detrimento da soberania daquelas.

  1. O ESTADO COMO SOBERANO

O poder central unificado remonta às bases da soberania moderna, em que era necessário um monarca absoluto para reduzir eventuais catástrofes. Tal teoria foi muito bem explicada pelo pelo religioso e teórico Thomas Hobbes, que em sua obra defende a necessidade de um poder soberano para evitar um colapso entre os seus cidadãos na busca de interesses individuais autônomos, já que estes seres humanos seriam naturalmente egoístas e estariam sempre visando o bem individual mesmo que fosse necessário prejudicar o próximo. O estado seria portanto o único soberano autônomo capaz de garantir a paz entre os cidadãos na modernidade (Hobbes 1984). É bem crível imaginar que se o autor estivesse em nossos dias atuais vivenciando o colapso no sistema de saúde público brasileiro, provavelmente o autor não estaria tão animado com um poder central muito poderoso e que guarda consigo muitas competências exclusivas. É claro que no caso brasileiro, a Assembléia Constituinte de 1988 garantiu poderes especiais à Administração Pública com o intuito de cuidar da saúde daqueles que estão sob o jugo do poder político brasileiro, de modo a consagrar a partir de um movimento constituinte, a soberania do poder político central, seja ele na figura dos chefes do executivo, do legislativo ou do poder judiciário. Trazendo o tema ao contexto de pandemia, mostra-se que o artigo 23 da Constituição Federal é cediço em demonstrar que a competência para cuidar da saúde pública é uma competência comum entre a União, Estados Federados e Municípios. Além disso, o artigo 24 da mesma Carta demonstra que também é concorrente aos Entes supracitados a efetivação de legislação acerca de saúde, de modo que todas as esferas de poder podem ser acionadas para aprimorar institutos jurídicos visando a melhoria da saúde pública (Brasil 1988). Nesse sentido, as palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, são esclarecedoras acerca desse assunto: “Ao presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros” (ADI 6764 2021). Note que em nenhum momento o ministro diz em uma liderança “única” ou “exclusiva”, mas dá a entender uma liderança conjunta entre o Estado na figura da União e o Estado como representação dos Estados Federados.

Em uma toada semelhante, a doutrina de direito internacional público aponta que os Estados são os únicos entes internacionais dotados de personalidade jurídica pública de forma a representar sua população em uma comunidade de nações. Dessa forma, apesar da influência que muitos autores demonstram no campo internacional, os únicos capazes de tomar decisões de maneira definitiva nos órgãos multilaterais são os estados. Nesse sentido, a Carta da ONU é expressa em seu artigo terceiro: “Os Membros originais das Nações Unidas serão os Estados que, tendo participado da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São Francisco, ou, tendo assinado previamente a Declaração das Nações Unidas, de 1 de janeiro de 1942, assinarem a presente Carta, e a ratificarem [...]”. (Carta ONU 1945). No quesito saúde pública em decorrência da nova pandemia do coronavírus, também os poderes políticos centralizados são os únicos soberanos capazes de firmar acordos internacionais sobre colaboração e aquisição de medicamentos de maneira originária. Dessa forma, as entidades privadas dependem da autorização estatal, dentro dos moldes do que determina a constituição da OMS em seu artigo 3: “A qualidade de membro da Organização é acessível a todos os Estados” (Carta OMS 1946). Aqui a carta se refere aos poderes centrais somente. Por isso se verifica em vários casos que, apesar de a iniciativa privada no Brasil querer importar vacinas de companhias de outros países, as respectivas empresas da iniciativa privada brasileira não conseguem por depender da autorização do único soberano interno no plano internacional, o Estado brasileiro, que no presente caso será representado em questões de saúde pública pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), mesmo que gere intensas polêmicas políticas em torno das questões de saúde pública (Vargas 2021).

Por fim, no Plano interno, deve-se estipular que, com o advento da democracia moderna, vários povos, os mais plurais possíveis, delegaram funções essenciais ao estado através de constituições e movimentos constitucionalistas, a função de soberano do povo, criando um paradoxo constitucional. Se um movimento constitucional ou o chamado poder constituinte é entendido como uma vontade popular, em um certo contexto histórico, de entregar responsabilidades e direitos para um ente superior, por outro lado para tanto deve-se abdicar de parte de seus poderes políticos para isso, de modo que uma soberania democrática é exercida e tutelada por um soberano que vai autolimitar seus cidadãos: “Eis o paradoxo: a democracia significa o povo decidindo as questões politicamente relevantes de sua comunidade, inclusive os conteúdos da constituição; e o constitucionalismo significa, por sua vez, limites à soberania popular” (CHUEIRI e GODOY, 2010, p.1). Visto o supracitado, demonstra-se que em um contexto de pandemia que agoniza os brasileiros, o Estado Brasileiro, seja na figura da União, seja nos Estados Federados, seja nos Municípios, apresenta soberania para executar atos relativos à saúde pública de maneira soberana, porém, como veremos adiante, não sem controle civil ou jurisdicional.

2. O CIDADÃO COMO SOBERANO

Em sua obra Dois Tratados Sobre o Governo, o filósofo inglês John Locke defende o governo soberano como fruto de um contrato entre os habitantes de uma região com o intuito de criar um futuro líder político estatal. Até aqui nenhuma novidade se apresenta ao leitor, contudo, com o decorrer de sua obra, Locke vai defender que todos os seres humanos são dotados desde o seu nascimento de direitos naturais: direito à vida, à propriedade privada e à liberdade, dentre vários outros direitos. Desse modo, a teoria lockiana se diferencia da hobbesiana justamente pelo fato de que, em caso de violação de tais direitos, o subordinado político tem o direito de se rebelar contra as forças estatais e assumir novamente sua soberania política (Locke 2014). E em um contexto de pandemia fatal, mais específico no caso brasileiro, marcado pela inação fatal de vários governantes nos diversos níveis, é de se questionar: como a pandemia e a falta de governo afeta os direitos naturais dos cidadãos? Fazendo uma leitura historicamente contextualizada da teoria do autor pode-se notar o seguinte: em uma época que a Europa se corroía em movimentos de guerras internas e no contexto da constante ingerência dos monarcas europeus na vida privada das pessoas, o autor se referia a não-intervenção na vida privada do cidadão, as quais muitas vezes geravam prejuízos aos direitos naturais pessoais. Contudo, analisando tal teoria à luz da sociedade atual, deve-se considerar a omissão estatal também como forma de ingerência de um soberano político, justificando ao cidadão o ato de se rebelar contra o governo para fazer valer seus direitos naturais (atualmente chamados de fundamentais), dentre eles a sua vida representada por sua saúde física, muito prejudicada em decorrência do novo vírus que paira sobre a humanidade atual. Ora, não seria para isso que servem os mecanismos de impedimento de políticos? Não seria esta a forma de se rebelar e trazer para si - através de mecanismos de acolhimento de assinatura para forçar o Congresso Nacional do Brasil a abrir um pedido de impedimento de um líder político - a soberania individual política? Dessa forma, resta remansada a soberania política de um cidadão no contexto de pandemia letal que atravessamos.

Não obstante, a filosofia utilitarista de Jeremy Bentham se mostra mister quando aplicada ao contexto brasileiro supracitado. Na visão deste autor, o cálculo utilitarista seria feito da seguinte maneira: tomar sempre atitudes individuais que se pautam sempre a provocar o maior bem estar possível das pessoas, sempre analisando o caso prático, de forma que se a decisão deve gerar prejuízos a alguma parte, ela deve garantir o proveito máximo e gerar a maior quantidade possível de bem-estar. Nesse sentido, o máximo bem estar coletivo possível deve ser inversamente proporcional ao número de pessoas prejudicadas (Bentham 1984). Essa teoria adequa-se perfeitamente ao caso brasileiro, dado que um ato soberano por parte de cidadãos deve sempre conceber o melhor resultado possível no geral gerando dano mínimo. Dessa forma, amolda-se perfeitamente ao caso supracitado o teste clínico de vacinas: o cidadão, de maneira soberana, abre mão de sua saúde ou da segurança total de seu bem estar, na maioria das vezes, para permitir que seja testado em si mesmo vacinas que podem matá-lo ou causar efeitos colaterais nocivos - enquanto na fase de testes -, mas que em compensação vão gerar antídotos ao coronavírus capazes de curar centenas de milhões de pessoas contra um vírus letal. Com isso, mostra-se que em um contexto pandêmico, muitas vezes o ser humano é soberano para dispor em relação a sua vida, contrariando preceitos constitucionais que protegem a vida e a saúde da pessoa humana e que os caracterizam como bens indisponíveis.

Por fim, para demonstrar a soberania individual em tempos de pandemia, deve-se revisitar conceitos kantianos muito importantes para a defesa da soberania e autonomia individual. A partir do supracitado, deve-se notar que as autonomias individuais, na sociedade brasileira, nem sempre são absolutas, podendo ser mitigadas por dispositivo legal. Nesse sentido, o artigo quinto inciso II da Constituição Brasileira diz o seguinte: "Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei” (Brasil 1988). Visto isso, deve-se frisar para melhor compreensão o conceito kantiano de imperativo categórico: qualquer ação que, em um contexto universal, deve ser tomada de modo a oferecer uma possível regra universal a ser aplicada em todos os casos decorrente de movimentos racionais e voluntários humanos (Kant 2015). Dessa forma, mostra-se mister que, no contexto atual, ninguém pode ser obrigado a tomar uma vacina e todos são soberanos para se recusar a tomar o antídoto. É óbvio que seria do interesse coletivo que todos tomassem as vacinas de modo a oferecer o menor risco possível à sociedade brasileira, contudo as pessoas não podem ser obrigadas a tal feito por violar o imperativo categórico kantiano: se alguém é forçado a tomar uma vacina por ordem governamental, seria viável em casos alternativos os seres humanos se permitir a tomar todos os remédios por ordem estatal ou forçar qualquer imunizante ou remédio? Para melhor esclarecer, seria universalmente válido a ideia de que, por disposição legal e de maneira consciente e racional, todos fossem obrigados a tomar hidroxicloroquina, se essa fosse a opção de alguns? Resta óbvio que seria incoerente considerar como um imperativo categórico o ato de tomar um remédio sempre que esse fosse recomendado pelo governo, pois este ato muitas vezes não seria universalmente válido ou sequer benéfico em um contexto de saúde pública, dado as mortes causadas pelo chamado “tratamento precoce” com alguns remédios forçados apenas por convicção ideológica. Com isso, conclui-se que o cidadão deve ser considerado soberano em decorrência de seus atos sempre serem vistos, ainda mais em um contexto de pandemia, como um imperativo categórico, ou seja, um ato que poderia ser tomado universalmente e de maneira racional para o bem de todos. Portanto, afirma-se que o cidadão é soberano justamente pelo fato de que ele não pode executar todas as ações governamentais de maneira consciente como se fossem regras universais.

3. O PODER JUDICIÁRIO COMO SOBERANO

Segundo a Constituição, o poder judiciário na figura do Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa de dar decisões em caráter definitivo (Brasil 1988), o que o transforma em soberano lato sensu, já que suas decisões têm a capacidade de vinculação erga omnes em muitas matérias. Dessa forma, verifica-se que a judicialização das questões políticas é um fato presente de maneira incontestável na atualidade, em que por ausência de decisões políticas céleres dos órgãos legislativos ou decisões que atendam os direitos do cidadão, as partes muitas vezes recorrem ao poder judiciário: “Observa-se também uma sobre-intervenção da justiça por conta de lacunas na política, forçando-a a assumir um papel representativo e impor uma meta-razão. “Os cidadãos […] se voltam para a justiça, demandando uma compensação do ‘déficit democrático’ de uma decisão política agora fadada a gerir e a oferecer à sociedade a referência simbólica que a representação atual fornece cada vez menos” (RINGELHEIM, 1997 apud COMMAILE, 2007, p. 5,).

Nesse sentido, não menos importantes e soberanas seriam as decisões judiciais em um contexto atual pandêmico, marcado pela inação do Governo Federal, em que se obriga, por meio de decisões jurídicas, o governo a custear tratamentos e leitos para os enfermos e pessoas acometidas pela doença (Gullino e Batista 2021). No caso paradigmático, a ministra Rosa Weber do STF obrigou a União a reativar leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) nos estados do Maranhão, São Paulo e Bahia no momento mais intenso da pandemia, demonstrando a soberania do poder judiciário em obrigar outros entes também soberanos a executar políticas públicas. Com isso, resta comprovada a soberania do poder judiciário com sua força de obrigação erga omnes às partes envolvidas.

Referência Bibliográfica:

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COMMAILE, Jacques. La justice entre détraditionnalisation, néolibéralisme et democratization: vers une théorie de sociologie politique de la justice. In: COMMAILE, Jacques (dir.); KALUSZYNCKI, Martine (dir.). La function politique de la justice. Tradução: Marina Amaral. Paris: La Découverte, 2007. p. 295-321.

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